Os desafios de implementar um ecossistema para eVTOL no mundo passa por regulamentação, capacidade das baterias e excesso de modelos com conceitos diferentes
Impasse na véspera dos Jogos Olímpicos de Paris foi o prenúncio dos obstáculos que fabricantes e operadores dos veículos aéreos elétricos urbanos vão enfrentar até que haja condições para o conceito se popularizar
Faltando poucos para a abertura dos Jogos Olímpicos de 2024, o governo da França e a prefeitura de Paris entraram em rota de colisão por causa do uso dos chamados eVTOL, os veículos aéreos elétricos de pouso e decolagem verticais.
O conceito popularmente chamado de carro voador promete revolucionar o transporte urbano, em especial em grandes cidades ou durante eventos internacionais, esportivos ou não.
Lançado há quase uma década, o conceito foi desenvolvido pela Uber, ainda com o nome Elevate, com a promessa de melhorar o tempo de deslocamento nas cidades e reduzir as emissões de poluentes. A ideia não era recente, desde os anos 1950 existiam diversas propostas para criar veículos aéreos urbanos, seja no formato clássico de um carro voador ou até mesmo como os veículos do clássico desenho Os Jetsons.
Hoje, a diferença é que finalmente a proposta parece viável, em especial pelo desenvolvimento de novas tecnologias de computadores – que, no passado, já haviam permitido a aeronaves extremamente instáveis, como o B-2 e o F-117, voar com segurança.
Além disso, os drones domésticos de quatro, seis e até oito rotores comprovaram ser possível sustentar o voo com uma nova abordagem, antes sempre baseada em asas dobráveis ou motores a jato. Logo, um dos primeiros desafios foi resolver como esse projeto seria viável do ponto de vista energético, de controle de espaço aéreo e, sobretudo, regulamentar.
A parte tecnológica rapidamente avançou, com empresas como a Airbus, Embraer, Textron e diversas startup investindo consideráveis recursos humanos e financeiros para criar projetos realmente inovadores.
A própria American Helicopter Society (AHS, na sigla em inglês), a sociedade de pesquisa para asas rotativas dos Estados Unidos, passou a reunir grupos de pesquisas relacionados ao eVTOL. Todavia, a regulamentação aeronáutica representa um dos maiores entraves para esse tipo de negócio, já que cada país conta com uma interpretação própria a respeito do uso de veículos aéreos não tripulados. E, mesmo em casos especiais, como em Paris, pode existir conflito de leis.
No caso francês, o sobrevoo da cidade de Paris segue uma série de normas, com grande parte do perímetro urbano sendo considerado proibido ou restrito a voos civis. Entre os argumentos estão a poluição sonora, o risco de acidente envolvendo áreas com grande concentração de pessoas e ainda a ameaça de um acidente causar a destruição de patrimônio histórico, como a Torre Eiffel ou o museu do Louvre, para citar os mais famosos.
E, não menos importante, a prefeitura de Paris argumentou que o VoloCity, o eVTOL da alemã Volocopter, emite uma quantidade elevada de poluentes por passageiro transportado, dada sua capacidade restrita para apenas dois ocupantes.
Ainda que a aeronave seja elétrica, suas nove baterias de alta capacidade exigem um constante abastecimento, o que, na prática, cria um problema energético e aumenta as emissões de poluentes. Isso porque a França gera boa parte de sua energia elétrica utilizando usinas nucleares, mas, quanto mais se demanda energia, mais as usinas trabalham e uma maior quantidade de lixo nuclear acaba sendo gerado. Sem contar que mais pessoas se deslocam para as plantas nucleares, criando mais demanda energética.
Evidentemente que a dependência atual dos eVTOL por energia elétrica será tão baixa que, na prática, não muda nada, mas o temor é que, mais para frente, isso se torne um novo problema para Paris e o mundo.
A regulamentação aeronáutica em si parece um ponto próximo de ser solucionado globalmente. A maior parte das agências, em especial a brasileira Anac, a norte-americana FAA e a europeia EASA, contam com grupos de trabalho e consultas públicas em fase avançada.
No caso nacional, no último dia 9 de maio, a Anac realizou um evento virtual, por meio do Grupo de Segurança Operacional de Helicópteros, para debater o tema do eVTOL. O trabalho contou com a presença de representantes da EVE, do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) e outros Grupos Brasileiros de Segurança Operacional, como o Brazilian Commercial Aviation Safety Team (BCAST) e o Brasil Airport Infrastructure Safety Team (BAIST).
A infraestrutura também é um desafio, tanto físico, ou seja, de sua instalação, como também de regulamentação. A cidade de São Paulo, que tem a segunda maior frota de helicópteros do mundo, enfrenta problemas do elevado número de helipontos instalados, sendo que, na última década, diversos deles tiveram suas licenças canceladas. Entre os motivos era a proximidade entre helipontos, em especial os instalados sobre edifícios, ou ainda a localização em áreas sensíveis, como no entorno de hospitais.
No caso parisiense, existem poucas opções e as rotas são bastante restritas, quase todas sobrevoando o Rio Sena. O projeto experimental da Volocopter deveria usar o Vertiport Paris-Austerlitz, nas margens do Rio Sena, um dos únicos disponíveis para operação de eVTOL.
No dia 8 de agosto a aeronave Volocopter decolou do vertiporto inaugurado do Aeródromo de Saint-Cyr-l'Ecole, construído pelo Groupe ADP, onde realizou a coleta de dados sobre como melhorar as operações com eVTOL em áreas urbanas densamente povoadas. Três dias depois, a empresa conduziu um voo experimental nas dependências do Palácio de Versalhes, Patrimônio Mundial pela Unesco, onde pode concluir a primeira etapa da campanha de testes de validação operacional. A Volocopter e seus parceiros planejam retornar a Paris no final do ano para voar efetivamente no centro de Paris.
"Cada novo local e voo exige um esforço tremendo de nós, nossos parceiros e autoridades", destacou Dirk Hoke, CEO da Volocopter.
E uma conta adicional na infraestrutura. No caso de helicópteros, os helipontos foram criados basicamente com base no peso, já que a maioria das aeronaves tem um desenho padrão, permitindo, assim, definir áreas de segurança e manobra. Já os eVTOL contam com diversos modelos, tipos de propulsão e desenhos, que vão de quatro rotores até conceitos com asas de geometria variável, uso de motores elétricos a jato, entre outros.
“Essas aeronaves têm uma grande diversidade de modelos, tem até asa fixa. Quando pensamos em infraestrutura é um desafio, já que existe uma gama tão variada de aeronaves e precisamos avaliar como padronizar isso”, destacou Maria Paula Boechat Borges de Macedo, coordenadora-técnica na Anac e membro do Vertical Flight Infrastructure Working Group da ICAO. “A maioria das aeronaves está em desenvolvimento e processo de certificação, com muitas ainda surgindo. Assim, não conhecemos com profundidade o que será necessário para desenhar um regulamento. Isso é realmente um desafio”.
A própria Anac reconhece os desafios enfrentados no chamado EIS (Entry-Into-Service), pois exige não apenas uma regulamentação, mas ainda o desenvolvimento do ecossistema eVTOL, planejamento de rotas e infraestrutura de vertiportos.
Um executivo do mercado de asas rotativas que preferiu não se identificar levanta ainda outra questão. “Se houver disputa por espaço, um dono de helicóptero de milhões de dólares levará vantagem financeira nessa guerra, pois não vai se importar de pagar alguns milhares de reais para pousar e decolar, enquanto o usuário de um sistema de táxis-aéreos elétricos contratados via aplicativo terá a opinião pública ao seu lado, podendo pressionar as autoridades com o argumento de que aeronaves mais silenciosas e menos poluentes devem ter prioridade na cidade em detrimento dos helicópteros”, ponderou. “Por questões de segurança, penso que os eVTOL deverão ser operados somente por empresas de táxi-aéreo, cobrando valores acessíveis, talvez 200 ou 300 reais dependendo do voo”.
A FAA originalmente tinha como proposta utilizar como regra base o FAR Part 23, com requisitos especiais, porém, este ano revisou drasticamente a abordagem para certificação eVTOL.
Agora, o processo será como aeronaves de decolagem motorizada sob o processo de classe especial, previsto no 14 Code of Federal Regulations 21.17 (b), a mesma criada para atender ao tiltorotor AW609 da Leonardo.
Porém, a mudança ainda exigiu o desenvolvimento de critérios de aeronavegabilidade de classe especial, na forma de um G-1, com emissão para cada modelo em certificação.
A reavaliação das regras ocorre em um momento em que a agência norte-americana sofre pressões por conta de uma série de problemas com a Boeing, que colocou em dúvidas processos regulamentares existentes, sobretudo requisitos especiais, que nada mais são do que uma readequação das regras.
O problema é que empresas como Joby Aviation, Archer e Beta Technologies estruturaram seus projetos no pressuposto do FAR 23, que entrou em vigor em 2017. A mudança das regras colocou mais pressão na agência e deixou investidores em dúvidas sobre a viabilidade no curto prazo da indústria de eVTOL.
Por décadas, a indústria aeronáutica trabalhou confiante de que os regulamentos discutidos em conjunto com a FAA seriam quase pétreos. Entretanto, os problemas criados pelo 737 MAX lançaram dúvidas na opinião publica se o modelo regulamentar adotado era adequado, obrigando uma revisão em todo o processo.
Segundo um relatório de 2022, divulgado pelo Gabinete do Inspetor Geral (OIG) do Departamento de Transportes dos Estados Unidos, a pressão interna impediu um progresso adequado sobre o caminho de certificação dos eVTOL, com as mudanças nos termos sendo um entrave ao avanço do processo no curto prazo.
Na Europa, a Volocopter trabalha junto à EASA para obter a certificação até o próximo ano, ao mesmo tempo que tenta provar junto às autoridades parisienses que seu eVTOL atende às questões legais de emissões sonoras e de gases poluentes.
Uma das virtudes do Brasil é ser, novamente, pioneiro em algumas questões aeronáuticas. Com a EVE trabalhando no seu primeiro projeto, o EVE-100, no país, a Anac tem maior acesso a detalhes técnicos e principalmente, aos engenheiros que atuam no programa de desenvolvimento.
Além disso, a Anac é membro do Certification Management Team (CMT) junto com FAA, EASA e a canadense TCCA, o que permitirá que grande parte das regras e soluções criadas no país sejam aceitas globalmente. Algumas podem, inclusive, tornar-se base para o processo global de certificação.
Porém, como mesmo o EVE-100 está em fase de desenvolvimento, o caminho ainda é bastante longo e provavelmente a meta da indústria de ter os primeiros modelos voando comercialmente até 2025 não será possível.
Esta fala ocorreu há quase dois anos, mas seu teor se mantém valido e a situação segue ainda bastante desafiadora. “Do ponto de vista da regulação, há muito trabalho a ser feito, não somente em relação à tecnologia da aeronave, mas na definição de todo ecossistema”, apontou Roberto Honorato, superintendente de Aeronavegabilidade da Anac.
A Embraer também tem trabalhado em conjunto com as principais agências reguladoras para desenvolver um ecossistema dedicado aos eVTOL. Um dos destaques é o desenvolvimento de um software de Gestão de Tráfego Aéreo Urbano (UATM) para permitir a operação regular dos eVTOL.
O sistema de software de gerenciamento de tráfego aéreo está sendo desenvolvimento pela Atech, pertencente à Embraer, que tem ampla experiência em gestão de tráfego aéreo, inclusive fornecendo soluções ao Decea.
“Além de vencer os desafios do veículo, tem o desafio do ecossistema. Ele precisa ser desenvolvido”, destacou Luiz Renato Mauad, vide-presidente da EVE, durante o webinar da Anac. “Corredores aéreos e regras de voo também devem ser criados para os eVTOL”.
Globalmente, a indústria trabalha intensamente na criação do Advanced Air Mobility, o nome técnico para o ecossistema eVTOL, com uma presença cada vez maior de empresas tradicionais e de startups.
Eventos como o NBAA-BACE e EAA AirVenture têm assistido ao número cada vez maior de projetos sendo apresentados, demonstrando o interesse da indústria e do mercado no segmento de mobilidade aérea urbana.
Contudo, a regulamentação e o conflito em leis, como o caso parisiense, ainda são um desafio no curto prazo. Além disso, a profusão de projetos deverá se consolidar em alguns poucos, como foi no caso relativamente recente dos Very Light Jets (VLJ), onde mais de uma dezena de aviões surgiram, mas um pequeno número conseguiu mostrar sua viabilidade.
Da mesma forma que os VLJ, parte dos dramas e desafios devem se assentar naturalmente conforme os primeiros modelos entrarem em serviço. Por enquanto, é pouco provável que o anunciado ano de 2025 será o início de uma “Era de Carros Voadores”, sendo talvez, apenas uma amostra do que poderemos ver no futuro.
Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 09/09/2024, às 14h00