Com asas sustentadas por treliças transônicas o X-66A pode redefinir o futuro da aerodinâmica e se tornar a chave para uma aviação sustentável
No dia 15 de agosto do ano passado, sob o céu claro da Califórnia e o sol inclemente do deserto, um veterano esquecido despertou para um novo voo. Em Victorville, um cemitério de aviões onde descansam aeronaves que outrora reinavam nos céus do mundo, um veterano MD-90 deixou a aposentadoria e, em questão de minutos, cruzou os 80 quilômetros que separam Victorville da cidade de Palmdale, onde está uma das instalações mais sigilosas e tecnologicamente avançadas da aviação mundial. Mas este não foi um simples voo de despedida; é o início de uma nova jornada.
Por décadas, aviões como o F-4 Phantom II e o F-16 Fighting Falcon também ressurgiram desses “boneyards”, ou cemitério de aviões, apenas para se tornarem zumbis voadores, pilotados a distância e destinados a serem destruídos por mísseis em testes. Mas o MD-90 de registro N931TB não ressuscitou para essa sina. O destino o chamou para algo maior, algo inovador.
Esse veterano, cujo projeto básico surgiu nos anos 1960, foi escolhido não para perecer, mas para evoluir. A transformação foi radical: ele se tornou o X-66A, uma aeronave de demonstração tecnológica, destinada a pavimentar o futuro da aviação comercial.
Com novas tecnologias que prometem reescrever as regras do transporte aéreo e reduzir drasticamente as emissões de poluentes, o renascimento desse MD-90 poderá marcar o início de uma nova era. O velho guerreiro dos céus não apenas voltará a voar em um novo projeto, mas guiará a aviação rumo a um amanhã mais limpo e eficiente.
À primeira vista, as modificações principais promovidas por técnicos e engenheiros da Boeing e da NASA foram a substituição das asas por um novo par, mais finas e extralongas, estabilizadas por suportes diagonais. De longe, parece um bimotor leve de asa alta, mas o projeto está distante do conhecido conceito de asa alta com montantes.
O design, conhecido como configuração de Asa Sustentada por Treliça Transônica (Transonic Truss-Braced Wing), promete ser mais eficiente em termos de consumo de combustível do que as melhores aeronaves comerciais disponíveis atualmente.
O X-66A, que deverá voar em menos de quatro anos, é o mais recente membro da seleta família X-Plane, que surgiu nos anos 1940 e cujo primeiro integrante foi o Bell X-1, o avião com formato de uma bala .50, que permitiu quebrar a barreira do som em outubro de 1947.
Atualmente, a Força Aérea dos Estados Unidos concede o status X-Plane para programas de desenvolvimento que buscam criar configurações experimentais e revolucionárias de aeronaves. A designação é restrita apenas a aeronaves de pesquisa cujos designs e tecnologias podem ser adotados em outros projetos de aeronaves, mas não servem como protótipos para produção em série.
No X-66A, o estudo principal será justamente a tecnologia de configuração de asa sustentada por treliça para voos transônicos (TTBW, na sigla em inglês), que, quando combinada com outros projetos em paralelo, como novos motores, materiais de construção e arquitetura de sistemas, pode resultar em um avião até 30% mais eficiente no consumo de combustível em comparação com a tecnologia atual.
Atualmente, a maioria dos novos aviões civis, sejam jatos comerciais ou de negócios, baseia suas inovações em estudos consolidados há várias décadas. Por mais avançada que seja a asa de um Falcon 6X ou um Gulfstream G700, o desenho básico e a base de conhecimento são uma evolução contínua de projetos lançados há 60 anos.
O mesmo ocorre com materiais: muitos deles, como compósito e ligas metálicas usados nos Boeing 787 ou Airbus A350, são aperfeiçoamentos de décadas de estudos. O X-66A promete um novo salto tecnológico, avançando em conceitos aerodinâmicos e no emprego de nanotecnologias.
O projeto faz parte do chamado Sustainable Flight Demonstrator, iniciativa da NASA em parceria com a indústria aeronáutica, que se concentra no desenvolvimento de novas tecnologias para aviação sustentável.
Para o X-66A, a agência investirá US$ 425 milhões ao longo de sete anos, enquanto os parceiros privados contribuirão com o restante do financiamento, estimado em cerca de US$ 725 milhões.
“Na NASA, nossos olhos não estão apenas voltados para as estrelas, mas também fixos no céu. O Sustainable Flight Demonstrator se baseia nos esforços da NASA em tecnologia aeronáutica e também em estudos sobre o clima”, disse Bill Nelson, administrador da NASA, durante a chegada do MD-90 para ser convertido em X-66A.
O maior destaque do projeto é testar a Asa Sustentada por Treliça Transônica (TTBW), que, embora remeta ao modelo de asa alta com montante, tem um design único que não apenas reduz o arrasto durante o voo, mas também gera maior sustentação, diminuindo assim o consumo de combustível em até 10%.
De forma simplificada, a treliça (Truss) é composta por uma estrutura com função aerodinâmica em formato de “V” (com alguns estudos prevendo o formato de “X”), que distribui as forças aerodinâmicas e estruturais ao longo da asa de grande alongamento e espessura mínima.
A treliça, ao mesmo tempo, sustenta estruturalmente a asa e gera parte da sustentação, possibilitando a construção de asas mais leves e longas, já que a estrutura primária não precisará ser tão reforçada. Por fim, ao permitir asas mais finas, a treliça reduz o arrasto de onda, que é um problema em velocidades próximas à do som (transônicas).
Nos últimos anos, projetos aeronáuticos, sobretudo de aviões comerciais como os Airbus A350, Boeing 787 e 777X, além dos Embraer E190-E2 e E195-E2, passaram a contar com asas de maior alongamento, ou seja, a relação entre a envergadura da asa e sua corda média (largura média da asa), visando reduzir o arrasto e obter o melhor desempenho em voos de cruzeiro.
Essas asas produzem menor arrasto induzido, o que aumenta a eficiência, permitindo velocidades maiores ao mesmo tempo que oferecem considerável economia de combustível. Todavia, mesmo as asas de grande alongamento sendo mais eficientes, elas tendem a ser menos manobráveis e menos robustas, limitando "forças g".
O conceito do TTBW terá de solucionar essa questão, o que deverá ocorrer graças à treliça, que ficará responsável por suportar tais cargas. Eis o projeto básico dos estudos do X-66A.
A asa do X-66A contará com o maior alongamento já planejado para um avião comercial, o que também deverá gerar menos vórtices de ponta de asa, reduzindo o arrasto induzido sem a necessidade de dispositivos como winglets, que, embora melhorem a eficiência, agregam maior peso estrutural. Com uma asa inovadora, a NASA e a Boeing esperam melhorar consideravelmente a eficiência aerodinâmica em voos de cruzeiro, tornando o voo mais econômico e rápido.
Evidentemente, nem tudo é perfeito. Um dos desafios atuais, que coincidentemente tem relação com as especulações sobre o voo 2282, é que o conceito TTBW ainda não passou por todos os testes de avaliação de formação de gelo e seu impacto na eficiência da nova asa.
Por possuir características que ainda não foram amplamente estudadas em condições de gelo, a NASA tem realizado uma série de simulações no Túnel de Gelo de Pesquisa (IRT) para ajudar a validar ferramentas de previsão de gelo, como o GlennICE, além de investigar formas de evitar sua formação.
Embora, à primeira vista, as soluções possam parecer conhecidas, a NASA reconhece que a falta de similaridade com os designs atuais de aviões exige a avaliação e validação de ferramentas que possam, no futuro, permitir a certificação com impacto mínimo no consumo de combustível. O eventual uso de um sistema tradicional de degelo poderá impactar negativamente a treliça ou mesmo a asa, inclusive inviabilizando seu desenvolvimento comercial.
Um conjunto pesado provavelmente se traduzirá em algo volumoso, o que, por si só, torna impraticável sua instalação em uma asa que tem como proposta ser extremamente fina e leve. Não por acaso, parte dos estudos está relacionada à investigação de materiais potenciais que sejam duráveis e contenham características icefóbicas (antiaderentes ao gelo) para uso em Sistemas de Proteção Contra Gelo.
O conceito TTBW se mostrou um desafio considerável para os engenheiros do X-66A, exigindo uma combinação elevada de técnicas avançadas para testar e validar a nova configuração de asa.
Embora diversas simulações sejam comuns em projetos aeronáuticos, para validar o design, os pesquisadores passaram anos realizando simulações com quase uma dezena de modelos computacionais avançados. Um dos maiores desafios foi entender e prever o estol profundo, dado o conceito em que a asa e a treliça geram sustentação.
Da mesma forma, foi necessário prever e controlar o "buffet", uma vibração na asa causada pela separação do fluxo de ar em altas velocidades ou ângulos de ataque elevados. Aliás, considerando apenas o grande alongamento da asa, o buffet já seria um problema complexo o bastante; imagine calcular e resolver isso com uma treliça jamais testada em um projeto que prevê seu uso em um avião comercial.
Para realizar as simulações necessárias, os engenheiros da NASA utilizam supercomputadores com 4.000 núcleos. Mesmo com essa capacidade, uma única simulação considerada simples pode levar de oito a doze horas para ser concluída, enquanto, dependendo do caso, pode consumir uma semana inteira, especialmente devido à complexidade de capturar fenômenos como a separação do fluxo de ar na asa, que afeta diretamente a estabilidade e o desempenho da aeronave.
O primeiro voo do X-66A deverá ocorrer em meados de 2028, prometendo abrir um novo capítulo no design básico dos aviões, que permanece inalterado desde os anos 1940, quando o de Havilland Comet realizou seu primeiro voo. O desenho foi ligeiramente aprimorado anos mais tarde pelo Dash 8, a base do projeto 707 da Boeing, mas que pouco mudou conceitualmente desde então.
Por ora, os engenheiros e técnicos da NASA e da Boeing trabalham em duas frentes básicas: a primeira é concluir os estudos do TTBW; e a segunda é, efetivamente, reconstruir um MD-90 como um avião completamente novo.
Em menos de quatro anos, poderemos assistir ao primeiro voo de uma aeronave que deve revolucionar o transporte aéreo de uma forma que não vemos há mais de sete décadas.
* Publicado no formato digital e também na AERO Magazine 365 · Outubro/2024
Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 31/10/2024, às 15h14 - Atualizado em 05/11/2024, às 12h00
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