Os desafios do setor aeroespacial diante de tarifas, protecionismo, governo Trump e a pressão chinesa por Taiwan
Com menos de 100 dias no cargo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, implementou uma série de medidas que impactaram diretamente o comércio internacional e a indústria aeroespacial. Suas políticas protecionistas, baseadas no aumento de tarifas de importação e na renegociação de acordos comerciais, já começam a afetar fabricantes de aeronaves, fornecedores e operadores globais.
A escalada de tarifas sobre insumos estratégicos, como aço e alumínio, e a pressão sobre aliados comerciais, como Canadá, México e Europa, levantam preocupações sobre o futuro da cadeia de suprimentos aeroespacial. Enquanto algumas empresas buscam alternativas para minimizar os impactos, o setor enfrenta desafios que vão desde o aumento dos custos de produção até a escassez de componentes essenciais.
Uma rápida análise do cenário atual mostra que as consequências dessas políticas podem redefinir não apenas a economia americana, mas também o equilíbrio da aviação global.
A possível expansão das políticas protecionistas ao redor do mundo deve vir acompanhada de tarifas de importação mais altas. Além disso, Trump tem utilizado o poder econômico como instrumento de negociação em diferentes frentes. Em 1º de fevereiro, assinou uma ordem executiva impondo tarifas de 25% sobre importações do México e do Canadá, seus dois maiores parceiros comerciais, e taxas de 10% sobre produtos chineses.
No primeiro caso, o objetivo era, entre outros, pressionar seus vizinhos a reforçarem o patrulhamento das fronteiras com os Estados Unidos. O controle imigratório é uma de suas bandeiras políticas, assim como a flexibilidade comercial existente entre os países.
Além disso, Trump também ampliou a pressão sobre a Europa, com ameaças de possivelmente ampliar tarifas e exigindo posicionamentos mais claros da União Europeia, incluindo mudanças no compromisso com a Otan e a Guerra da Ucrânia.
As tarifas de importação, embora funcionem como uma importante arma no mundo atual, podem ter impactos significativos. Segundo um estudo de março de 2024 do Gabinete de Responsabilidade Governamental dos Estados Unidos (GAO), a indústria aeroespacial já enfrentava dificuldades para obter diversos materiais e componentes. Parte do problema decorre de questões geopolíticas e da ruptura das cadeias de produção provocada pela pandemia.
No relatório, quinze fabricantes relataram dificuldades próprias ou de seus fornecedores na obtenção de materiais essenciais para a conclusão de aeronaves. Os itens variavam desde componentes complexos, como motores e semicondutores, até peças menores, como janelas e parafusos, além de materiais semiacabados, como alumínio e aço. Para mitigar essa escassez, as empresas reforçaram o monitoramento dos fornecedores e buscaram novas fontes de suprimento.
Uma das ordens executivas de Trump, assinada em 10 de fevereiro, impôs uma tarifa de 25% sobre alumínio e aço, eliminando isenções e cotas livres de impostos. “Estou simplificando nossas tarifas sobre aço e alumínio para que todos possam entender exatamente o que isso significa. São 25%, sem exceções ou isenções”, declarou Donald Trump.
A medida faz parte de uma promessa de campanha: reindustrializar os Estados Unidos, uma pauta sensível para os moradores do chamado Cinturão Industrial, que se estende do Nordeste à região dos Grandes Lagos.
Os fabricantes aeronáuticos dependem historicamente de amplas redes de fornecedores globais, com produção distribuída dezenas de países. Mesmo a França, que restabeleceu sua indústria no pós-guerra sob a premissa de independência, jamais conseguiu centralizar 100% da fabricação de uma aeronave — o mesmo ocorre com todas as nações de forte presença no setor aeroespacial, incluindo EUA, Rússia, China e Brasil.
Os embargos ocidentais contra a Rússia ilustram essa dependência de fornecedores globais. Até mesmo caças da família Sukhoi sofreram impactos na cadeia de suprimentos, já que alguns componentes eram fabricados fora do país. O Sukhoi Superjet, primeiro avião comercial russo da era pós-soviética, vinha substituindo gradualmente os componentes ocidentais por equivalentes nacionais, mas ainda enfrenta dificuldades para nacionalizar certos sistemas. O MS-21 (em cirílico, MC-21) seguiu a mesma trajetória: projetado para contar com uma ampla rede de fornecedores ocidentais, tornou-se inviável após os embargos. A previsão atual é nacionalizar todos os sistemas, o que adicionará alguns anos de atraso no programa.
Por outro lado, os vetos à Rússia afetaram o fornecimento de matérias-primas e itens semiacabados, como o titânio, essencial para os principais fabricantes aeronáuticos. Para contornar o embargo, as empresas buscaram novos fornecedores e, em alguns casos, recorreram a brechas comerciais.
A pandemia iniciada há cinco anos foi um dos exemplos de como a indústria aeroespacial é globalmente conectada e pode ser duramente impactada por uma série de fatores, desde questões de saúde até políticas populistas, passando por guerras, disputas comerciais, entre outros.
Os pedidos de aeronaves comerciais vêm se recuperando desde a queda em 2020. No entanto, os principais fabricantes do setor ainda enfrentam problemas na cadeia de suprimentos, agravados pelo fechamento de fronteiras entre março de 2020 e meados de 2021.
Para piorar, com a retomada da demanda, que, na maioria dos casos, atingiu ou já superou os números de 2019, muitos pedidos estão atrasados por falta de componentes. Segundo uma pesquisa do GAO, de quinze empresas que fornecem componentes para a Airbus e a Boeing, nove disseram que enfrentam dificuldades para atender aos pedidos com a recuperação da demanda após a pandemia.
Para lidar com essa escassez de materiais, os fabricantes aumentaram o monitoramento dos fornecedores e estabeleceram fontes adicionais para alguns suprimentos. Em outros casos, afastaram-se ao máximo possível de fornecedores chineses ou com bases industriais no país.
A guerra comercial com a China, também acusada de espionagem, intensificou as preocupações dos fabricantes em relação ao futuro próximo. Um agravamento das relações com os Estados Unidos e a Europa pode afetar especialmente o fornecimento de eletrônicos, que representam entre 20% e 30% de um avião moderno, com grande parte da produção concentrada, ainda que parcialmente, na China. O país se tornou o principal fornecedor global de semicondutores e telas, essenciais para aviônicos, computadores, sistemas de entretenimento de bordo e placas eletrônicas.
Outro fator de tensão são as ambições chinesas em Taiwan. A pequena ilha, cujo status político é contestado por Pequim, segue como um ponto de disputa. A China não reconhece sua independência e, nos últimos anos, tem intensificado manobras militares em águas territoriais e no espaço aéreo taiwanês, reafirmando que a reunificação é apenas uma questão de tempo.
Na véspera do fechamento desta edição, o Ministério da Defesa de Taiwan, em resposta às provocações chinesas, afirmou que a história da Segunda Guerra Mundial demonstra o fracasso de políticas expansionistas. Por ora, Pequim não dá sinais concretos de uma invasão iminente, mas as tensões elevam o risco de uma ruptura nas cadeias de suprimentos de componentes eletrônicos, essenciais para setores que vão de eletrodomésticos a satélites.
Com uma área comparável à do estado de Alagoas, Taiwan se consolidou como um dos principais polos de alta tecnologia do mundo. O país abriga dezenas de empresas, incluindo a TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company), que responde sozinha por cerca de 60% da produção global de chips sob contrato (foundry). Atualmente, é o único fabricante capaz de produzir chips de 3 nm e já avança para a tecnologia de 2 nm. O restante da produção está distribuído entre Coreia do Sul, Estados Unidos e China. Já no setor de telas e painéis LED, a China é líder mundial, seguida pela Coreia do Sul, pelo Japão e por Taiwan.
Ou seja, o panorama mostra que um eventual conflito militar na Ásia comprometeria quase a totalidade dos fornecedores de tecnologias avançadas, usadas em centenas de setores ao redor do mundo.
A pressão dos Estados Unidos sobre seus vizinhos gera um cenário preocupante, com risco de encarecer significativamente a produção de aeronaves. Atualmente, Canadá e México são fornecedores estratégicos de componentes avançados para a indústria aeroespacial dos EUA e de outros países.
A divisão canadense da Pratt & Whitney produz os motores PT6, que equipam a maioria dos turboélices do mundo, além de motores turbofan amplamente usados na aviação de negócios. A CAE (Canadian Aviation Electronics) e a Rolls-Royce também mantêm contratos significativos nos Estados Unidos. Já o México abriga fábricas de empresas como Bombardier, Safran, Honeywell Aerospace, GE Aviation e Airbus.
Uma eventual sobretaxa sobre importações do Canadá e do México poderá elevar, progressivamente, os custos de produção de aeronaves nos Estados Unidos e até na Europa. Alguns fabricantes podem ser obrigados a reajustar os preços de seus componentes para compensar o aumento das tarifas dos EUA, impactando o mercado global.
O governo Trump espera que as tarifas incentivem empresas americanas e fornecedores estrangeiros a transferirem sua produção para os Estados Unidos. Caso a estratégia funcione, dois impactos serão imediatos: o aumento dos custos de importação e a necessidade de equilibrar investimentos entre novas fábricas e o fechamento de unidades no exterior. Além disso, há um obstáculo adicional relacionado a escassez de mão de obra qualificada.
Um estudo do GAO revelou que, entre dezessete fabricantes aeronáuticos, quinze enfrentam dificuldades para contratar trabalhadores qualificados. Seis dessas empresas apontaram que a escassez pode estar ligada às condições de trabalho exigentes ou arriscadas, como a exposição a produtos químicos tóxicos. Além disso, há uma queda no interesse das novas gerações em seguir carreira na aviação, setor visto como pouco atrativo financeiramente e com baixo prestígio. Para reverter esse cenário, alguns fabricantes têm oferecido incentivos financeiros e parcerias com escolas locais para estimular o ingresso na indústria aeroespacial.
Parte da demanda por mão de obra especializada, incluindo os chamados cargos C-level, tem sido suprida por profissionais estrangeiros, com destaque para a Índia. Atualmente, dezenas de CEOs e diretores de grandes empresas norte-americanas, além do setor aeroespacial, são de origem indiana, como na Alphabet (Google), Microsoft, IBM, Adobe e Honeywell..
Até o momento, as novas regras imigratórias dos Estados Unidos miram apenas imigrantes ilegais e, em princípio, não devem impedir a entrada de profissionais altamente qualificados. No entanto, podem dificultar contratações. A incerteza sobre o futuro no país e um possível aumento da xenofobia podem afastar talentos. Esse fenômeno já ocorre há anos na Europa, onde o preconceito contra imigrantes tem levado muitos profissionais a buscar outros destinos.
As tarifas de importação do governo Trump e suas pressões internacionais têm levado empresas e governos a elevar o tom. Em alguns casos, trata-se apenas de retórica, sobretudo quanto à adoção de reciprocidade nas políticas tarifárias em resposta às novas taxas dos Estados Unidos.
No primeiro governo Trump, a Bombardier, já em crise financeira e administrativa, foi uma das mais afetadas por tarifas especiais sobre o então CSeries. Com impostos de 100%, o avião regional canadense, que já enfrentava dificuldades de produção e dependia de um acordo com a Delta Air Lines, perdeu competitividade. A solução foi vender o programa para a Airbus, que transferiu a montagem final para o Alabama, onde já produzia a família A320. Rebatizado como A220, o modelo inaugurou uma nova linha de produtos para a Airbus, garantindo contratos estratégicos nos Estados Unidos.
Para o governo, a negociação representou uma vitória ao gerar empregos no país. Para a indústria, um acordo relevante — exceto para a Boeing, que passou a enfrentar um concorrente interno sem um modelo equivalente para competir. Na ocasião, a solução era a parceria com a Embraer, assumindo 80% do programa E-Jet. Porém, a pandemia e seus efeitos globais inviabilizaram o acordo.
Mais recentemente, durante uma conferência anual de imprensa, o CEO da Airbus, Guillaume Faury, declarou que, diante do risco de novas tarifas do governo Trump, a empresa poderia priorizar entregas para clientes fora dos Estados Unidos..
O governo brasileiro tem adotado uma postura cautelosa diante das políticas protecionistas de Trump. Embora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha declarado que poderia reagir a eventuais sobretaxas, o Itamaraty tem evitado confrontos diretos. A preocupação é que uma guerra comercial com os Estados Unidos impactaria severamente a economia brasileira, prejudicando empresas como a Embraer, sem gerar efeitos concretos sobre os norte-americanos. Diante disso, a estratégia tem sido aguardar para avaliar até que ponto o discurso da Casa Branca se traduzirá em ações práticas.
Na indústria de defesa, pressões políticas e rumores são comuns. Um exemplo recente foi a ameaça de Washington de vetar a venda dos caças Gripen E para a Colômbia, em resposta às críticas do presidente Gustavo Petro a Trump e ao processo de deportação. A Saab, no entanto, negou qualquer interferência, classificando as informações como infundadas. “Neste momento, não temos nenhuma indicação de que as informações veiculadas na mídia estejam corretas e, portanto, não temos motivos para especular mais sobre o assunto”, disse Viktor Wallström, chefe de Comunicação e Sustentabilidade da Saab.
No caso, rumores e pressões são parte do jogo na indústria de defesa, onde questões diversas impactam a disputa e criam cenários desafiadores. O cenário atual, com protecionismo, disputa comercial, populismo e incertezas na Ucrânia, em Israel e em Taiwan, amplia o potencial da geopolítica de impactar a indústria aeroespacial.
Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 04/03/2025, às 14h00
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