Ao voar em grandes altitudes o equilíbrio entre a velocidade e a sustentação passa a ser conhecido como borda do caixão
Ao voar em grandes altitudes os pilotos enfrentam um desafio onde o equilíbrio entre a velocidade e a sustentação se torna um jogo perigoso conhecido no jargão aeronáutico como "coffin corner", literalmente borda do caixão.
Conheça as implicações técnicas e os riscos associados a essas condições críticas de voo que continuam a testar os limites da aviação moderna. Já falamos aqui sobre velocidades e altitudes. Agora, vamos explicar de forma simplificada como essas duas variáveis se combinam durante voo e, também, como, juntas, definem limites físicos ao desempenho, ao peso e ao alcance das aeronaves.
Além de entender por que, mais de 60 anos após a estreia dos jatos de passageiros, os mais modernos e sofisticados aviões intercontinentais voam hoje em velocidades inferiores àquelas que eram alcançadas por esses aviões pioneiros.
Pouco importa se o avião é um pequeno Cessna 170 ou um gigantesco Airbus A380. Todas as máquinas mais pesadas que o ar, desde o 14-bis de Santos Dumont, voam obedecendo a limites impostos pela velocidade com que o aparelho se desloca relação ao ar à sua volta, uma medida que se conhece por IAS (indicated airspeed).
O primeiro desses limites de voo é a “velocidade de estol”: o ponto de equilíbrio em que as asas do avião cortando o ar começam a gerar uma força de sustentação igual ou maior que o peso total da aeronave, tornando possível o voo.
Essa IAS mínima para o voo depende diversos fatores: pode ser de meros 37 nós (70 km/h) em um CAP-4 Paulistinha de aeroclube levando um único ocupante; de 200 a 230 nós (370 a 426 km/h) num wide-body comercial como o Boeing 767 com os flaps recolhidos (variando em função do peso) ou superar os 300 nós (556 km/h) em um caça de combate totalmente carregado.
As IAS mínimas variam muito pouco com a variação da altitude, mas quanto mais pesado estiver um avião, maior será a IAS necessária para mantê-lo voando.
O segundo limite básico é a IAS máxima em que a aeronave pode se deslocar sem que o controle do voo fique comprometido ou sem que sua estrutura comece a ser danificada. No nosso Paulistinha, essa IAS – conhecida como VNE (velocity never exceed) – é de 120 nós (222 km/h).
Em um Boeing 767 ela é chamada de velocidade máxima operacional (VMO) e é limitada a uma IAS de 360 nós (667 km/h). Esses dois limites, no entanto, raramente equivalem às velocidades reais de deslocamento ou TAS (true air speed) dos aviões. Como vimos nos artigos anteriores, a IAS só se iguala à TAS numa atmosfera padrão ISA (International Standard Atmosphere), medida ao nível do mar.
Como regra geral, pouco após a decolagem os pilotos retraem os flaps das asas e começam a ganhar altura mantendo uma IAS constante, um pouco acima do limite de estol do avião.
Em jatos comerciais a IAS de subida (climb speed) costuma ficar em torno de 210 a 250 nós. Mas à medida em que a aeronave sobe (e cai a pressão atmosférica), essa IAS constante diverge em relação TAS, que continua aumentando. Ou seja: em relação ao terreno, o avião está acelerando à medida em que sobe.
Quando chega a 3 mil pés acima do nível do mar, uma IAS de 250 nós já equivale a uma TAS de 272 nós. A 33 mil pés (cerca de 10 mil metros) – um nível de voo (FL 330) onde os jatos comerciais já voam confortavelmente em cruzeiro – esses 250 nós de IAS representam cerca de 450 nós de TAS, o equivalente a 833 km/h.
Já vimos que a IAS máxima operacional (VMO) de um Boeing 767 é de 360 nós, e sabemos que seu teto de serviço é de 43 mil pés (13 mil metros). Diante disso, seria possível supor que bastaria aos pilotos acelerar os motores para aumentar a velocidade e subir ainda mais.
Caso eles conseguissem chegar aos 43 mil pés com uma Indicated Air Speed de 350 nós, seu pacato avião de passageiros estaria se deslocando com uma True Air Speed de 800 nós, ou 1.480 km/h – fazendo inveja a muitos jatos de combate. Mas, infelizmente, o voo em grandes altitudes não funciona desse modo.
Nos últimos anos da 2ª Guerra Mundial, tanto a Alemanha como os países aliados conseguiram desenvolver aviões de combate bastante velozes, tanto movidos a hélice como usando os primeiros motores a jato.
Seus pilotos começaram a relatar estranhos efeitos sobre os aparelhos quando, em mergulhos a grandes altitudes, a TAS se aproximava da velocidade de deslocamento do som – ainda que a IAS estivesse confortavelmente abaixo dos limites de VNE dos aparelhos. Em algumas situações, os aviões deixavam de obedecer aos comandos e entravam em uma queda descontrolada e irreversível.
Pilotos de teste e engenheiros logo chegaram a algumas conclusões: a barreira do som só poderia ser superada por aviões especialmente projetados para isso, e mesmo o voo em velocidades próximas à do som iria exigir novos estudos e refinamentos aerodinâmicos, como o uso de asas e estabilizadores com ângulo de enflechamento (pontas deslocadas para trás em relação à raiz).
Além disso, descobriram que – mesmo em altitudes muito elevadas – à medida em que a velocidade se aproxima de Mach 1 [veja o boxe o abaixo] a resistência do ar cresce exponencialmente, embora volte a cair após ser superada essa barreira.
Por isso, aviões subsônicos tem um limite de velocidade Mach crítica (Mcr or Mcrit) que, dependendo do seu projeto, fica usualmente entre Mach 0,7 e 0,9 – a partir do qual começam a se formar filetes de ar supersônicos nas asas, acentuando as ondas de choque e alterando o comportamento aerodinâmico.
Ao superar esse limite, o arrasto aumenta de forma abrupta e, em aviões não projetados para essas velocidades, o controle do voo começa a ficar comprometido. A partir de meados dos anos 1950, boa parte das características do voo transônico já eram bem conhecidas e tiveram papel essencial na evolução dos aviões militares e também dos primeiros jatos de passageiros que começavam a sair do papel.
Jatos comerciais de longo alcance com frequência partem dos aeroportos carregados no limite do seu MTOW (maximum takeoff weight ou peso máximo de decolagem), sendo que boa parte dessa carga corresponde ao combustível que será consumido para cruzar extensões de terras e oceanos sem escalas. Por conta desse peso, nas primeiras horas de voo a “velocidade de estol” (ou IAS mínima) do avião é bastante elevada. À medida em que a aeronave atinge grandes altitudes, esse valor de IAS mínima se converte em uma TAS cada vez mais alta, enquanto que a velocidade do som vai se reduzindo pouco a pouco com a queda da temperatura. A partir de uma certa altura, essas curvas se aproximam e o “envelope de voo” do avião se torna extremamente restrito.
Voltemos ao nosso Boeing 767 que voa com os tanques ainda cheios no FL330, um nível da atmosfera onde velocidade do som fica em torno de 583 nós (1.080 km/h). Nessa condição, sua “velocidade estol” ou IAS mínima de 230 nós converte-se em uma TAS de 415 nós – ou Mach 0,71.
Como a velocidade Mmo (Mach máxima operacional) prevista no projeto do Boeing 767 é de Mach 0,84 (equivalente a 490 nós de TAS no FL 330) isso significa que, nesse nível de voo, os pilotos podem voar o avião com segurança mantendo a TAS entre 415 e 490 nós (770 a 907 km/h), e aumentando ou reduzindo o ângulo de ataque da aeronave para ajustar a força de sustentação gerada
Mas se o comandante tentar levar o avião para FL 400 a situação se complica. A 40.000 pés a velocidade do som cai para 572 nós e, com isso, a Mmo de Mach 0,84 do Boeing 767 impõe um limite máximo à TAS de 480 nós.
Mesmo supondo que o avião já tenha consumido parte do combustível e que, agora mais leve, sua IAS mínima tenha caído para 220 nós, no FL 400 ela passa a ser equivalente a uma TAS 465 nós. Ou seja, a margem de manobra do avião se restringe a essa estreita faixa entre 465 e 480 nós (861 a 889 km/h).
Ao se aproximar da TAS de 465 nós, mesmo com o máximo ângulo de ataque, seu manche irá trepidar, indicando a iminência de um estol. Acelerando para uma TAS de 480 nós o manche volta a trepidar indicando o excesso de velocidade (overspeed).
Essa situação é conhecida como “Q Corner” ou “coffin corner”. Significa que a aeronave chegou ao seu limite de operação, e só poderá ganhar altura (para voar com mais economia) depois de gastar combustível, reduzindo seu peso total e a IAS mínima.
Traz ainda uma preocupação para os pilotos: caso o avião abaixe o nariz repentinamente para evitar o estol, ele pode rapidamente ganhar velocidade e superar seu limite de Mmo, o que não é indicado embora na maioria das vezes não chegue a representar um risco grave. O fabricante permite uma tolerância um pouco mais alta para velocidade Mach em mergulho (Md ou Mdive).
Pequenos diante dos modelos atuais, os primeiros jatos comerciais dos anos 1960 tinham asas com grande enflechamento e motores turbojato derivados de projetos militares. Seu objetivo era voar na maior velocidade possível, para destronar os antigos quadrimotores a pistão nas linhas aéreas de longo curso.
Num mundo com petróleo farto e barato, carregavam muito combustível e eram estruturalmente pesados para os padrões de hoje. Para compensar essa característica, foram projetados com limites de Mmo muito altos, “beliscando” a velocidade do som – mesmo que isso custasse um enorme consumo de combustível.
Lançados em 1961, os velozes Convair 990 Coronado tinham Mmo de 0,91 e podiam atingir 540 nós (1.000 km/h ou Mach 0,87) voando a apenas 20 mil pés. Os Douglas DC-8 também eram famosos por seu desempenho, e consta que um piloto teria ultrapassado ligeiramente (sem intenção) a velocidade do som em 1961, ao fazer um rápido mergulho a 45 mil pés.
Os gigantescos Boeing 747, que voaram no final da década de 1960, foram os últimos aviões comerciais velozes: seu Mmo é de 0,92 e, com muita frequência, o Jumbos cruzavam os céus acima dos 500 nós (926 km/h).
À disparada nos preços do petróleo, a partir das crises dos anos 1970, juntaram-se as pressões das campanhas ambientais para dar um fim à farra da velocidade. A partir dos anos 1980, as prioridades das companhias aéreas voltaram-se para redução de peso estrutural (liberando mais carga paga), economia de combustível, menos emissões de poluentes e operação mais silenciosa.
Surgiram novos motores do tipo turbofan, com ventoinhas de grande diâmetro, que multiplicaram o empuxo a baixa altitude e a eficiência energética, mas hoje eles equipam aviões cuidadosamente otimizados para voar o mais alto possível em velocidades econômicas.
Modelos muito avançados de jatos intercontinentais, como os Boeing 787 e os Airbus A350, conseguem subir rapidamente para níveis de voo na faixa dos 40 mil pés, mas raramente ultrapassam Mach 0,85 como velocidade de cruzeiro. O que, nessa altitude, equivale a 490 nós ou 900 quilômetros por hora. Jatos usados em rotas curtas, como os Boeing 737, A320 e Embraer E-Jet costumam voar ainda mais devagar.
Em junho de 1936, entrou em operação o bimotor Douglas DC-3, avião icônico da evolução por que passava a aviação de transporte na primeira metade do século 20.
Com estrutura e revestimento inteiramente metálicos, esse novo avião comercial norte-americano levava entre 20 e 30 passageiros numa cabine confortável e espaçosa (para a época), inteiramente fechada, com sistemas de ventilação e aquecimento. A velocidade de cruzeiro ficava entre 175 e 185 nós (325 a 340 quilômetros por hora) e o alcance podia superar os 2.000 quilômetros.
Como comparação, o biplano inglês de Havilland Dragon Rapide, que entrou em serviço apenas dois anos antes, levava um máximo de dez passageiros a 115 nós (210 km/h) e tinha menos de 900 quilômetros de autonomia.
O DC-3 incorporava muitas inovações: seus motores radiais Pratt & Whitney dispunham de um compressor centrífugo que pressurizava o ar atmosférico para dentro dos cilindros.
Além de aumentar a potência nas decolagens (as versões mais comuns superavam 1.200 hp ao nível do mar), o compressor garantia com que os motores continuassem a ser alimentados de ar mesmo na atmosfera rarefeita das grandes altitudes: a 13 mil pés (cerca de 4 mil metros) sobre o nível do mar os pilotos ainda dispunham de mais de 700 hp em cada motor.
O DC-3 era também equipado com hélices tripás de “velocidade constante”, uma novidade na época: o ângulo das pás (ou “passo da hélice”) era automaticamente alterado para lidar melhor com as variações na densidade do ar e com os ajustes de potência.
Engenheiros e construtores já haviam constatado que, ao voar mais rápido, os aviões conseguem obter a sustentação aerodinâmica necessária mesmo no ar pouco denso. A vantagem adicional é que a resistência ao deslocamento (arrasto) também se reduz e, com ela, o consumo de combustível.
Em linhas gerais, quanto mais rápido e mais alto voar um avião, maior será sua eficiência energética e seu alcance. Com pouca carga, o próprio DC-3 era capaz de subir até 23 mil pés (7 mil metros) mas seus os ocupantes necessitariam de máscaras para respirar, o que inviabilizava o voo nessa altitude com passageiros.
O problema não tardou a ser solucionado. Em 1940 a Pan American e a TWA colocaram em operação os Boeing 307 Stratoliner, um quadrimotor de passageiros derivado do bombardeiro B-17 “Flying Fortress.
A grande cabine pressurizada acomodava até 38 passageiros que, para superar condições de mau tempo, podiam galgar os céus até os 20 mil pés (6.100 metros), voando a 210 nós (390 km/h) sem maiores inconvenientes.
Mas o principal objetivo desse avião era o conforto dos passageiros: em condições normais, sua velocidade em cruzeiro era similar à do DC-3.
Durante a 2ª Guerra Mundial (1939-1945), a construção de aviões civis foi suspensa, enquanto a tecnologia das aeronaves militares avançou a passos largos. O resultado surgiu ao final do conflito, na forma de uma nova geração de aviões muito mais evoluídos.
Motores mais potentes com sistemas duplos de compressão, além de refinamentos aerodinâmicos e pressurização mais eficiente na cabine, deram aos Lockheed Constellation, Douglas DC-6 e Boeing 377 Stratocruiser a possibilidade de vencer longas distâncias a 270 nós (500 km/h), voando acima dos 25 mil pés (7.600 m), já nos limites da transição para a estratosfera. E seu alcance podia superar os 5 mil quilômetros.
A grande revolução, no entanto, aconteceria no final dos anos 1950, quando entraram em operação os jatos comerciais de passageiros. Os pioneiros foram os de Haviland Comet britânicos (em 1952) e os Tupolev Tu-14 da antiga União Soviética (1956). Pouco depois, os norte americanos estrearam com três quadrimotores a jato de longo alcance: Boeing 707, Douglas DC-8 e Convair 880.
Esses aparelhos voavam acima dos 30 mil pés (9.150 metros), cruzavam em velocidades que podiam superar os 900 km/h e impuseram um novo padrão no transporte aéreo. Um voo da companhia brasileira Panair entre Rio de Janeiro e a cidade do Cairo – por exemplo – que demandava 36 horas nos Constellation, não levava mais que 16 horas nos Douglas DC-8.
* Publicado originalmente na AERO Magazine 319 · Dezembro/2020
Publicado após adaptações para versão online
Por André Borges Lopes
Publicado em 16/09/2024, às 12h00