O X-59 Quesst promete reduzir o estrondo sônico provocados por aeronaves capazes de ultrapassar a velocidade do som
Há quase 80 anos, a Força Aérea dos Estados Unidos rompeu a barreira do som com o Bell X-1. O feito foi um divisor de águas na aviação, seja militar ou civil, viabilizando o desenvolvimento de aviões cada vez mais rápidos.
Todavia, a indústria do transporte aéreo levaria ainda três décadas para colocar no mercado aeronaves capazes de realizar os voos supersônicos, que ficaram restritos aos modelos Concorde e Tupolev Tu-144, este bastante problemático.
Mesmo tendo voado até 2003, o Concorde jamais se tornou um avião comercialmente sustentável, ao contrário, seus voos eram extremamente caros, poluentes e barulhentos. Seu último voo ocorreu há 20 anos e, desde então, a indústria aeroespacial trabalha na promessa de viabilizar novos voos comerciais supersônicos, que devem ser mais eficientes e baratos.
Algumas iniciativas fracassaram antes mesmo de o protótipo se construído, como ocorreu com o programa Aerion, que durante 20 anos prometeu um avião de negócios capaz de voar acima de Mach 1. Porém, quando chegou perto de se tornar realidade, encarou seu maior algoz: o dinheiro, tanto pelo orçamento para viabilizar sua construção como pelo custo de operação.
Recentemente, outro entrave se tornou ainda mais problemático, o ambiental. Todo e qualquer avião supersônico é ambientalmente condenável, visto que consome uma quantidade exagerada de combustível e gera um estrondo sônico problemático, inclusive do ponto de vista de saúde pública.
Evidentemente que, dentro da lógica da aviação militar, nenhum desses pontos abordados costuma ser um impeditivo, afinal, em uma guerra, o meio ambiente é devastado de diferentes formas e a saúde pública deixa de ser uma preocupação prioritária. Para forças aéreas menores, como a brasileira, o custo operacional ainda é um entrave.
A Nasa, a agência aeroespacial dos Estados Unidos, trabalha há vários anos com a meta de viabilizar um voo supersônico civil mais silencioso, menos poluente e com custos operacionais dentro de uma realidade operacional em relação ao que já se conseguiu até hoje.
Criado em parceria com a Lockheed Martin, o programa X-59 Quesst (acrônimo de Quiet SuperSonic Technology) tem como meta desenvolver uma aeronave que atinja a velocidade de Mach 1,4 sem gerar o famoso estrondo sônico.
O X-59 é o mais recente expoente da lendária série X-Plane, que, desde o Bell X-1, atua em uma série de estudos aeronáuticos, muitos dos quais para análise de voos supersônicos ou hipersônicos, como os lendários X-2, X-3 e X-15.
A previsão inicial era que o X-59 realizasse ainda em 2023 seu primeiro voo, que deverá ocorrer apenas no primeiro trimestre de 2024. O avião experimental está praticamente pronto, faltando basicamente a integração de alguns sistemas e a aplicação da pintura oficial.
O protótipo tem 30,38 metros de comprimento, com uma asa com 9,05 metros de envergadura, devendo voar a Mach 1.4 com teto operacional de aproximadamente 55 mil pés. Uma das características mais marcantes do desenho do avião é seu longo nariz, que tem aproximadamente metade do comprimento do avião, enquanto suas asas têm variações no enflechamento, indo de 76 graus até 68,6 graus.
Por ser um projeto criado exclusivamente para avaliar as ondas de choque em voos supersônicos, o X-59 nasceu usando uma série de sistemas e componentes de aviões de série, como o motor GE 414-GE-100, derivado direto do usado no Gripen E, assim como o trem de pouso oriundo do F-16 e sistema de suporte a vida adaptado do F-15.
Os primeiros voos deverão apenas servir para avaliar e comprovar as características do avião, assim como confirmar a completa e correta integração de todos os sistemas. Na sequência, serão realizados os voos experimentais, que devem comprovar, ou não, a capacidade do X-59 de voar supersônico sem gerar um estrondo ou que ele seja minimamente percebido por quem estiver nas aéreas sobrevoadas.
Além de viabilizar questões técnicas e aerodinâmicas para um novo desenho avançado, o X-59 ainda permitirá às agências reguladoras reavaliarem a proibição de voos supersônicos em áreas habitadas. Atualmente, voos civis só podem ocorrer acima da velocidade do som sobre oceanos, mares e algumas raras regiões continentais desabitadas, como as áreas mais remotas do Ártico.
Do ponto de vista comercial, um dos maiores problemas que o Concorde enfrentou foi justamente a proibição de voar acima de Mach 1 sobre o continente. Assim, era impossível voar entre pares de cidades em uma mesma região, como Nova York-Los Angeles, Londres-Roma, São Paulo-Buenos Aires, entre outros.
Os reguladores norte-americanos baniram, em abril de 1973, os voos supersônicos civis sobre o continente. Embora muitos vejam isso como parte do lobby contra o Concorde, de origem franco-britânica, o argumento acabou aceito por todas as agências regulatórias, inclusive a britânica e a francesa. Segundo os especialistas, o estrondo sônico causaria uma série de problemas na saúde pública e ainda poderia gerar graves danos materiais em solo.
O X-59 terá como principal missão comprovar que a tecnologia atual, em especial seu projeto aerodinâmico, permitirá a realização de voos supersônicos silenciosos ou com um mínimo impacto para quem estiver em solo. Uma das expectativas é que o ruído seja similar ao gerado por um avião comercial tradicional.
No caso, os engenheiros da Nasa e da Lockheed Martin trabalham em uma nova abordagem do estrondo sônico. Em 1973, os reguladores da FAA consideraram apenas na velocidade do avião, não exatamente no ruído por ele gerado. Foi um enfoque dentro das limitações técnicas de 50 anos atrás, mas a evolução da tecnologia promete solucionar algumas questões mais burocráticas que físicas. Em resumo, a ideia é que, caso o X-59 consiga voar com um ruído similar aos aviões comerciais subsônicos, haverá espaço para derrubar a barreira que impede voos acima da velocidade do som sobre áreas habitadas.
Os engenheiros planejam que o ruído gerado pelo X-59 seja na ordem de 75 PLdB (nível de ruído percebido), ligeiramente superior aos 72 PLdB de um trovão distante, mas inferior ao ruído em um ginásio esportivo durante uma competição de basquete ou de um trem do metrô entrando na plataforma, ambos na cada dos 90 PLdB. O X-59 ainda deverá ser capaz de resolver questões sonoras causadas pela aerodinâmica.
Entre as tecnologias empregadas no X-59 está um motor avançado, o mesmo usado no Gripen E, com algumas pequenas modificações para atender ao projeto da Nasa. O motor poderá oferecer a capacidade para quebrar a barreira do som sem o uso de pós-queimadores, que elevam consideravelmente o ruído e o consumo. Além disso, o nariz do avião é longo o suficiente para causar uma menor perturbação do ar à frente, o que permitirá reduzir o arrasto, o consumo e, especialmente, o estrondo sônico.
Antes mesmo de o X-59 tomar forma, a Nasa já avançava em uma série de novos estudos sobre dinâmica dos fluidos, inclusive realizando alguns voos com os T-38 Talon, que permitiram capturar, em forma de fotografia, pela primeira vez, as ondas de choque que se formam ao redor de uma aeronave.
Embora fosse de amplo conhecimento da engenharia, quanto mais cedo o ar à frente do avião fosse avisado sobre sua presença, menor seria o estrondo sônico (e o arrasto). Ainda assim, apenas agora um protótipo vai avaliar a viabilidade de um longo e fino nariz, em formato de lança.
Aerodinamicamente, o novo nariz deve auxiliar na redução do ruído, mas enfrenta a questão de limitação física para seu emprego em um avião de série. Com falta de espaço em aeroportos, é pouco provável que uma aeronave comercial tenha 30% ou mais do seu comprimento apenas de nariz, ainda que por razões aerodinâmicas. Uma solução telescópica, como as antigas antenas de rádio, enfrenta o problema da complexidade mecânica e do peso extra. Seja como for, o nariz do X-59 é parte fundamental desse projeto.
Alguns estudos computacionais feitos pela Nasa já permitem visualizar as ondas de choque e seu comportamento planejado para o X-59. Foram empregados supercomputadores e o ferramental Casrt3D, um programa criado pela agência aeroespacial, que permite coletar enormes quantidades de dados, de forma autônoma, em túnel de vento e realizar simulações extremamente precisas do comportamento dinâmico dos fluídos (no caso, o ar) em todos os regimes e condições de voo.
A Nasa e a Lockheed Martin acreditam que ao longo dos ensaios em voo, previstos para durarem entre 2024 e 2027, será possível avançar no conhecimento da dinâmica do voo supersônico e as soluções tecnológicas que podem viabilizar seu retorno ao mundo civil. Além disso, muito do conhecimento poderá também ter aplicação no mundo militar, tornando os caças mais eficientes e silenciosos, algo fundamental em um ambiente de guerra.
Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 02/02/2024, às 14h00 - Atualizado em 19/09/2024, às 14h00
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