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Perda de controle em voo

Eventos LOC-I representam um elevado risco de acidentes fatais e requerem ações preventivas de pilotos para evitar a perda de controle em voo


Pilotos do 3407 aplicaram quase simultaneamente procedimentos exatamente opostos à técnica de recuperação de estol - NTSB
Pilotos do 3407 aplicaram quase simultaneamente procedimentos exatamente opostos à técnica de recuperação de estol - NTSB

Em 12 de fevereiro de 2019, um turbo-hélice Bombardier Q400, cumprindo o voo Colgan Air 3407, uma curta etapa entre Newark e Buffalo, nos Estados Unidos, caiu a poucos minutos de realizar o pouso, matando seus 49 ocupantes e mais uma pessoa em solo, configurando-se no acidente de maior impacto regulatório da indústria norte-americana de transporte aéreo nas últimas décadas.

Além de levantar diversas questões relacionadas ao treinamento de pilotos e ao gerenciamento de fadiga, esse acidente deu origem à chamada regra do whole-ATP crew: a partir de então, mesmo os copilotos passaram a ter como requisito mínimo para compor uma tripulação em voos comerciais regulares a licença de piloto de linha aérea (na quase totalidade dos países, copilotos podem compor tripulação apenas com a licença de piloto comercial).

Durante o curso da investigação, o Conselho Nacional de Segurança de Transporte (NTSB, na sigla em inglês) descobriu que a tripulação perdeu o controle de uma aeronave em perfeitas condições de funcionamento por não ter identificado uma iminente condição de estol, agravada pelo tempo de exposição à condição de formação de gelo nos minutos que precederam a queda.

Contrariando a ativação do stick shaker (que alerta os pilotos por meio de vibração do manche) e, posteriormente, do stick pusher (que corrige o ângulo de ataque empurrando automaticamente o manche), o comandante, que era quem operava a aeronave na etapa, manteve-se cabrando a aeronave enquanto a copiloto recolheu os flaps.

Em suma, os dois pilotos aplicaram quase simultaneamente procedimentos exatamente opostos à técnica de recuperação de estol, fato que, agravado pela baixa altura da ocorrência, foi determinante para o trágico desfecho do evento.

Na aviação comercial regular, eventos de perda de controle em voo, conhecidos no meio aeronáutico por Loss of Control-Inflight (LOC-I), são raros, mas, dicotomicamente, são responsáveis pela quase totalidade das fatalidades dos acidentes, em conjunto com as ocorrências de colisão controlada com o terreno (CFIT).

Segundo um estudo da Flight Safety Foundation, que compilou dados da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO), em 2015, apenas 3% de acidentes da aviação comercial regular foram do tipo LOC-I, mas corresponderam a um terço dos eventos fatais.

Em estudo similar, a Associação Internacional do Transporte Aéreo (IATA) revelou que, entre 2012 e 2016, houve 949 fatalidades na aviação comercial regular por perda de controle em voo. Outra reveladora estatística dá conta de que 93% dos eventos envolvendo LOC-I resultam na perda completa da aeronave e que 90% dos eventos causam, no mínimo, uma fatalidade.

Definição

Como definição genérica, LOC-I pode ser considerada a excursão da aeronave do voo controlado, com entrada em condição adversa, ou seja, fora do envelope normal de voo.

A ICAO especifica que a perda de controle em voo é uma manifestação extrema de um desvio da trajetória de voo desejada. Tais definições se caracterizam, contudo, pelo uso de expressões ambíguas como “manifestação extrema” e “condição adversa”. Advoga-se que pilotos com diferentes repertórios têm entendimentos distintos para essas condições.

Em busca de parâmetros mais objetivos a indústria passou a adotar a expressão “estado indesejado”, ou aircraft upset, com às seguintes condições:

  • Pitch superior a 25 graus;
  • Pitch inferior a 10 graus negativos;
  • Inclinação de asa superior a 45 graus;
  • Aeronave dentro das tolerâncias de atitudes acima, mas com velocidade incompatível com a condição de voo esperada.

Apenas 5% do espaço de possibilidades é representado pelo envelope acima. Mesmo expandindo o envelope para aquele que pode ser reproduzido em eventos de treinamento (60 graus de bank e 30 graus de pitch up), a maior parte dos pilotos estará exposta, e 99,9% do seu tempo, a apenas 11% do espaço de possibilidades.

Categorias de Alto Risco

A ICAO leva em consideração fatores como o número absoluto de fatalidades, o porcentual de fatalidades sobre o total de ocorrências e o número de ocorrências para classificar, em seu Global Aviation Safety Plan (DOC 10094), certos tipos de eventos como High Risk Categories (HRC).

Em conjunto com CFIT, colisão em voo e eventos de runway safety, o LOC-I compõe essa lista.

A Gênese do LOC-I

Quatro podem ser as causas da perda de controle em voo: fatores externos, falhas de componentes e falhas induzidas pelos pilotos, além de combinações de duas dessas três.

Fatores externos seriam turbulências de diferentes origens, windshear e microbursts e gelo, mas não se limitando a fatores meteorológicos. Um exemplo recente de perda de controle em voo decorrente de fatores externos ocorreu com um Bombardier Challenger de matrícula alemã, que perdeu nove mil pés e sofreu deformações estruturais permanentes após encontrar a esteira de turbulência de um A380 sobre o Oceano Índico, em janeiro de 2017.  

Já as falhas de componentes abarcam perdas de instrumentos, panes de piloto automático ou, ainda, aspectos estruturais e de controles de voo. Um exemplo marcante de perda de controle em voo por falha estrutural foi a queda do MD-83 da Alaska Airlines na costa da Califórnia, em janeiro de 2000, que culminou com a queda da aeronave no Oceano Pacífico em atitude quase vertical: procedimentos de manutenção e aspectos organizacionais contribuíram para a quebra em voo da estrutura que limitava o curso do estabilizador horizontal.  

Por fim, há as perdas de controle induzidas pelos pilotos que, infelizmente, respondem pela maior parte das ocorrências: interpretação errônea de instrumentos, distração das tarefas prioritárias, desorientação espacial e uso inapropriado da automação.

Neste ponto, é importante ressaltar a diferença de comportamento tanto da aeronave como do piloto em um estol previsto, como o que ocorre em treinamentos, em relação a um estol não previsto e oriundo da aplicação de comandos errados, como será visto adiante. Outro fator de atenção é o alto risco em operações single-pilot, que geram seis vezes mais acidentes do que operações com dois pilotos.

O Grande Vilão

Quando se trata de aviação geral, eventos típicos de LOC-I que precedem um acidente envolvem o estol a baixa altura seguido de entrada em parafuso. Uma vez que a perda de controle associada à pouca altura para recuperação quase sempre se torna fatal. Tal cenário se desenvolve quando um piloto faz uso de grande inclinação de asa, ou de comandos cruzados para salvar uma aproximação. Se não houver espaço suficiente para uma correção suave, uma arremetida deve ser seriamente considerada, já que correções bruscas envolverão grande inclinação de asa a baixa altura.

Um estudo publicado pela Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves (AOPA), no início dos anos 2000, trouxe dados de 450 eventos caracterizados como estol-parafuso (stall-spin) envolvendo aeronaves leves nos Estados Unidos. Mais de 80% tiveram início abaixo de mil pés sobre o terreno, não coincidentemente a altura requerida para se realizar um circuito de tráfego.

Cenários típicos de eventos de stall-spin envolvem aeronaves adotando bank de 45 graus na final, inclinação certamente excessiva para essa fase do voo. Se essa inclinação não é suficiente, o piloto faz uso do leme também para a esquerda, objetivando apertar a curva sem aumentar o bank. Todavia, ante grandes inclinações, o uso do leme tem efeito contrário ao esperado, e tende a aumentar o bank para dentro da curva.

Para contrariar esse aumento indesejado de inclinação, o piloto desfaz essa inclinação, configurando uma situação de curva derrapada e com comandos cruzados (o leme continua sendo aplicado à esquerda, para trazer a aeronave de volta ao eixo, e o aileron permanece neutralizado ou à direita, desfazendo o bank), que, quando associada a uma baixa velocidade, levará a um estol da asa mais baixa (a esquerda).

Como o estol será consideravelmente assimétrico, a entrada em parafuso será brusca e demandará muita altura para a recuperação, o que vai depender, dentre outras coisas, da familiaridade do piloto com as técnicas de saída da condição stall-spin.

Algumas boas técnicas podem ser adotadas para evitar que a aeronave entre nesta perigosa configuração:

  1. Manter a consciência situacional alta, antecipando ações de correção;
  2. Configurado o erro, o piloto deve resistir à tentação de salvar a aproximação por meio de correções agressivas a baixa altura. Uma arremetida é uma saída bem mais fácil do que lutar com os comandos em uma situação de pré-estol. É simples em teoria, mas um comportamento nem sempre observado na prática;
  3. Outra sugestão é prolongar a perna do vento e voá-la ligeiramente afastada do aeroporto. A configuração de 2,5 milhas náuticas características das ATZ permite amplo espaço para essa técnica com aeronaves mais lentas. Com isso, é possível usar pouca inclinação (20 graus) em todo o circuito de tráfego;
  4. Considere a seguinte situação: uma aeronave em determinada configuração entra em estol com 60 nós. Em um circuito de tráfego típico, empregar 75 nós em trajetória descendente e com curvas de pequena inclinação credita grande margem de segurança. Entretanto, ao se ver em uma situação de overshoot da final, se o piloto segurar o nariz e simultaneamente adotar 45, a velocidade de estol sobe rápido para perigosos 72 nós. Em suma, um piloto extremamente habilidoso terá capacidade para fazer tais correções, enquanto um piloto extremamente seguro não vai nem tentar efetuá-las.

* Francisco Augusto Costa é mestre em
Transporte Aéreo pelo ITA e piloto de A320

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Por Francisco Augusto Costa*, especial para AERO Magazine
Publicado em 05/10/2022, às 16h17


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