Após mais de 50 anos do desenvolvimento do Concorde, uma nova geração de aviões supersônicos comerciais está a caminho
Após mais de 20 anos, a aviação comercial voltou a encarar a realidade dos voos supersônicos. Desde a aposentadoria do Concorde, há 21 anos, houve diversos estudos e promessas de retomar o projeto de aviões supersônicos civis, mas, entre idas e vindas, 2024 se tornou o ano em que não um, mas dois demonstradores de tecnologia se tornaram realidade.
O XB-1, da Boom Supersonic, realizou seu primeiro voo em março, dando início à campanha de ensaios que deverá, em breve, permitir estudos avançados sobre a viabilidade de aviões comerciais supersônicos.
Em paralelo, a NASA, em parceria com a Lockheed Martin, está progredindo nos testes em solo do X-59 Quesst, o mais novo avião experimental da lendária família X-Planes, que tem como objetivo avaliar a capacidade de novos desenhos aerodinâmicos reduzirem o estrondo sônico, permitindo voos acima da velocidade do som mais silenciosos.
Já em voo, um dos muitos desafios do XB-1 será demonstrar a viabilidade do desenho planejado para o Overture, cumprindo os parâmetros de velocidade, consumo de combustível e emissão de ruído estabelecidos virtualmente. Ele deverá comprovar a viabilidade também do uso de combustíveis sintéticos, que prometem ser mais baratos e menos poluentes. O sonho do voo supersônico comercial (e a corrida tecnológica para alcançá-lo) está de volta.
Há quase vinte anos, o Concorde deixava os céus definitivamente. O supersônico anglo-francês, que surgiu em um período em que a alta velocidade parecia ser o caminho da aviação, seja civil ou militar, saiu de cena após um acidente fatal em 2000 e aumentos proibitivos de seus custos operacionais.
Desde então, uma série de projetos surgiu com a promessa de retomada dos voos supersônicos civis. Alguns se mostraram bastante improváveis, mas, na última década, diversas startups passaram a buscar uma forma de viabilizar voos acima de 1.500 quilômetros por hora, obedecendo a duas regras básicas: consumo de combustível aceitável e emissões, tanto de gases quanto de poluição sonora, dentro das atuais regras ambientais.
Projetado nos anos 1960, quando o petróleo era um insumo barato e quase não havia preocupações ambientais, o Concorde prometia revolucionar o transporte aéreo. Eram previstas duas versões, uma de longo e outra de médio alcance. Os soviéticos largaram na frente com o Tupolev Tu-144, pejorativamente chamado de “Concordisk”, ainda que pouco do projeto remetesse ao supersônico europeu, sendo um projeto mais complexo e totalmente inviável, até para os padrões de Moscou na época.
Os norte-americanos abriram uma concorrência que envolveu seus principais fabricantes, mas acabou vencida pela Boeing. O programa era tão caro que seria custeado pelo Estado, tendo como contrapartida os royalties por cada venda.
Após uma série de estudos, projetos, análises e investimentos bilionários, os Estados Unidos formalmente abandonaram a corrida supersônica civil enquanto surgiam no horizonte dois pesadelos para o voo acima da velocidade do som: a crise do petróleo, que elevou de forma drástica o preço dos combustíveis, e a crescente pressão de ativistas e cientistas em torno do aumento das restrições ambientais, que vêm se tornando mais rígidas a cada ano desde então.
A Boom Supersonic iniciou a fase de ensaios em voo com o XB-1 visando confirmar aspectos do design do seu projeto. Mesmo em uma era de elevada capacidade computacional, o desenho de um jato supersônico ainda é um desafio colossal.
Sim, existem dezenas de aviões militares capazes de superar com folga o limite de Mach 1 e vários que podem até se sustentar em voo supersônico sem uso de pós-queimadores, o chamado supercruise.
O desenho aerodinâmico permite a esses caças voar ligeiramente acima de Mach 1 por longos períodos. Ou seja, em teoria, o desenho básico de um avião supersônico é amplamente conhecido pela engenharia aeronáutica. Mas as coisas são mais complicadas do que parecem.
Construir um caça que voe a Mach 2 exige um dado esforço, mas, quando se desenvolve um avião do porte do bombardeiro Tu-160, o problema não cresce apenas em uma direção, mas em todas.
“É um desafio em três dimensões. Cada ponto que mexe em um eixo gera um efeito em outro, exigindo uma solução particular. Quando se aplica tal solução, muda o ponto inicial do eixo um e assim as coisas se dificultam...”, explica Richard Ozie, engenheiro aeroespacial. “Quanto maior o avião, mais difícil é solucionar questões que seriam menos exigentes em um modelo menor, como um caça”.
Daí a ideia de criar o XB-1, um demonstrador com dimensões menores para validar a tecnologia do futuro Overture. O jato experimental será tripulado por dois pilotos, sendo impulsionado por três motores General Electric J85-15, atingindo até Mach 2.2.
A aerodinâmica de alta eficiência foi otimizada por uma complexa simulação realizada em computador, que se difere dos modelos matemáticos existentes na época do Concorde e mesmo de programas militares recentes.
Um dos destaques do XB-1 é ter sido construído em fibra de carbono, o que, em tese, soluciona uma série de problemas mecânicos, como fadiga de material, dilatação, entre outros.
Porém, nenhum avião militar foi completamente construído em material composto, nem projetado para um alto índice de uso, voando diariamente acima de Mach 1. Validar a escolha dos materiais também será uma das missões do XB-1.
Outro trabalho atribuído ao avião será comprovar a viabilidade do voo supersônico sem o estrondo causado pela aeronave ao ultrapassar a barreira do som, podendo direcionar a onda sonora para a atmosfera e não para o solo.
Esse é um dos pontos mais importantes de qualquer projeto supersônico civil. Resolver a questão do estrondo sônico, o famoso boom.
Ainda que muitos imaginem que as fotos com o cone de condensação em torno de caças, especialmente o F/A-18, sejam feitas no exato momento da quebra da barreira do som, elas não passam de um efeito de condensação da umidade determinado pela enorme pressão dinâmica naquele ponto do avião. É quase o mesmo efeito visto nas pontas das asas e nos flaps dos aviões comerciais durante decolagens e pousos em dias úmidos.
O efeito da quebra da barreira do som em baixas altitudes é tão violento que quebra janelas em um raio enorme ao redor do avião, pode causar surdez instantânea e permanente em quem estiver próximo, entre outras consequências. Basta lembrar que apenas o deslocamento brusco do ar causado por um Mirage da Força Aérea Brasileira já quebrou as janelas do prédio do Supremo Tribunal Federal.
Além da destruição de vidraças e do destelhamento de imóveis, o estrondo sônico ainda gera danos ao meio ambiente. O barulho constante, similar a um trovão, pode afetar a fauna e a flora. Tanto que, desde a década de 1970, existem regras que proíbem voos supersônicos sobre o continente, com algumas raras exceções sobre áreas desabitadas.
Visando justamente resolver essa questão, o Departamento de Transporte do Kansas, na região central dos Estados Unidos, assinou um acordo com a FAA, a agência de aviação civil daquele país, para estabelecer o Corredor de Transporte Supersônico do Kansas (SSTC), que será usado para avaliar aeronaves que voem a até Mach 3.
A criação de uma zona de voos supersônicos sobre o continente é fundamental para tornar viável a operação desse tipo de transporte, que hoje só pode voar acima da velocidade do som sobre oceanos e algumas regiões desabitadas.
O corredor de 770 milhas náuticas será do tipo bidirecional, indo ligeiramente a oeste e sul de Garden City, Kansas, até quase Pittsburg, no leste, em altitudes acima do nível de voo 390 (FL390), passando direto por Wichita.
O corredor supersônico criará as condições necessárias para a ampliação dos ensaios em voo com o demonstrador de tecnologia X-59 Quiet SuperSonic Technology (QueSST), desenvolvido pela Nasa em parceria com a Lockheed Martin.
O avião experimental deverá comprovar a viabilidade de um design que permita voar supersônico sem a geração de uma grande onda de choque, reduzindo o estrondo sônico. A ideia é que o boom seja quase todo direcionado para a atmosfera superior.
A Nasa espera que os voos com o X-59 permitam validar uma série de teorias que mostraram bom desempenho em ensaios de túnel de vento. A construção do avião ocorreu após um contrato de 247,5 milhões de dólares, mais taxa de incentivo, e está sendo finalizado no icônico escritório de engenharia Skunk Works da Lockheed Martin, em Palmdale, Califórnia. O time no passado foi responsável por aviões como o U-2, o SR-71, o F-117 e até mesmo o F-22.
O X-59 é parte do chamado projeto Low Boom Flight Demonstrator (LBFD), que aposta no design com um nariz longo e afilado capaz de reduzir a onda de choque que atinge a superfície, além de direcioná-la para a atmosfera superior.
Os estudos mostram que, ao romper Mach 1, esse tipo de perfil aerodinâmico gera um “baque” sônico, um estalo similar ao de um trovão distante, sem o violento estrondo sônico. Os primeiros ensaios deverão ocorrer na base aérea de Edwards, na Califórnia, e berço de testes de praticamente todos aviões da família X-Planes.
Na sequência, será utilizado o corredor sônico do Kansas. A coleta de dados será feita por um F-15 da Nasa equipado com sensores, que voará “perto” do X-59. Microfones especiais instalado no solo e balões serão usados para coletar dados, especialmente meteorológicos, para que os pesquisadores possam identificar os impactos do clima, velocidades e direções do vento, níveis de umidade no ar, temperaturas do ar, entre outros itens no deslocamento sônico.
Os estudos do X-59 aliados ao do XB-1 são a esperança para a Boom Supersonic viabilizar um projeto que permita ao Oveture se tornar um avião comercial de sucesso.
O modelo acumula 35 pedidos e 95 pré-encomendas, que teve como cliente da Japan Airlines, ainda em 2017. Já a United Airlines e a American Airlines, as únicas com pedidos formais, embarcaram no projeto em 2021 e 2022, respectivamente. A intenção é que o rollout ocorra em meados de 2025, com a entrada em serviço planejada para 2029.
A baixa capacidade do avião, com aproximadamente 60 assentos de classe executiva, não parece ser um problema para as três empresas aéreas interessadas, que apostam que o público desse tipo de aeronave será justamente o que voa de primeira classe ou executiva de tarifa cheia, ou seja, pessoas que viajam a negócios cujo tempo é um recurso valioso.
O Concorde se notabilizou entre empresários que voavam de Nova York para Londres e Paris, e vice-versa, mas atraiu especialmente um público de lazer, como personalidades e pessoas de alta renda em viagens de turismo.
A Aerion trabalhou por mais de 20 anos no projeto AS2, um jato de negócios supersônico capaz de atingir Mach 1.15. Revisões no projeto reduziram a velocidade para 1.400 km/h, quase o dobro da maioria dos aviões. Diversos parceiros, como Airbus e Boeing, participaram, mas muitos desistiram.
Em 2021, após anunciar até uma fábrica na Flórida, a Aerion cancelou o projeto devido à falta de investidores e altos custos, sem construir nenhum protótipo. O AS2 prometia inovações aerodinâmicas, mas não conseguiu financiamento para continuar.
Já o Overture espera conquistar o passageiro frequente que depende de realizar o máximo de reuniões no menor intervalo possível. Exatamente o público planejado para o AS2, mas este deveria ter sido voltado para executivos do mais alto nível na hierarquia de uma empresa, onde a hora de trabalho supera e muito a hora de voo do avião.
Ainda assim, este público ainda depende que engenheiros aeronáuticos consigam solucionar questões importantes no curto prazo. A esperança é que até o final da década o mundo veja novamente jatos cruzando os céus acima da velocidade do som, mas agora em um número jamais obtido pelo Concorde, ainda que muito longe dos sonhos na época da corrida pelo transporte supersônico nos anos 1960.
Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 07/10/2024, às 16h00
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