Os sistemas fly-by-wire transformaram a pilotagem e elevaram a segurança da aviação a um novo patamar
Desde os experimentos de George Cayley, no século 19, até a consolidação dos sistemas digitais fly-by-wire, a história da aviação é marcada por avanços revolucionários no controle das aeronaves. Pioneiros como Otto Lilienthal, os irmãos Wright e Santos Dumont contribuíram com inovações fundamentais para a manobrabilidade e segurança dos voos, enquanto tecnologias mais recentes, como a hidráulica e a computação digital, transformaram a experiência de pilotagem.
Hoje, sistemas avançados de controle garantem eficiência e confiabilidade em aeronaves comerciais, de defesa e até em projetos espaciais, apontando para um futuro ainda mais promissor com o fly-by-light.
Um século antes dos voos dos irmãos Wright e de Santos Dumont, o engenheiro inglês George Cayley desenvolveu o conceito de “aeronaves mais pesadas que o ar”. Considerado por muitos o genuíno “pai da aviação”, ele foi o pioneiro nos estudos das quatro forças do voo: sustentação, arrasto, empuxo e peso.
Entre 1849 e 1853, Cayley desenvolveu dois planadores com os quais realizou os primeiros voos em aeronaves mais pesadas que o ar de que sem tem registro científico – no voo de 1849, o “piloto” foi o filho de um de seus empregados (com 10 anos de idade) e, em 1953, o condutor de suas carruagens.
Antes de sua morte, em 1854, Cayley documentou muitas de suas contribuições ao fenômeno do voo em aeronaves mais pesadas que o ar, tais como a existência de um centro de pressão e gravidade nas asas e a relação entre sustentação e área da asa.
Na última década do século 19, o alemão Otto Lilienthal garantiu avanços significativos com o voo de planadores. A Enciclopédia Brittanica credita a ele mais de dois mil voos planados, eternizados em mais de uma centena de registros fotográficos.
Com a experiência desenvolvida pelo inventor alemão, logo, surgiram as preocupações com a controlabilidade das aeronaves, pois sua técnica de mudança da posição do corpo para mudança do centro de gravidade (e, por consequência, da direção do voo) limitava a manobrabilidade dos aparelhos – ainda hoje, os voos de asa-delta se baseiam em seus princípios.
Já em seus primeiros voos no início do século 20, os irmãos Wright haviam percebido a necessidade de aprimorar o controle direcional de seus planadores e, mais tarde, dos Wright Flyers, as primeiras aeronaves motorizadas a alçar voo. Além das óbvias contribuições históricas do desenvolvimento de suas aeronaves, um dos maiores avanços de projeto obtido pelos irmãos Wright foi o controle simultâneo de rolagem e guinada: enquanto um contava com um leme direcional adotado em experiências anteriores, o outro era baseado em flexão das pontas de asa, método similar ao controle direcional utilizado em paragliders contemporâneos.
Todavia, os sistemas aerodinâmicos de controle desenvolvidos pelos irmãos Wright foram objeto de intensa disputa judicial, chegando à Corte de Apelações norte-americana: isso porque outros pioneiros conterrâneos fizeram uso de princípios similares sem o devido crédito, a despeito de uma polêmica patente concedida aos irmãos Wright, em 1906, que baseou diversas cobranças de royalties a outros inventores.
Aqui cabe dizer que a primeira patente para o aileron como dispositivo de controle aeronáutico foi concedida na Inglaterra, em 1868, ao inventor Matthew Piers Watt Boulton, sem, contudo, ter tido um emprego prático em uma aeronave.
Simultaneamente, os inventos em solo europeu também avançavam com Robert Pelterie, em 1904, e Santos Dumont, principalmente. No primeiro voo conduzido integralmente por uma aeronave e seus próprios meios, o 14-bis fez uso de estruturas que o inventor mineiro chamou de “governadores auxiliares”, responsáveis pelo controle de rolagem da aeronave do brasileiro.
No fim da década de 1910, ailerons similares ao de uso contemporâneo haviam sido desenvolvidos e empregados com sucesso por Henri Farman no Farman III e, em outra significativa contribuição de Louis Blériot, o Blériot VIII foi a primeira aeronave a fazer uso do conjunto manche-leme direcional, que remete aos controles em uso nas aeronaves com controle convencional dos dias atuais.
Na década seguinte, o grande desenvolvimento aeronáutico trazido pela Primeira Guerra Mundial acelerou a construção de aeronaves nos Estados Unidos e na Europa, resultado dos esforços de guerra para produzir as mais de 200 mil aeronaves utilizadas no conflito.
Enquanto os comandos de voo consolidaram a configuração de Louis Blériot, a confiabilidade dos motores se desenvolveu a ponto de atrair esforços das fábricas de aeronaves para emprego civil e público da aviação no pós-guerra.
Apesar do difundido uso de compensadores na construção aeronáutica da época, as maiores velocidades e dimensões das aeronaves surgidas ao final da década de 1920 demandaram o emprego de sistemas que permitissem a redução dos esforços do equipamento e, sobretudo, dos pilotos na pilotagem dos aviões.
O uso de sistemas hidráulicos traria, então, vantagens óbvias e largamente conhecidas em outras aplicações: alta eficiência, baixo peso e simplicidade de funcionamento. Diante dessas vantagens, a Fairchild fez a primeira aplicação conhecida de sistemas hidráulicos em seu modelo FC-1, que contava com freios hidráulicos e outro avanço significativo: trem de pouso retrátil com atuação hidráulica.
Em meados da década de 1930, o desenvolvimento do DC-3 levou ao emprego da força hidráulica para atuação dos flaps e, na década seguinte, o icônico Constellation se tornou a primeira aeronave civil a utilizar controles de voo assistidos hidraulicamente.
Posteriormente, os engenheiros aperfeiçoaram os sistemas hidráulicos, em sua maioria padronizados em capacidade (3.000 PSI), que passaram a contar com redundância, com sua difusão em aeronaves grandes e pequenas, sendo aplicados, por exemplo, em reversores de empuxo de aeronaves a jato e controladores de passo de hélice em aeronaves menores, até mesmo de uso pessoal.
Associado ao avanço do piloto automático, o uso de controles de voo hidráulicos em atuação conjunta com os tradicionais controles por cabos e roldanas reduziu significativamente a carga de trabalho dos pilotos na cabine, contribuindo para voos mais seguros a partir da segunda metade do século 20.
Apesar do salto tecnológico, os avanços da indústria aeroespacial nos anos 1960 passaram a demandar tipos de controles de voo ainda mais sofisticados para guiar aeronaves com performances próximas as de foguetes (e dos futuros veículos espaciais).
No começo daquela década, os norte-americanos já haviam perdido para os soviéticos a corrida espacial pela colocação de um satélite em órbita, pelo lançamento do homem no espaço e pela realização de uma caminhada espacial. A vitória pelo maior dos troféus, a chegada à Lua, tornou-se um objetivo do governo de John Kennedy e uma obsessão para a NASA. E a missão lunar passava pela criação de controles de voo (para ambos os módulos, tanto o de comando como o lunar) completamente diferentes dos controles de voo de aeronaves convencionais.
Assim avançou a história do hoje consagrado fly-by-wire: a partir de uma demanda da Nasa junto ao Laboratório de Instrução do Massachusetts Institute of Technology (MIT) para desenvolver o sistema de controle e navegação do programa Apollo.
Ao longo das quase 20 missões do programa, o guidance computer, que trabalhava a partir de dados óticos e inerciais, cumpriu sua missão em voos e alunissagens, incluindo a missão de retorno da avariada Apollo 13.
Uma das soluções desenvolvidas ao longo do programa se relacionava à controlabilidade do módulo lunar durante o pouso. Para treinar os astronautas, a Nasa havia criado o Lunar Landing Training Vehicle (LLTV), um dispositivo de simulação de pouso na superfície lunar que coletava os dados dos inputs dados pelos astronautas aos controles de voo da nave e enviava esses dados para atuadores que, interpretando tais informações, moviam as superfícies de comando.
Esse simulador foi a primeira aeronave a voar integralmente com tecnologia fly-by-wire, pois não havia nenhum backup manual aos computadores analógicos que interpretavam os comandos dados pelos astronautas e refinavam a atuação das superfícies de comando.
A despeito da confiabilidade comprovada ao longo do programa lunar, o sistema contava com uma limitação: o emprego de computadores analógicos, que usam variações nas propriedades físicas da eletricidade para representar números. Um avanço a essa limitação seria o uso de computadores digitais, que, fazendo uso de código binário, passaram a permitir a utilização simultânea de uma enorme quantidade de dados por meio da programação por software.
Assim, a Nasa continuou com a sua contribuição ao fly-by-wire ao desenvolver os computadores digitais que, mais tarde, seriam empregados em seu próximo grande programa: o dos ônibus espaciais.
Os avanços nos sistemas de controle de voo eletrônicos baseados em computadores digitais não ficaram restritos a aplicações espaciais, beneficiando, também, a indústria de defesa aérea.
Aeronaves de alta performance, notadamente caças e bombardeiros supersônicos, caracterizados por sua instabilidade aerodinâmica – o que lhes garante altíssima manobrabilidade –, eram considerados de difícil pilotagem. Ao final dos anos 1970, a entrada em serviço do F-16, primeira aeronave de produção em massa fazendo uso do fly-by-wire digital, deu alcance global a essa tecnologia.
Enquanto a Nasa desenvolvia os computadores responsáveis pelos sistemas de voo do programa Apollo, franceses e ingleses estudavam sua adoção em outro icônico programa, não menos ousado: o de transporte aéreo comercial em aeronaves supersônicas.
Como forma de transpor a dilatação característica do voo supersônico, que poderia afetar adversamente cabos de comando e tubulações hidráulicas, o Concorde fez uso de um pioneiro sistema fly-by-wire com backup mecânico em que suas superfícies de comando eram acionadas eletricamente por unidades chamadas Powered Flying Control Unit.
A despeito de sua comprovada confiabilidade com o Concorde, esse sistema fly-by-wire era ainda incipiente perto daquela que seria desenvolvida durante a década de 1980 pelo consórcio europeu Airbus.
Os primeiros jatos lançados comercialmente pela Airbus, o A300B seguido do A300-600 e do A310, desde a concepção, utilizaram inputs eletrônicos para atuação de controles de voo – ainda se limitando à aplicação em superfícies secundárias.
Ao decidir pela elaboração de um novo projeto, desta vez um narrowbody para o segmento de mais de 150 assentos, o fabricante havia decidido, também, intensificar o uso de tecnologia embarcada, cujo principal destaque seria o emprego de comandos de voo full fly-by-wire.
Além de aprofundar o conceito de comunalidade tão importantes para a Airbus, a tecnologia de fly-by-wire do A320 traria não apenas melhorias ergonômicas ou de redução de peso e de custo de manutenção: seu grande destaque era a elevação do nível de segurança por meio da proteção do envelope de voo.
Para se certificar de que a condução da aeronave se daria sempre dentro de seu envelope normal de voo, o sistema de controle adotado pela Airbus foi baseado em um sistema de computadores que monitora os inputs dos pilotos nos comandos presentes na cabine (onde os tradicionais manches cederam espaço ao sidestick) em conjunto com parâmetros como velocidade, altitude e angulo de ataque (dentre outros).
O resultado desse monitoramento computadorizado é a manutenção do voo da aeronave, constantemente, dentro dos padrões previstos no envelope, no que diz respeito a velocidades mínimas e máximas, fatores de carga e inclinação lateral, incluindo ainda funções mais avançadas como proteção ao estol e modos temporários de liftoff durante as decolagens e flare durante os pousos.
Prevendo uma possível degradação das funcionalidades totais do fly-by-wire por perda dos parâmetros monitorados – como foi o caso do acidente do Air France 447 –, o sistema da Airbus conta ainda com modos de utilização do fly-by-wire a partir de diferentes níveis de degradação, as chamadas control laws.
Em situações normais, o sistema atende às normal laws. Níveis intermediários de degradação levam às chamadas alternate laws, que mantêm diferentes níveis de proteção a depender de quais parâmetros tiverem sido perdidos. A perda total de proteção e dos “comandos refinados” com manutenção da pilotagem por fly-by-wire é chamada de direct law, enquanto o backup mecânico, presente nas famílias A320 e A330/A340 é utilizado na improvável perda simultânea de todos os computadores de voo ou na ocorrência do travamento físico dos dois estabilizadores horizontais ao mesmo tempo.
Assim, no fly-by-wire desenvolvido pela Airbus, sensores de ângulo de ataque e o sistema de pitot, complementados por informações de temperatura e informações oriundas dos chamados Air Data Inertial Reference Unit (ADIRU, baseados no sistema inercial) são responsáveis por alimentar os computadores com diversos parâmetros.
A estes parâmetros são somados os inputs do piloto (humano ou automático) convertidos em sinais interpretados pelos computadores de voo, que, por sua vez, são responsáveis por orientar a correta deflexão de cada uma das superfícies de comando.
Em suma, o fly-by-wire representa diversos avanços em relação aos controles convencionais: além da substituição de componentes mecânicos (que demandam constantes manutenções) por um conjunto de sensores, fios e computadores, que dá aos atuadores das superfícies de controle comandos similares aos dos componentes mecânicos, o fly-by-wire conta, ainda, com sistema de monitoramento próprio (capaz de apontar eventuais anomalias) e proteções que dificultam sobremaneira a entrada das aeronaves em um estado indesejado de controle.
Adicionalmente, o advento do fly-by-wire permitiu à indústria evoluir também no desenvolvimento dos sistemas de controle de estabilidade, os chamados Stability Augmentation Systems. Desenvolvidos desde a década de 1950 para melhorar a controlabilidade de aeronaves instáveis (ou com características de instabilidade em certas condições de voo), os Controls Augmentation Systems modernos, associados ao fly-by-wire, permitem uma definição computadorizada bastante precisa das características de controle e estabilidade das aeronaves contemporâneas.
As impactantes cenas do acidente com um raríssimo A320-100 no voo Air France 296 em uma exibição da aeronave, em 1988, fizeram com que a tecnologia de controle de voo difundida pelo fabricante europeu fosse recebida com ceticismo por operadores, pelo público e por outros fabricantes.
Contudo, as evidentes qualidades dessa tecnologia forçaram a sua adoção pelos principais fabricantes de aeronaves no mundo: ainda na década de 1990, a Boeing adotou o fly-by-wire como sistema de controle principal (com backup mecânico) em seu Boeing 777.
Em seguida ao 777, passou a aplicar em vários novos projetos, como também fizeram Embraer e, à época, a Bombardier: ao final da década de 1990, as rivais da aviação regional lançaram seus novos programas de aeronaves para jatos regionais maiores que os ERJ e os CRJ.
O resultado foi o lançamento do C-Series, então chamado BRJ-X em 1998 e dos E-Jets em 1999. Os dois programas adotariam controle por fly-by-wire. Nas décadas seguintes, o fly-by-wire passou a ser aplicado nos modernos projetos de jatos de negócios de maior porte e, mais recentemente, têm sido empregados inclusive em jatos do segmento midsize, como o Embraer Preator.
Nos dias atuais, as novas gerações de caças têm demandado ainda mais inovação, e uma melhoria de tecnologia que poderá também ser vista nas aeronaves comerciais de próxima geração é o chamado fly-by-light: em linha com as expectativas de aeronaves autônomas, o fly-by-light é uma evolução do fly-by-wire, que contará com o uso de fibra ótica para aumentar ainda mais a capacidade, confiabilidade e capacidade de processamento dos sistemas.
Por Francisco Augusto Costa
Publicado em 21/01/2025, às 15h20
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