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Asas Voadoras: Futuro promissor ou barreira difícil de superar?

O conceito do Blended Wing-Body pode transformar a aviação, mas ainda enfrenta desafios tecnológicos e operacionais que colocam à prova o futuro das asas voadoras


Desafios da asa voadora na aviação comercial estão relacionados ao custo operacional e taxa de despacho do avião - NASA
Desafios da asa voadora na aviação comercial estão relacionados ao custo operacional e taxa de despacho do avião - NASA

Quando o novo bombardeiro B-21 fez seu primeiro voo, no dia 10 de novembro de 2023, chamou a atenção seu formato de asa voadora, além do fato de a Northrop Grumman autointitular o avião como sendo o primeiro de sexta-geração, ainda que tal classificação seja bastante controversa.

Mais recentemente, a China realizou o voo de um avião militar com formato semelhante ao de uma asa voadora. Embora existam poucas ou nenhuma informação oficial, o conceito não é novidade. Afinal, o B-2 Spirit, que está em serviço há quase três décadas, ainda é considerado um conceito exótico, com aplicação prática limitada.

Ainda assim, o primeiro avião com formato de asa voadora a voar foi o alemão Horten H-IX (HO 229), que realizou sua estreia em 1º de março de 1944. Depois, foi a vez do Northrop YB-49, que fez seu primeiro voo em 21 de outubro de 1947. Ainda hoje, passados quase 80 anos, a asa voadora segue chamando atenção de entusiastas e se revelando um desafio técnico para os mais experientes projetistas.

Estagnação tecnológica 

Há quase oito décadas, a indústria aeroespacial busca formas de inovar, ainda que costume esbarrar em questões técnicas, comerciais e financeiras. Dar um salto muito à frente pode ser um desastre, como ficou claro para os ingleses da de Havilland e seu Comet, o primeiro avião comercial a jato.

As tecnologias de asa enflechada e motores a jato eram relativamente conhecidas, mas as soluções em torno dos materiais e da pressurização ainda não estavam prontas para um projeto daquele porte.  

Ficar parado no tempo também se revelou um grave problema, como a McDonnell Douglas descobriu com o MD-11, uma evolução pontual do DC-10, que chegou tarde demais ao mercado, e com uma série de conceitos que estavam saindo de cena mais rápido do que os executivos previam. Aliás, é curioso que, enquanto a McDonnell Douglas trabalhava no projeto do MD-11, que colecionava atrasos e problemas, o fabricante respondeu positivamente a um convite da Nasa para discutir questões do futuro aerodinâmico do transporte aéreo. 

Boeing 707
Aviões atuais usam um conceito de design criado há quase 80 anos. Em linhas gerais pouca coisa mudou desde o Boeing 707, desenvolvido na década de 1950 | Foto: Lufthansa

No outono de 1988, Dennis Bushnell do Centro de Pesquisa Langley da Nasa (LaRC) enviou um convite a diversos grupos de engenharia com a seguinte pergunta: “Existe um renascimento aerodinâmico para o transporte de longo curso?”. O argumento era bastante válido.

Segundo a agência, desde o Boeing 707, que havia voado pela primeira vez em 1957 (portanto, pouco mais de 30 anos antes), quase nada havia mudado nos aviões comerciais em termos aerodinâmicos e de conceito. Seguiam sendo um tubo metálico afixado em asas enflechadas e impulsionados por motores a jato, ainda que houvesse salto tecnológico considerável em materiais, propulsão, aviônica e computadores.

Cautela, ceticismo e custo

A indústria aeronáutica havia abandonado um passado de grandes inovações em um curto intervalo de tempo para trabalhar em uma abordagem mais cautelosa e cética. Justiça seja feita, parte desse efeito tem a ver com os complexos processos de certificação, que, embora tenham tornado as aeronaves extremamente seguras, acabaram exigindo comprovações que tornaram o processo lento e difícil de ser aperfeiçoado no curto prazo.

Por fim, o custo (leia: dinheiro) se tornou a bússola de qualquer novo projeto. Não adianta ser inovador e custar caro demais. Vide o Beechcraft Starship, que era inovador e se tornou um pesadelo econômico. Porém, se comparamos um Lockheed Constellation com um de Havilland Comet, que voaram pela primeira vez na mesma década, houve um salto extraordinário. Apenas onze anos separam o Douglas DC-6 e o Boeing 707. Entre o 707 e o A350 se passaram incríveis 56 anos e os dois aviões guardam essencialmente os mesmos conceitos.

Inicialmente, os convidados pela Nasa se mostraram descrentes em relação à proposta, mas, ao final, diversos grupos de engenharia aceitaram a proposta e se reuniram no Langley Research Center, em Hampton, nos Estados Unidos.

Entre os participantes estavam cientistas do Centro de Pesquisa de Langley, do Centro de Pesquisas Ames, Centro de Pesquisa Lewis (atualmente Glenn), todos da Nasa, assim como da McDonnell Douglas, Lockheed, AeroVironment, Systems Technology Inc, Universidade de Stanford, Universidade de Princeton e Marinha dos Estados Unidos.

Design revolucionário

NASA X-48C
Conceito do X-48 começou a ser avaliado no final dos anos 1980, mas só se tornou uma realidade quase 20 anos depois | Foto: NASA

Os participantes receberam como desafio preparar um conjunto básico de projetos em duas abordagens: a primeira usando um modelo evolutivo (ou seja, derivado) e a segunda, um revolucionário (rompendo com o passado).

Na sequência, deveriam definir um design revolucionário com otimismo técnico irrestrito, sem preocupações comerciais. Por fim, comparar os resultados das duas abordagens de design. Uma baseada em evolução e uma de design otimista.

Na ocasião, os participantes criaram diversas abordagens. Harvey R. Chaplin, da Marinha dos EUA, apresentou um spanloader simétrico, R.T. Jones da Nasa desenvolveu a uma asa oblíqua, enquanto Werner Pfenninger, também da Nasa, sugeriu uma configuração de asas reforçadas por treliça. Por fim, Robert H. Liebeck, da McDonnell Douglas, trouxe o que seria o conceito de blended wing-body, ou seja, uma asa fuselagem integrada. O conceito é similar ao da asa voadora. Paralelamente, voava quase em absoluto segredo o B-2, comprovando a viabilidade operacional da fusão entre fuselagem e asa. 

O conceito da McDonnell Douglas era meramente acadêmico, sem dispor naquele momento de nenhuma aplicação prática, mas coincidiu com estudos do mercado que avaliavam a viabilidade e necessidade de aviões comerciais ainda maiores do que o Boeing 747.

Na época, a Boeing avaliava uma versão estendida do recém-lançado 747-400, mas esbarrava na limitação do projeto, que exigia uma fuselagem com mais de 80 metros de comprimento para viabilizar o transporte de mais de 800 passageiros. A Airbus, que trabalhava na família A340/A330, também estudava um avião ainda maior, que no futuro daria origem ao A3XX e posteriormente ao A380.  

Seja como for, as questões postas em 1989 eram basicamente:

  • O quão maiores podem ser os aviões de passageiros com asa enflechada?
  • Quais alternativas existem para além desta configuração?
  • Existe elementos tecnológicos que possam ser integrados para resolver ou melhorar problemas das aeronaves subsônicas?

O que os participantes perceberam era que, desde o início da aviação comercial, principalmente após anos 1930, a indústria adotou uma configuração básica que inclui um estabilizador vertical, um horizontal, asas de grande proporção e, na era do jato, motores montados em capsulas sob as asas ou na parte posterior da fuselagem.  

Esse projeto elementar tem muito do conservadorismo dos fabricantes, mas ainda uma boa dose de pragmatismo, visto que as caudas horizontais são um meio eficiente de satisfazer o requisito de ajuste e controle longitudinal.

Por mais que os computadores tenham evoluído após os anos 1980, sua aplicação na aviação só ganhou escala nos anos 2000, especialmente com o então chamado glass cockpit, ou os aviões com cabines com aviônica digital. Hoje, os computadores conseguem gerenciar um sem-fim de parâmetros, controlar o regime do motor, cuidar da atitude da aeronave, realizar navegações com precisão de centímetros mesmo em voos de ultralongo alcance, entre outros.

O conceito BWB 

BWB USAF
A Força Aérea dos EUA avalia a viabilidade do conceito BWB no futuro Sistema de Reabastecimento Aéreo de Próxima Geração (NGAS) e seus avanços tecnológicos poderão redefinir o formato básico e as capacidades dos aviões-tanque e de transporte | Ilustração: USAF

Contudo, ainda não é barato nem simples criar um sistema de computadores capaz de gerenciar e voar aviões extremamente instáveis. Em geral, esses sistemas são restritos aos modelos militares, como no caso dos F-117 e B-2, que são impossíveis de serem pilotados manualmente, sem qualquer auxílio dos computadores.

Enquanto o grupo de pesquisadores e engenheiros trabalhava em suas ideias, a Northrop voava com o B-2 pela primeira vez e fazia poucos meses que os Estados Unidos haviam reconhecido a existência do F-117. 

Com o chamado blended wing-body (BWB), os engenheiros da Nasa e da McDonnell Douglas passaram a trabalhar em um modelo em escala, controlado remotamente. A abordagem de não ter um avião em escala 1/1 se deu pelo alto investimento e a complexidade dos sistemas necessários.

Assim, ao longo de vários anos, foram avaliadas questões como melhor compreensão da dinâmica de baixa velocidade e alto ângulo de ataque dos aviões BWB. Os ensaios em túnel de vento, assim como testes de bancada e estáticos, envolveramdiversos grupos de estudos da Nasa, Universidade de Stanford, Força Aérea dos Estados Unidos (USAF, na sigla em inglês) e da Boeing (que absorveu a McDonnell Douglas em 1997).

NASA X-48C
Primeiro voo do X-48C ocorreu apenas em 2013, dezesseis anos após a conclusão do estudo básico do conceito blended wing-body | Foto: NASA

Os primeiros voos com o modelo ocorreram em agosto de 1995, com o chamado BWB-6, e foram concluídos em julho de 1997, com o BWB-17. Ao longo de dez anos, os estudos seguiram e ampliaram o uso de computação no projeto e na pesquisa, levando à criação do X-48B, novamente um BWB em escala para avaliação das características do conceito BWB.

O primeiro voo ocorreu em julho de 2007, com algumas melhorias adicionadas entre 2012 e 2013 no chamado X-48C. O novo modelo tinha uma envergadura de 6,4 metros e pesava 178 quilos, podendo atingir até 10 mil pés de altitude e voar a 120 nós.

Ainda que aerodinamicamente o grupo de estudos tenha avançado consideravelmente, resolvendo algumas questões críticas, dois pontos se mantiveram sem solução.

O primeiro é o custo relacionado ao avião, especialmente do ponto de vista comercial, já que exige um complexo sistema de controle de voo com pouco ou nenhum item MEL (Minimum Equipment List), comprometendo de forma considerável a taxa de despacho do avião. Uma pequena pane pode atrasar ou cancelar um voo que potencialmente transportaria mais de 800 passageiros. E segundo, a viabilidade no transporte de passageiros esbarra em uma questão legal, a quantidade e a disposição de saídas de emergência.

Mais espaço e menos ruído 

Airbus
A Airbus está desenvolvendo o projeto Maveric, que explora a viabilidade técnica e industrial da aplicação da asa voadora na aviação comercial. No entanto, os dados disponíveis ainda são bastante preliminares | Foto: Airbus

Para tornar o avião certificável, é necessário revisar os manuais atuais de homologação e ainda atender a requisitos bastante rígidos e pouco flexíveis do ponto de vista legal e até mesmo prático. Por mais que seja possível revisar as regras, não necessariamente será viável construir o avião.

Entre os pontos positivos do projeto se notou o menor consumo de combustível, a maior capacidade de transporte e a redução significativa do ruído. Seu formato em asa voadora, integrando fuselagem e asa de forma fluída, somado à ausência dos estabilizadores verticais e horizontais, reduziu drasticamente o arrasto. Sem depender de um tubo fixado em uma asa, o espaço interno é maior e melhor utilizável. Por fim, com motores montados sobre a fuselagem ou mesmo dentro dela, é possível reduzir o ruído que chega ao solo.

Por ora, o conceito BWB criado há quase 35 anos poderá dar origem ao próximo avião de reabastecimento dos Estados Unidos ou um novo cargueiro estratégico de grande capacidade.

B-21 Raider
B-21 Raider pode ditar os novos rumos do conceito de asa voadora e comprovar sua viabilidade econômica e operacional

A boa reputação do B-2 ao longo de quase 27 anos de serviço e os avanços obtidos no B-21 Raider poderão no médio prazo viabilizar o surgimento de novos aviões militares com formato de asa.

Todavia, é pouco provável que, no curto ou médio prazo, possamos assistir a uma revolução no transporte civil. Não será surpresa se daqui a trinta anos ainda estivermos voando em aviões conceitualmente idênticos ao 707 e muito distantes de uma asa voadora.  

Para ter uma ideia, o B-2 Spirit, o primeiro avião operacional com formato de asa voadora, realizou seu primeiro voo em julho de 1989, mas entrou em serviço apenas em janeiro de 1997, ou seja, 50 anos depois do YB-49. E vale um adendo, ambos os projetos são da Northrop, assim como o B-21.

Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 09/01/2025, às 11h00


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