O que fazer diante de uma situação de Unreliable Airspeed, que compromete a integridade dos dados de voo e põe todos a bordo em risco e como evitar o risco
Dezembro de 1974. Um Boeing 727 decola do aeroporto JFK em Nova York para um curto voo de 40 minutos até Buffalo. A bordo apenas os três membros da tripulação. É uma típica noite de inverno, com céu encoberto a 5.000 pés, chuva moderada e previsão de neve no destino. Após cerca de dez minutos, com apenas 40 milhas voadas, o controle de área de Nova York recebe uma mensagem de “Mayday” da aeronave, informando que eles estão cruzando 20.000 pés, em uma descida fora de controle. Menos de dois minutos após esta transmissão há a colisão com o solo. Não há sobreviventes.
Fevereiro de 1996. Um Boeing 757 decola de Puerto Plata, na República Dominicana, com destino a Frankfurt. Durante a subida, a tripulação recebe diversos alertas, relatando falhas em múltiplos componentes relacionados ao autopilot, flight controls e velocidade. Em menos de seis minutos, a aeronave colide com o oceano, matando todas as 189 pessoas a bordo.
Outubro de 1996. Um Boeing 757 decola de Lima, no Peru, para Santiago, no Chile. Instantes após a decolagem, a tripulação reporta problemas com os instrumentos de voo. Apesar da tentativa do ATC de ajudá-los, a aeronave acaba caindo nas águas do Oceano Pacífico, pouco mais de meia hora após a decolagem, causando a morte de todos os seus 70 ocupantes.
Junho de 2009. Um Airbus A330 que fazia a rota Rio de Janeiro-Paris desaparece no meio do Oceano Atlântico, resultando em 228 vítimas.
O que estes quatro trágicos acidentes, ocorridos com aeronaves de três gerações diferentes, têm em comum? Todos tiveram como fator determinante a perda de indicações confiáveis de velocidade em voo, uma situação conhecida como Unreliable Airspeed. É uma falha de difícil identificação, com características muito ambíguas, que requer uma pronta ação da tripulação e uma técnica de pilotagem à qual os pilotos normalmente não estão acostumados.
A velocidade é um dos parâmetros básicos de performance de uma aeronave. Ela é medida através do sistema pitot-estático, que também fornece informações de altitude, razão de subida e número Mach.
Em aeronaves mais simples, o sistema alimenta diretamente velocímetro, altímetro, modo C do transponder e indicador de velocidade vertical (VSI), ao passo que, em aeronaves de grande porte, esses dados são fornecidos a um ADC (Air Data Computer) que os processa antes de retransmiti-los ao EFIS (Electronic Flight Instrument System) e a vários outros sistemas da aeronave, tais como sistemas de controles de voo (especialmente no caso de aeronaves fly-by-wire), controle dos motores (Fadec), Autopilot/Flight Director/FMS, transponder e pressurização.
Ou seja, parece evidente o quão crítico é uma falha de leitura destes dados para a condução de um voo, em especial em aeronaves modernas e/ou em condições de voo por instrumentos.
O sistema de pitot-estático funciona basicamente coletando e comparando dois tipos de pressão: a pressão estática (PS), do ar ambiente, medida em tomadas estáticas, instaladas ao redor da aeronave, e a pressão total (PT), medida no tubo de pitot, que é a soma da pressão estática com a pressão em função da velocidade da aeronave.
A partir da pressão estática e de sua variação obtém-se, respectivamente, a altitude e a razão de subida/descida (V/S). A velocidade é obtida por meio da comparação da pressão total com a estática.
A diferença entre elas corresponde à pressão causada pelo movimento da aeronave no ar, chamada de Velocidade Indicada (IAS).
Tanto o pitot como as tomadas estáticas são eletricamente aquecidos para evitar formação de gelo. Há ainda um dreno na parte traseira do tubo de pitot que serve para escoar a precipitação que venha a entrar, e que poderia causar erros de indicação.
Aeronaves não pressurizadas normalmente possuem uma tomada alternativa de pressão estática, localizada dentro do cockpit. Uma situação de Unreliable Airspeed ocorre quando há um entupimento do tubo de pitot, do dreno ou das tomadas estáticas, levando a informações errôneas nos instrumentos que dependem do sistema pitot-estático.
As principais causas de falha do sistema pitot-estático são a formação de gelo (causada por esquecimento de ativar o sistema de anti-ice ou falha deste), entupimento por cinzas vulcânicas, por ingestão de objetos (insetos, lama, areia, chuva intensa), esquecimento da remoção das capas protetoras ou, ainda, eventuais danos no radome (impacto de pássaros, granizo etc.), gerando interrupção no fluxo de ar ao redor do sistema pitot-estático.
Aeronaves de grande porte normalmente possuem três sistemas pitot-estáticos independentes, cada um ligado ao seu próprio ADC, a fim de garantir uma maior redundância e possibilidade de identificação e isolamento de falhas.
Raramente um entupimento ocorrerá de uma só vez, o que dificulta ainda mais um pronto reconhecimento da situação. Igualmente, há uma grande possibilidade de mais de um componente ser afetado ao longo do tempo (exemplo, entupimento do pitot e posteriormente do dreno). Veremos a seguir os casos mais comuns e os seus efeitos nos instrumentos de voo. Estes exemplos assumem um entupimento total de cada componente. Para entupimentos parciais, os efeitos podem causar um comportamento distinto dos descritos, dificultando ainda mais a identificação da falha.
Melhor do que se livrar de uma situação de Unreliable Airspeed é não entrar nela. A prevenção começa com uma rigorosa inspeção pré-voo. Deve-se sempre inspecionar atentamente as tomadas estáticas e os tubos de pitot, bem como testar o seu sistema de aquecimento.
Tomar especial cuidado após a aeronave ter ficado parada fora de hangar por muito tempo, ter sido submetida a trabalhos de manutenção, lavagem ou ter estado em uma área com precipitação de cinzas vulcânicas. Adicionalmente, é altamente recomendável sempre colocar as capas protetoras das tomadas estáticas e tubos de pitot, mesmo em tempos de solo curtos.
O callout de velocidade durante a corrida de decolagem (80 ou 100 nós, na maioria das aeronaves de grande porte) pode ser sua última chance de escapar de uma situação de Unreliable Airspeed em voo. Frequentemente negligenciado, este callout serve para se assegurar de que os velocímetros estão funcionando e, principalmente, se estão indicando valores iguais.
Como já foi dito, dificilmente um entupimento afetará todos os sistemas pitot-estáticos de maneira igual, e detectar esta discrepância no callout de 80 nós pode ser a diferença entre rejeitar uma decolagem a baixa velocidade, algo normalmente sem nenhuma consequência, ou descobrir em voo que você está com Unreliable Airspeed.
A tripulação do 757 acidentado em Puerto Plata percebeu durante a corrida de decolagem uma discrepância entre as indicações de velocidade do comandante e do primeiro-oficial, mas optou por continuar a decolagem, com consequências desastrosas.
A parte mais crítica envolve justamente detectar que a aeronave se encontra em uma situação de Unreliable Airspeed. Isso pode ser feito através de um atento monitoramento dos parâmetros de voo e do crosscheck com os instrumentos do outro tripulante e com os instrumentos standby.
Você deve estar familiarizado com os valores típicos de atitude e potência para as diversas fases do voo. Assim, quando um ou mais destes dados variam de maneira anormal, tal como um aumento contínuo da IAS, mesmo após ter aumentado significativamente a atitude/reduzido a potência, ou nenhuma variação de altitude, mesmo com pitch positivo e alta potência, você deve suspeitar de uma falha em seu sistema pitot-estático.
Após detectada a situação de Unreliable Airspeed, você deve manter o controle da aeronave através de ajustes de atitude (pitch) e potência. Normalmente este procedimento envolve alguns itens de memória, de modo a manter uma trajetória segura de voo. Uma boa coordenação de cabine faz-se necessária.
As aeronaves possuem em seu QRH (Quick Reference Handbook) procedimentos específicos para lidar com esta situação. Normalmente envolvem ações imediatas e de memória, tais como: Desacoplar Autopilot, Flight Director e Autothrottle, pois estes estarão recebendo informações errôneas e podem agravar a situação. Manter uma determinada atitude e potência até estar em uma altitude segura (acima da MSA) e então usar tabelas de atitude e potência para estabelecer uma trajetória estável de voo.
Estabilizado em uma trajetória segura, você deve procurar identificar quais instrumentos estão inoperantes e quais são confiáveis. As tabelas de pitch/potência podem ajudar a identificar um velocímetro que ainda esteja funcionando corretamente. A altitude fornecida pelo transponder ao ATC pode não ser a correta.
A informação de altitude fornecida pelo GPS, é geo-referenciada, enquanto a altitude do altímetro é barométrica. A diferença a grandes altitudes pode chegar a mais de 2000 ft. Embora imprecisa, a altitude GPS pode lhe ajudar a manter altitude e separação do terreno.
A baixas altitudes você ainda terá informações de rádio altímetro caso a sua aeronave seja assim equipada. Respeite os avisos de estol. Eles estão ligados a sensores de ângulo de ataque, que operam de maneira totalmente independente do sistema pitot-estático. O FPV (Flight Path Vector) da maioria das aeronaves usa informações de V/S e, portanto, pode não ser confiável com o entupimento das tomadas estáticas, mas permanece funcionando normalmente se o entupimento foi apenas do Pitot.
Sua indicação de groundspeed (derivada do INS ou GPS, ou obtida através do ATC) é valiosa. A grandes altitudes ela servirá para saber se a aeronave está acelerando ou não. Caso você tenha como saber o vento aproximado na sua altitude (através do ATC ou de outras aeronaves nas imediações), será possível um cálculo aproximado de sua velocidade.
A baixas altitudes, a groundspeed servirá para lhe ajudar nas fases finais do voo. Procure pousar em uma pista com vento de proa. Mantendo uma groundspeed igual ou ligeiramente acima da ideal para seu peso, com vento de proa você garante que está acima da velocidade mínima para uma aproximação segura. Procure manter condições visuais/diurnas.
Todos os acidentes com aeronaves comerciais foram causados em condições IFR/Noturnas, o que aumenta de sobremaneira a dificuldade em executar uma aproximação em condições de Unreliable Airspeed.
Procure um aeródromo que esteja operando em condições visuais mesmo que isso implique em prolongar o tempo de voo. Use todos os auxílios que favoreçam sua tentativa de aproximação e pouso (pista mais longa e com vento de proa, ILS, PAPI/VASIS). Não hesite em pedir ajuda ao ATC. Ele pode lhe informar sua groundspeed, vento aproximado em altitude, informação de obstáculos, aeródromos próximos que estejam operando em condições meteorológicas mais favoráveis além de uma vetoração radar para lhe posicionar em uma longa aproximação final estabilizada.
Conforme foi comentado no artigo da edição 288 da Aeromagazine, o estol é uma função unicamente do angulo de ataque (AOA). Tendo conhecimento do AOA em cada fase do voo, a tripulação é capaz de manter uma margem segura do estol, e prosseguir para um pouso, mesmo sem indicação de velocidade.
Diversas aeronaves militares e algumas aeronaves executivas tais como os Learjet Series 20/30, possuem indicadores de AOA e estes podem ser usados para garantir uma margem segura do estol. Mesmo aeronaves da aviação geral estão sendo retrofitadas com estes indicadores de AOA como os da figura abaixo:
A Airbus a partir de 2007 passou a oferecer um item opcional na família A-320/330/340 e como item de série nos A-350/380 chamado BUSS (Back Up Speed Scale). No caso de falha de todos os ADR (Air Data References) a tripulação ativa o BUSS que substitui a indicação de velocidade no PFD por uma “Fly Zone” baseada em AOA, que permite à tripulação voar em uma faixa de velocidades acima do estol e abaixo da máxima para a presente configuração. Além disso ela mostra uma altitude GPS e a baixas altitudes, valores de rádio altímetro, possibilitando um controle mais preciso e instintivo à tripulação e permitindo um pouso seguro, mesmo com falha total do sistema pitot-estático.
Conforme vimos, uma situação de Unreliable Airspeed apresenta grandes desafios. Uma rigorosa inspeção pré-voo é a melhor defesa. Caso esteja em voo, uma correta e rápida identificação de seus sintomas são ações cruciais.
Uma vez constatada, a manutenção de uma trajetória segura, e aplicação dos procedimentos previstos pelo fabricante são a chave para um pouso seguro. Estar preparado para uma situação destas é fundamental.
Acostume-se com os valores típicos de atitude e potência de sua aeronave nas diversas fases do voo (decolagem, subida, cruzeiro, descida e aproximação final) e esteja familiarizado com os procedimentos previstos pelo fabricante de sua aeronave.
Por Paulo Marcelo Soares
Publicado em 16/08/2024, às 17h00
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