O voo supersônico do XB-1 marca uma nova era na aviação e abre caminho para o futuro do transporte aéreo acima da velocidade do som
Após mais de 20 anos, a aviação testemunhou um voo supersônico realizado por uma aeronave civil. Desde o fim das operações regulares do Concorde, em 2003, as aeronaves comerciais passaram a voar abaixo da velocidade do som, embora jatos de negócios tenham alcançado velocidades próximas de Mach 0.935. Todavia, por longas duas décadas, o retorno dos voos supersônicos permaneceu apenas como uma promessa.
Isso mudou no dia 28 de janeiro, quando o XB-1, um demonstrador de tecnologia da Boom Supersonic, quebrou a barreira do som. Pilotado pelo chefe de testes da Boom, Tristan "Geppetto" Brandenburg, o XB-1 entrou no corredor supersônico, localizado entre as Black Mountains, no deserto de Mojave, e a área restrita R-2508, nos arredores da lendária base de Edwards, ambos na Califórnia.
Durante o voo, a aeronave atingiu uma altitude de 35.290 pés antes de acelerar para Mach 1.122 (equivalente a 1.207,01 km/h ou 652 KTAS) por um total de 11 minutos e 30 segundos. Foram apenas 34 minutos de voo, mas que marcaram um momento crucial na história da aviação do século XXI.
Embora o XB-1 não represente a configuração final do Overture, o avião supersônico comercial da Boom Supersonic, esse voo foi um passo fundamental no desenvolvimento do transporte aéreo supersônico.
Além disso, o feito teve um simbolismo importante, pois foi o primeiro voo supersônico realizado por uma aeronave civil construída nos Estados Unidos de forma independente, ainda que fosse um modelo experimental. Mesmo que a NASA seja uma agência civil, ela está vinculada ao governo e concentra seus esforços em pesquisas específicas. Com isso, os EUA acumulam um atraso de nada menos que 56 anos na corrida pelo Transporte Supersônico (SST, na sigla em inglês).
Vale lembrar que essa disputa terminou sem um vencedor, já que o Concorde entrou em serviço quase por uma questão moral, enquanto o lobby dos fabricantes norte-americanos conseguiu barrar a concorrência antes mesmo de ela começar. Evidentemente, o choque do petróleo em 1973 foi o golpe final que inviabilizou o sucesso comercial do Concorde.
Esse fator terá um peso considerável no futuro do transporte aéreo supersônico. A Boom Supersonic afirmou que seu futuro Overture, um avião comercial com capacidade para entre 64 e 80 passageiros na classe executiva, terá um consumo relativamente alto quando comparado a um avião subsônico e não conseguirá evitar desafios ambientais, sobretudo em relação às emissões de poluentes e ao ruído.
O projeto aerodinâmico promete reduzir consideravelmente o estrondo sônico e o barulho na decolagem, mas não será possível neutralizar esses efeitos por completo. Assim, um dos primeiros desafios do Overture será convencer as autoridades europeias de sua viabilidade em um mundo com cada vez mais pressão ambiental, além de superar a resistência histórica ao lobby norte-americano contra o Concorde.
Em um mundo ideal, questões ideológicas ou pessoais não deveriam influenciar um debate público, mas, com o aumento da polarização política, não será surpresa se esse tema for levantado por legisladores europeus.
Por ora, há muito o que comemorar. Afinal, os engenheiros da Boom Supersonic conseguiram viabilizar o projeto dentro do orçamento, ainda que com considerável atraso, e comprovar sua viabilidade operacional. Também é digno de nota que a empresa seja uma startup que, neste momento, não possui faturamento, apenas investimentos milionários.
O governo dos Estados Unidos demonstrou interesse no projeto Overture, podendo inclusive adquiri-lo para ser utilizado como Air Force One. Além disso, a Japan Airlines, a United Airlines e a American Airlines assinaram um memorando de intenções (MoU). A companhia aérea japonesa foi a primeira a demonstrar interesse no avião, firmando uma parceria em dezembro de 2017, quase quatro anos antes da United.
"Trabalhamos com a Japan Airlines nos bastidores há mais de um ano", comentou, na ocasião, Blake Scholl, fundador e CEO da Boom. "A equipe apaixonada e visionária da JAL oferece décadas de conhecimento prático e sabedoria em tudo, desde a experiência do passageiro até as operações técnicas."
O programa Overture surgiu em um momento em que diversas startups tentavam convencer o mundo da viabilidade operacional e financeira do voo supersônico. Na época, a Aerion trabalhava há vários anos em um jato executivo que prometia ser ao menos 1,5 vezes mais rápido que os modelos convencionais. Enquanto outras empresas apresentavam propostas para diversas aplicações, a Boom Supersonic, mesmo discretamente, trabalhava em um programa inovador, audacioso e, sobretudo, realista.
Para provar sua viabilidade, especialmente em relação às tecnologias planejadas, como o uso de materiais compostos na fuselagem, os engenheiros optaram por criar um avião experimental que pudesse validar, na prática, as ideias concebidas para o Overture. A estratégia mostrou-se bastante acertada, pois, além de fornecer um banco de dados essencial para o projeto final, também permitiu apresentar resultados preliminares às autoridades aeronáuticas, como a FAA e a EASA, a diversas agências, incluindo as ambientais, e, principalmente, a potenciais investidores.
Uma coisa é gigantes como Airbus, Boeing e Lockheed Martin, que possuem ampla experiência em projetos complexos e caros, justificarem o risco e o dinheiro investido. Outra bem diferente é uma startup que depende apenas de uma boa ideia e de recursos financeiros consideráveis, que facilmente superarão a casa das dezenas de bilhões de dólares.
"Um pequeno grupo de engenheiros talentosos e dedicados realizou o que antes exigia governos e bilhões de dólares", destacou Scholl após o primeiro voo supersônico do XB-1.
O XB-1 foi desenvolvido pela Boom Supersonic como um demonstrador de tecnologia, visando comprovar as soluções criadas para o futuro Overture, este sim um projeto com pretensão de se tornar um avião de série, capaz de voar a Mach 1.7.
Seu objetivo principal é validar diversas questões técnicas, como o uso extensivo de materiais compostos, sobretudo fibra de carbono, que, em teoria, resolve problemas mecânicos como fadiga de material e dilatação térmica. No entanto, há aspectos ainda pouco explorados, como o comportamento da fibra de carbono sob altas temperaturas e o atrito intenso com o ar.
Embora seja uma tecnologia amplamente utilizada na indústria aeroespacial, nenhuma aeronave de alto desempenho foi completamente construída apenas com materiais compostos, muito menos para operar a 1,7 vezes a velocidade do som em ciclos diários. Dependendo da demanda, o Overture poderá realizar mais de dois voos por dia, o que ampliará consideravelmente os desafios estruturais.
O XB-1 também servirá para validar o uso de combustíveis sintéticos, que prometem ser mais baratos e menos poluentes. Equipado com três motores General Electric J85-15, os mesmos usados no T-38 Talon e no F-5, a proposta é avaliar o desempenho em altas velocidades com SAF (sigla para combustível de aviação sustentável).
A aeronave foi projetada com aerodinâmica otimizada digitalmente, usando simulações de dinâmica de fluidos computacional (CFD), buscando um design que equilibre estabilidade na decolagem e pouso com máxima eficiência em velocidades supersônicas.
Outro aspecto relevante é a análise do ruído gerado pelo XB-1. Embora não tenha sido projetado para evitar o estrondo sônico, como o X-59 Quesst da NASA, seu desenvolvimento visa minimizar o excesso de ruído na decolagem e, tanto quanto possível, em voo de cruzeiro. A proposta do Overture é voar supersônico apenas sobre oceanos e áreas continentais desabitadas, enquanto sobre terra a velocidade de cruzeiro será de Mach 0.88 a 0.95, cerca de 20% superior à dos aviões comerciais atuais.
Por fim, a tecnologia embarcada também faz parte fundamental dos ensaios com o XB-1, que comprovará a validade dos sistemas a bordo, como o sistema de realidade aumentada que permite decolagens e pousos com elevado ângulo de ataque, sem a necessidade de rebater o nariz, como no Concorde e no Tu-144. Essa inovação, além de reduzir peso, elimina parte da complexidade mecânica e os custos de revisão e manutenção.
Em paralelo ao XB-1, a Boom também demonstrou rápido progresso em seu motor Symphony, desenvolvido em parceria com a StandardAero. Os testes estão em andamento e o primeiro núcleo do motor em escala real está próximo de ser concluído. O motor terá 35.000 lbf de empuxo, sem pós-combustor, e um fan de 72 polegadas de diâmetro. A configuração busca um equilíbrio difícil entre potência, consumo e arrasto, além da desafiadora capacidade de supercruise, que permite manter voo supersônico sem o uso de pós-queimadores. Essa capacidade é conhecida por estar presente em caças como o F-22, F-35 e Gripen E/F, mas, agora, precisará ser adaptada para um avião muito maior e mais pesado.
No caso do XB-1 e do futuro Overture, as entradas de ar dos motores reduzem a velocidade do fluxo quando voando supersônico para valores subsônicos, convertendo energia cinética em energia de compressão de forma eficiente. Isso permite que motores sem pós-combustor impulsionem a aeronave para voo supersônico.
Esse design também impacta diretamente o arrasto. Motores de grande capacidade e elevado bypass ratio (taxa de diluição) costumam ter uma grande área frontal. Por esse motivo, o Symphony terá um diâmetro do fan de 72 polegadas, buscando eficiência sem gerar arrasto excessivo. Para efeito de comparação, a entrada de ar do motor F119-PW-100, utilizado no F-22, tem 40 polegadas de diâmetro. Outro aspecto interessante é a taxa de bypass, que, embora não tenha números divulgados, será superior à de motores supersônicos convencionais.
Outro fator crucial é que o motor atenderá ao Capítulo 14 das normas de emissão de ruído da ICAO. Junto com a capacidade de consumir SAF, esse será um dos principais argumentos para comprovar a viabilidade ambiental do Overture.
Além do progresso do XB-1, a Boom Supersonic demonstrou grande avanço no programa como um todo. Diferentemente de outros projetos recentes de aviões supersônicos que enfrentaram dificuldades para estabelecer fornecedores, a empresa conseguiu fechar parcerias estratégicas importantes.
Uma das mais relevantes foi a seleção da suíte Anthem, da Honeywell, que combina tecnologias de ponta com recursos inéditos de segurança, incluindo realidade aumentada para proporcionar maior consciência situacional aos pilotos. Para decolagem e pouso, os pilotos usarão os óculos de realidade aumentada SkyLens II, da Universal Avionics, que integram diversas visualizações de câmera (síntese de visão natural e sintética) junto com dados de voo. Isso proporciona uma visão centralizada de todas as informações essenciais, aumentando a precisão operacional e a segurança dos passageiros.
Segundo o projeto atual, os principais sistemas do cockpit serão acessíveis por meio de telas sensíveis ao toque de 17 polegadas, com alta definição, o que reduz peso e a carga de trabalho dos pilotos. Além disso, a aviônica contará com atualizações contínuas de software over-the-air, permitindo melhorias e correções em tempo real.
Outro destaque é o uso de force-feedback sidesticks, semelhante ao utilizado pela Gulfstream. Esse recurso permite que os pilotos recebam uma resposta física do controle dinâmico do avião, inclusive das ações executadas pelo piloto automático.
"Estamos entusiasmados em entrar nesta parceria com a Boom Supersonic, trazendo anos de inovação em Enhanced Flight Vision Systems para a Overture", afirmou Dror Yahav, CEO da Universal Avionics.
Embora o XB-1 ainda esteja no início de sua campanha de ensaios em voo acima da velocidade do som, o progresso realizado pela Boom Supersonic é notável e pode viabilizar o retorno dos voos comerciais supersônicos.
No entanto, desafios significativos ainda precisam ser superados, especialmente no campo econômico e político. O desenvolvimento de uma aeronave supersônica comercial exige um alto nível de investimento e apoio regulatório. Além disso, questões ambientais, como emissões de poluentes e ruído, continuarão sendo obstáculos críticos para a certificação e a aceitação pública do Overture.
Mesmo assim, Blake Scholl permanece confiante e entusiasmado e afirma que “o voo supersônico do XB-1 demonstra que a tecnologia para voos supersônicos de passageiros chegou." A promessa da Boom Supersonic é que o Overture entre em serviço no início da próxima década, trazendo de volta a era do transporte aéreo supersônico comercial.
Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 26/05/2025, às 08h00
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