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Cadeia de Suprimentos

Indústria aeroespacial encara desafios com tarifas e gargalos

Setor aeroespacial enfrenta desafios regulatório, escassez de mão de obra e falhas na cadeia de suprimentos em meio a novas tarifas dos EUA


Airbus
Airbus

A indústria aeroespacial vive uma recuperação pós-pandemia, mas enfrenta gargalos estruturais cada vez mais críticos. Escassez de mão de obra qualificada, cadeias de suprimento fragilizadas, disputas geopolíticas e infraestrutura deficiente ameaçam a resiliência do setor global.

No mês passado, um relatório assinado por uma coalisão da indústria aeroespacial** dos Estados Unidos, enviado ao secretário de Transportes, Sean Duffy, ao secretário de Comércio, Howard Lutnick, e ao representante de Comércio, Jamieson Greer, pediu seja feito uma força tarefa para minimizar as interrupções na cadeia de suprimentos da aviação. O documento alerta que, sem investimentos urgentes e coordenação internacional, a cadeia aeroespacial pode entrar em colapso diante de novas crises.

“A cadeia de suprimentos da aviação envolve dezenas de milhares de fornecedores de todo o mundo, que fornecem peças, plataformas e sistemas que exigem aprovação de segurança para uso e instalação, muitos dos quais não podem ser facilmente substituídos ou trocados”, escreveu o grupo, que inclui o GAMA (General Aviation Manufacturers Association), AOPA (Aircraft Owners and Pilots Association) e a NBAA (National Business Aviation Association).

A coalizão incentivou os secretários Duffy, Lutnick e o embaixador Greer a trabalharem com o setor e com o Congresso no apoio a políticas e ações voltadas ao fortalecimento dos acordos de segurança da aviação, além de políticas e investimentos que impulsionem a inovação e medidas para enfrentar desafios específicos da cadeia de suprimentos aeronáutica.

A carta reforça os alertas feitos pelo GAMA em novembro de 2024, que na ocasião enviou ao Congresso dos Estados Unidos o relatório "Força-Tarefa de Resiliência da Cadeia de Suprimentos Aeroespacial", destacando que o setor “é vulnerável à escassez de mão de obra, obstáculos em materiais críticos e à saúde da infraestrutura de suporte”. 

Na ocasião documento ainda demonstrava a necessidade de investimentos conjuntos nessas três áreas, que precisam ir muito além dos níveis atuais para garantir que a cadeia de suprimentos aeroespacial seja capaz de operar na presença de interrupções.  

“Com novas sessões e assembleias de governos programadas para se reunir em breve nos EUA e na Europa, a GAMA continuará a defender a causa para os líderes governamentais sobre a natureza essencial da indústria de aviação geral e executiva”, explicou Pete Bunce, presidente e CEO da GAMA.

Escassez de mão de obra 

Mecânico de avião
Concorrência com Big Techs e bancos, somada às crises globais, agrava a escassez de mão de obra qualificada na aviação — desafio que já afeta produtividade, inovação e a economia

A escassez de força de trabalho está no horizonte da indústria aeroespacial há várias décadas, com uma redução gradual no interesse de novos talentos em ingressar no setor. Nos últimos 20 anos, a ascensão de empresas de alta tecnologia no Vale do Silício e de instituições financeiras, com salários e planos de carreira mais atrativos, agravou o desinteresse pelo setor aeroespacial e de defesa. 

Há um ambiente altamente competitivo para pessoal qualificado, tanto no setor aeroespacial quanto em outras indústrias com necessidade dos mesmos talentos especializados. Não é novidade que engenheiros aeronáuticos, por exemplo, saem da faculdade direto para bancos ou Big Techs, em busca de melhores oportunidades.

O setor aeronáutico, por sua dependência de ciclos econômicos, ainda foi fortemente afetado por crises como a pandemia, a guerra na Ucrânia e o conflito em Israel. As crises, em geral, estimulam a aposentadoria de profissionais mais experientes, mas altamente qualificados, que, em muitos casos, acabam sendo incentivados, de forma direta ou indireta, a se aposentar ou buscar oportunidades em outras áreas. 

Essa dificuldade em reter talentos não apenas prejudica a produtividade, mas também tem impactos econômicos significativos. Um estudo feito antes da pandemia, em 2018, foi produzido pela PwC, a pedido do GAMA. Ele ainda hoje é uma análise importante sobre o impacto do setor na economia dos Estados Unidos, referência no setor aeroespacial e maior consumidor de aeronaves privadas do mundo. 

A aviação geral, na época, contribuiu com US$ 128 bilhões para o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos, com impacto atribuível de aproximadamente US$ 393 por pessoa no país. Segundo o estudo, cada emprego direto na indústria de aviação geral sustentou 3,3 empregos em outras partes da economia. 

Na ocasião, 273.500 trabalhadores, entre funcionários em tempo integral e parcial, foram empregados diretamente na aviação geral norte-americana. Porém, considerando os empregos indiretos, o número alcançou 1,2 milhão, gerando US$ 247 bilhões em produção e US$ 77 bilhões em salários, benefícios e renda de proprietários. 

No caso dos Estados Unidos, o impacto econômico da aviação geral alcança todos os 50 estados e o Distrito de Colúmbia. A Califórnia liderava como maior contratante da aviação geral, com 148.300 empregos, considerando empregos diretos ou indiretos. O estado é o mais rico do país, com um produto interno bruto (PIB) nominal de aproximadamente US$ 4,08 trilhões, quase o dobro do PIB do estado de Nova York, o terceiro da lista, com US$ 2,28 trilhões. 

Porém, ambos os estados são justamente os polos que mais rivalizam com empregos na aviação, com a Califórnia oferecendo oportunidades atraentes na indústria de alta tecnologia, sobretudo entre as companhias consolidadas do Vale do Silício e start-ups em diversas áreas tecnológicas. Já Nova York concentra grande parte dos empregos do setor financeiro, que segue sendo um dos que mais empregam profissionais formados em áreas potencialmente atraentes para a indústria aeroespacial.

Impactos a Longo Prazo 

Daher
A perda de conhecimento técnico na aviação afeta operações, certificações e segurança global, tornoando-se um risco estratégico

As perdas de força de trabalho superam a contagem de funcionários, envolvendo perda de conhecimento e habilidades institucionais, com impacto direto e duradouro na produtividade e viabilidade do setor. No caso da aviação, o impacto é sentido na indústria, na operação, na segurança, entre outros. 

Para além da fábrica em si, situações como falta de oportunidades ou salários competitivos têm afastado potenciais talentos da FAA, a agência de aviação civil dos Estados Unidos, enquanto outros deixaram a organização em busca de melhores oportunidades no mercado.

O resultado foi que a escassez de recursos humanos prejudicou a eficácia da FAA e contribuiu para os problemas relacionados ao 737 MAX, em que processos inadequados e antiquados não foram adequadamente avaliados, impactando a indústria aeroespacial globalmente.

Consequentemente, centenas de empresas estão enfrentando atrasos significativos na obtenção e envio de matérias-primas, conjuntos e peças, nos processos de certificação, o que tem atrasado a entrada de novos produtos no mercado, desde aeronaves até sistemas embarcados, tecnologias de software e processos fabris, entre outros. 

No Brasil, por exemplo, não raramente existem relatos de operadores, pilotos e outros entes da aviação civil criticando a eficiência ou mesmo o conhecimento de profissionais da Anac, que, mesmo melhorando constantemente seus quadros, ainda sofre com recursos humanos falhos.

Desafios de Infraestrutura

Outro ponto crítico tem sido a retenção e atração de profissionais para atividades como controle de tráfego aéreo. Com a aviação civil superando níveis pré-pandemia, há uma necessidade urgente de melhorar a infraestrutura de controle e gestão de tráfego aéreo, até o desenvolvimento de novas tecnologias, sobretudo de software. Ainda assim, a demanda supera com ampla margem a oferta de profissionais em quase todos os países do mundo. 

Um ponto importante, válido para todos os países com uma base industrial aeronáutica instalada (na verdade, qualquer indústria), é a necessidade de uma complexa e frágil rede de fornecedores mundiais de bens e serviços, sendo um dos elos mais delicados justamente a mão de obra especializada. O correto funcionamento desse processo depende também de uma harmoniosa relação entre empresas, agências e governos.

Não por um acaso, a coalizão solicitou uma reunião com o governo Trump para discutir a situação atual da indústria da aviação e apresentar recomendações para seu avanço. Além disso, enquanto a administração atual analisa políticas para fortalecer a indústria norte-americana, o grupo pediu uma exceção tarifária para o setor aeroespacial, de modo a garantir que não haja consequências involuntárias para a cadeia de suprimentos.

Cadeia de suprimentos global

O relatório do GAMA enviado ao Congresso dos Estados Unidos, apresenta uma visão ampla aplicável a qualquer nação, destacando que a indústria aeroespacial é um impulsionador essencial de quase todos os outros setores e que a cadeia de suprimentos está vinculada a operações globais. Isso exige uma visão de Estado para a interoperabilidade internacional e acordos bilaterais ou multilaterais, em que ações nacionais dependem e impactam o contexto global. "A chave para avançar nossa liderança é contar com uma cadeia de suprimentos robusta, resiliente e confiável", destacou a carta enviada pela coalização.

Dreamlifter
Setor aeroespacial global enfrenta gargalos na cadeia de suprimentos

O documento ressalta que os suprimentos aeroespaciais abrangem desde o fornecimento de matérias-primas até a produção, modernização e manutenção de aeronaves, até o ciclo de reciclagem ao término da vida útil. Assim, numerosas variáveis, incluindo forças geopolíticas, atividades legislativas, aplicação regulatória, treinamento de força de trabalho, recrutamento e retenção, e distúrbios de infraestrutura podem perturbar e influenciar significativamente a resiliência da cadeia de suprimentos.

"A cadeia de suprimentos da aviação envolve dezenas de milhares de fornecedores ao redor do mundo, que fornecem peças, plataformas e sistemas que exigem aprovação de segurança para uso e instalação, sendo muitos desses componentes difíceis de substituir", destaca trecho da carta.

Geopolítica e Matérias-Primas

No início de dezembro do ano passado, a China proibiu as exportações para os Estados Unidos de minerais essenciais como gálio, germânio e antimônio, amplamente empregados no setor aeroespacial, como resposta ao embargo de Washington ao setor de chips chinês.

A ação demonstra a fragilidade da indústria, que, no caso norte-americano, assim como no brasileiro e no europeu, depende da importação de matérias-primas como cobalto, titânio, gálio, entre outros.

Ainda que a maioria dos países tenha capacidade local de produção de algumas matérias-primas, como o Brasil, com grandes reservas de minério de ferro, bauxita (usada na produção de alumínio), ouro, cobre e níquel, outros materiais continuam dependendo de importação. Embargos podem comprometer a produção, inviabilizar fornecedores e criar lacunas críticas na indústria. 

"É fundamental que governo e setor privado colaborem para minimizar custos e perturbações de disponibilidade, que muitas vezes não podem ser solucionadas de forma rápida ou simples", afirmou um trecho da carta. O relatório alerta para a necessidade de aumentar a resiliência da cadeia de suprimentos, identificando fontes de insumos essenciais e alternativas para mitigar os impactos da geopolítica e, agora, também do clima.

Os riscos são agravados pelo ambiente altamente regulamentado da aviação civil, que requer a aprovação da agência para novos materiais, usos e fontes. O alerta, embora voltado aos Estados Unidos, é importante para ser avaliado por governos de todos os países.

Crises Internacionais

S-92
Sem regras claras controles de exportação dos EUA ameaçam a estabilidade da cadeia aeroespacial mundial

O GAMA ainda ressalta um ponto crítico nas relações norte-americanas, mostrando ser imperativo que os Estados Unidos se tornem menos dependentes de nações adversárias para recursos críticos em matéria-prima, fabricação, componentes e montagens.

Os controles de exportação aeroespacial, que visam apoiar a saúde das empresas locais e preservar a segurança nacional, sofrem com a falta de uma definição clara e de uma interpretação consistente. Assim, é impossível para um operador determinar a conformidade com a miríade de regulamentações, o que leva a uma redução da cadeia de suprimentos. Esse ponto afeta fabricantes globais, como os do Brasil, da União Europeia, entre outros.

Um eventual veto de Washington, por conveniência política ou momentânea, a determinada nação pode criar situações críticas para a Embraer, Airbus, Dassault, Leonardo, entre tantos outros fabricantes internacionais. A maioria das aeronaves, inclusive modelos russos atuais, conta com componentes ou tecnologias detidas por norte-americanos, de forma que os humores da Casa Branca acabam atingindo o planeta.

Se, para os fabricantes com sede nos Estados Unidos, é bastante lógico se tornarem menos dependentes de nações adversárias, para o mundo é crucial que existam regras claras nas legislações de Washington. 

“É essencial que o governo e a indústria trabalhem juntos para garantir a estabilidade da cadeia de suprimentos, que foi o raciocínio por trás da criação da Força-Tarefa de Resiliência da Cadeia de Suprimentos Aeroespacial”, destacou Paul Feldman, vice-presidente de assuntos governamentais do GAMA.

Paralisações Governamentais

Além disso, o setor aeroespacial é particularmente impactado por resoluções contínuas e paralisações governamentais, pois depende da interação constante com agências reguladoras e demais órgãos federais para operar de forma eficaz, eficiente e produtiva. Uma maior clareza no processo orçamentário melhoraria a segurança, eficiência e resiliência do sistema.

O Brasil, assim como os Estados Unidos e a Europa, enfrenta desafios constantes e cada vez maiores nas contas públicas. A alternância de governo tem sido acompanhada por mudanças políticas na estrutura do Estado, comprometendo o funcionamento da máquina pública e gerando incertezas e insegurança nos processos. 

Pequenos problemas locais podem rapidamente atingir proporções globais. Os embargos contra a Rússia não apenas colocaram em xeque a aviação civil do país, mas também geraram uma série de problemas de fornecimento de matérias-primas ao redor do mundo. A falha nos processos da FAA criou problemas regulatórios em todo o mundo e atrasou a entrega de aviões como o 777-9 e o 737 MAX 10, comprometendo o planejamento de diversas empresas aéreas e alterando a conectividade global.

Os impactos do fornecimento de gás russo para a Europa forçaram uma revisão energética, aumentando os custos de produção e pressionando os preços das aeronaves, elevando os custos dos operadores e, consequentemente, o valor final da hora de voo. Os diversos exemplos mostram a necessidade de governos, empresas e sociedade avaliarem os rumos da indústria aeroespacial.  

Guerra Comercial

No dia 2 de abril de 2025, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva impondo uma tarifa mínima de 10% sobre todas as importações dos EUA, com exceções limitadas, no que chamou de "Dia da Libertação". As novas tarifas impactam de forma direta de 57 países que deverão pagar tarifas mais altas, variando de 10% até mais 50% dependendo do caso.

Antes, já havia assinado uma ordem elevando para 25% as tarifas de importação sobre alumínio e aço, o que causou temor em toda a indústria aeroespacial. “Estou simplificando nossas tarifas sobre aço e alumínio para que todos possam entender exatamente o que isso significa. São 25%, sem exceções ou isenções”, declarou na ocasião Trump.

Essas medidas protecionistas podem afetar diretamente a indústria aeroespacial. A Boeing, por exemplo, já manifestou preocupação com o aumento dos custos e com eventuais represálias de outros países, o que pode comprometer suas exportações e reduzir sua competitividade global.

Segundo a agência Bloomberg, o CEO da Boeing, Kelly Ortberg, disse aos funcionários que o maior problema atual será interromper a complexa cadeia de suprimentos global. "Isso é muito, muito caro para nós — se estamos construindo nossos produtos e não temos os componentes da cadeia de suprimentos", disse Ortberg.

A Airbus, por sua vez, alertou que a escalada da guerra comercial tende a piorar antes de apresentar sinais de melhora, destacando que as tarifas impostas podem prejudicar tanto a economia europeia quanto a americana.

“Nossa mensagem é simples e direta: estamos prontos para trabalhar com líderes [para desenvolver] políticas construtivas que apoiem o crescimento contínuo e a saúde social de países e comunidades ao redor do mundo por meio de produtos e operações de aviação geral e empresarial", disse Bunce.

*Publicado originalmente na edição 368 da AERO Magazine, com o título "Desafios globais e caminhos para a resiliência", este artigo foi atualizado para a versão digital, incorporando informações sobre as políticas comerciais da Casa Branca e os novos movimentos do setor aeroespacial.

** Assinaram a carta: Aeronautical Repair Station Association; Aircraft Electronics Association; Aircraft Owners and Pilots Association; Airlines for America; Air Traffic Control Association; Cargo Airline Association; Experimental Aircraft Association; General Aviation Manufacturers Association; Light Aircraft Manufacturers Association; National Agricultural Aviation Association; National Air Carrier Association; National Air Transportation Association; National Business Aviation Association; Professional Aviation Safety Specialists; e Vertical Aviation Internationa

Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 07/04/2025, às 13h00


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