AERO Magazine
Busca

F-16 na mira

As mudanças estratégicas na FAB

Comando da Aeronáutica avalia o F-16 e segue com as mudanças estratégicas de longo prazo privilegiando a capacidade bélica da FAB


Há 2 décadas a FAB recusou uma oferta por um lote de F-16 usados da Holanda - USAF
Há 2 décadas a FAB recusou uma oferta por um lote de F-16 usados da Holanda - USAF

Na última sexta-feita (14), a Força Aérea Brasileira divulgou uma nota oficial confirmando que avaliava a oportunidade de compra de unidades usadas do F-16. A notícia que era especulada há alguns meses chamou atenção de muitos, mas demonstra a continuidade de uma reestruturação em andamento e que prioriza os interesses operacionais.

Ainda que a eventual escolha do F-16 possa ir contra projetos em andamento, a nota oficial da FAB não surpreende dentro da estratégia adotada pelo Comando da Aeronáutica.

Há alguns anos, o Comando da Aeronáutica vem promovendo uma gradual modernização em quesitos como estrutura, meios e estratégias. O movimento mais importante ocorreu logo após a criação do Ministério da Defesa, e a consequente transformação dos Ministérios da Aeronáutica, da Exército e da Marinha em Comandos, subordinados imediatamente à Defesa.

Ao longo dos anos, a Aeronáutica deixou uma série de atividades, como, por exemplo, a gestão da aviação civil e, mais recentemente, promoveu uma profunda modernização de seus meios. 

Em meados de abril de 2021, um comunicado público causou furor, pelo teor polêmico e pelo ineditismo. O então comandante da aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior, afirmou que negociava uma redução do pedido do KC-390 da Embraer pela metade.

A falta de recursos para comprar e operar 28 aviões, somada às demais necessidades imediatas, era a justificativa para o corte. Era a primeira vez que o Comando da Aeronáutica fazia uma nota pública sobre cortes em projetos. Em geral, os ajustes, comuns em qualquer força, são feitos nos bastidores e, eventualmente, comunicados ao público quando o processo já está encerrado entre as partes.  

Ainda em 2021, na véspera do Dubai Air Show, o primeiro grande evento aeronáutico no pós-pandemia, o Comando da Aeronáutica publicou uma nova nota oficial, desta vez dizendo que seu foco seria promover capacidades da Força Aérea e não mais priorizar apenas os interesses da indústria aeroespacial brasileira.

“A Força Aérea Brasileira que, abrindo mão de importar os mais modernos sistemas de armas disponíveis no mercado mundial a preços compatíveis com nossas possibilidades, optou por um processo de nacionalização industrial, que pudesse gerar nossa independência externa, criar empregos de alto nível e riqueza para nosso povo”, afirmava a nota do Comandante da Aeronáutica.  

O tom de desabafo ocorria após a Embraer não concordar com os termos de redução do contrato do KC-390, visto que o pedido inicial de 28 unidades era suficiente apenas para justificar o programa, não garantia seu sucesso comercial.

Uma redução pela metade comprometeria ainda mais a competitividade internacional do avião brasileiro, que enfrenta a forte concorrência do Lockheed C-130J Super Hercules, em especial pelo poder de barganha de Washington em qualquer negociação. 

“A Embraer informou a não aceitação da proposta da Aeronáutica. Considerando a decisão da Embraer e a impossibilidade de permanecer com a execução do contrato nas quantidades atuais, a Força Aérea Brasileira, no intuito de resguardar o interesse público, iniciará, dentro dos limites previstos na lei, os procedimentos para a redução unilateral dos contratos de produção das aeronaves KC-390”, citava a nota publicada horas antes do Dubai Air Show. 

Para o mercado, o comunicado foi visto como um duro golpe nas prospecções de vendas do C-390 Millennium no exterior. Do ponto de vista estratégico, a Aeronáutica deixava claro sua mudança de foco. Ao longo dos últimos meses, o Comando da Aeronáutica explicou que, embora considere importante uma indústria aeroespacial forte e capaz, o Brasil necessita investir em uma Força Aérea com capacidades acima do histórico nacional. 

Aeronáutica ou Força Aérea?

E-99
Conceito de Aeronáutica foi criado no Governo Vargas e pretendia promover o desenvolvimento da aviação e um braço armado aéreo independente da Marinha e do Exército

Um ponto importante destacado pelo Comando da Aeronáutica se refere, justamente, a uma confusão histórica entre Aeronáutica e Força Aérea. A criação do Ministério da Aeronáutica, nos anos 1940, previa que o Estado seria responsável por promover o desenvolvimento da aviação no Brasil, assim como responder às necessidades de segurança do espaço aéreo.

A ideia, inspirada sobretudo no modelo italiano, maximizava os recursos financeiros e humanos em uma estrutura de aviação única, na qual indústria, aviação civil e aviação militar seriam gerenciadas a partir de uma mesma organização.

O Ministério da Aeronáutica teria um braço para prover a aviação nacional e um outro armado, no caso, a Força Aérea Brasileira.  

Essa estrutura foi responsável por promover o desenvolvimento da Embraer, de ampliar o número de aeroportos no Brasil, de criar um dos mais sofisticados sistemas de gerenciamento de tráfego aéreo do mundo (que pese suas limitações e falhas), promover uma aviação civil organizada e segura, entre outros. O sistema funcionou bem por algum tempo, mas logo ficou claro que havia interesses conflitantes, recursos limitados e demandas cada vez maiores.

Na última década, a Aeronáutica passou a se ver mais como seu braço armado, a Força Aérea Brasileira, não mais apenas como um grande gestor de todo um ecossistema aeronáutico.  

Uma reestruturação interna com redução de unidades, bases, pessoal, entre outros está em andamento há mais de 15 anos, ocorrendo de forma quase silenciosa fora dos muros das bases.

Contudo, o C-390 Millennium expos mais um traço da mudança, de priorizar agora a Força Aérea e não mais projetos industriais. O problema é que a forma como foi colocada para o público gerou uma série de controvérsias, afinal, a Embraer e a indústria aeronáutica nacional são motivo de orgulho para o brasileiro. Da mesma forma, a Força Aérea Brasileira é considerada uma das instituições de Estado mais respeitadas para a população. Um atrito entre ambos levou a uma série de questionamentos e dúvidas. 

Ciente dos fatos, na época o Comando da Aeronáutica promoveu um encontro com a imprensa durante o qual explicou exatamente o que está sendo feito, os motivos e planejamentos. Em resumo, a intenção agora é criar uma força aérea bem estruturada e capaz, buscando uma modernização sem precedentes em sua história.

Segundo lote do Gripen

SAAB Gripen E
Problemas orçamentários e políticos podem comprometer um novo lote do Gripen

Não por um acaso, o então comandante Baptista Junior passou a endossar a compra de um segundo lote do Gripen, chegando a dar depoimentos em vídeos institucionais da Saab. Embora seja pouco usual um comandante militar se expor em ações promocionais de um fornecedor, a estratégia é destacar o compromisso do Comando da Aeronáutica com a compra dos caças e a modernização de suas capacidades militares reais.  

A compra do Gripen NG previu a transferência de tecnologia [leia mais em AERO 337], considerada fundamental para o desenvolvimento da indústria nacional e, sobretudo, para o incremento das capacidades de operação dos caças usados pela FAB.

O contrato para compra de 36 caças foi consideravelmente mais caro, com valores atualizados que superam os R$ 20 bilhões, justamente por incluir as transferências de tecnologias desejadas pela FAB.

Por anos o argumento da Aeronáutica para o segundo lote foi baseado em três pilares básicos. O primeiro seria que a compra de um único lote limita a capacidade de ação da FAB, que, na prática, terá metade dos aviões de prontidão. A maioria das forças armadas do mundo tem como métrica básica que metade dos meios estão disponíveis 24 horas, enquanto a outra metade passa por revisão, manutenção, modernização ou foi perdida em acidentes.

Uma força aérea bem estruturada tem ao menos 20% adicional da frota pronta para entrar em serviço em algumas horas ou dias, em geral, envolvendo aviões que estão em manutenção programada. O restante, algo como 30% da frota, dependeria de vários dias ou semanas para poder entrar em combate. 

O segundo argumento é que a produção de componentes e caças no Brasil só é justificada, do ponto de vista econômico, caso a linha de produção continue ativa com um lote considerável contratado. Adicionar um punhado de pedidos conforme surja orçamento ou necessidade urgente inviabiliza qualquer linha de produção no médio prazo ou encarece tanto o produto que a conta não fecha. 

Por fim, a Aeronáutica sustenta que os 36 aviões do lote original são insuficientes para substituir a totalidade dos F-5 e A-1 em serviço. Além disso, é um número elevado para um único esquadrão, mas baixo para dois ou três.

Não por um acaso, foi avaliada a oportunidade de compra de mais quatro Gripen E, justamente para permitir compor dois esquadrões. O segundo lote, caso contratado, não deverá atingir nem mesmo 80 unidades do Gripen, com um número realista entre 65 e 70 aviões no total.

Mesmo que dobre o contrato original, o valor ainda estará distante do necessário para poder substituir toda a aviação de caça e permitir ao Brasil ter uma força aérea realmente capaz de enfrentar uma eventual ameaça.

Evidentemente, um Gripen E tem mais poder de combate, em todos os sentidos, do que o F-5 e o A-1, somados, mas, ainda assim, uma frota pequena torna limitado o alcance da defesa do espaço aéreo brasileiro.

Gripen F 100% sueco

Ainda sobre o Gripen, a Aeronáutica renegociou com a Saab a mudança contratual que envolve a produção do Gripen F no Brasil. Inicialmente, o plano era que os aviões biplace seriam desenvolvidos por uma equipe de engenheiros brasileiros, com grande participação da Embraer no processo, e sua construção seria nacional.

Porém, por questões de custo e industriais foi negociado que a construção final do Gripen F será integralmente feita na Suécia, e o Brasil passará a ter direito de produzir um número maior dos Gripen E.

Isso evita o gasto com ferramental destinado ao Gripen F, que não deverá ter um lote expressivo produzido, enquanto possibilita a produção de mais unidades do Gripen E no Brasil, com menores custos quando comparado ao modelo biplace. Apenas uma reorganização industrial, mas que pode gerar benefícios adicionais à indústria brasileira.

Menos C-390 Millennium

KC-390
Em 2021 a FAB anunciou um corte no pedido do KC-390 sob o argumento que 28 aviões era um número exagerado para sua realidade operacional e orçamentária

A FAB e a Embraer chegaram a um acordo sobre a redução do pedido original do KC-390, mas o Comando da Aeronáutica não descarta retomar a discussão para reduzir o pedido a apenas quinze aviões. Entre os argumentos está a disponibilidade orçamentária, que não permite operar 28 aviões simultaneamente, assim como a excelente capacidade do avião, que supera a do C-130H Hercules. O Comando da Aeronáutica ressalta que o Brasil nunca chegou a ter em operação nem vinte C-130H sequer, e alega que o 28 aviões estava muito acima da realidade operacional.  

Alguns críticos e analistas apontam que um acordo entre as três forças, com a FAB sendo responsável pelo transporte logístico, poderia permitir a compra dos 28 aviões. O custo seria dividido entre as três forças, que ressarciriam a Aeronáutica a cada missão – de maneira simplista, seria como um voo fretado, em que cada uma paga pela missão contratada.

Todavia, esse projeto envolveria uma mudança na legislação, que levaria meses ou anos para ser aprovada. A Aeronáutica não descarta manter os 22 aviões, apenas mudando o cronograma de entregas.

O senão seria que, ao mudar o cronograma, a linha de produção sofreria com uma menor cadencia, o que, no final, aumentaria os custos unitários e agregaria o risco de, no futuro, a FAB receber seu último KC-390 como um avião já ultrapassado em várias questões tecnológicas. Seja como for, a FAB estuda como resolver a equação sem comprometer a sua capacidade nem afetar as vendas do avião no exterior.

O conceitual Stout 

Um dos projetos que mais chamaram atenção do público foi o Stout, um avião hibrido com capacidade para substituir os veteranos Bandeirante e Brasília na FAB. O conceito foi apresentado exclusivamente em slides de Power Point no final de 2020, sem o compartilhamento de nenhum detalhe técnico ou operacional. Nem sequer imagens foram divulgadas à imprensa.

O pouco que se sabia era que o avião seria um quadrimotor, com dois motores turbo-hélices convencionais e dois elétricos, criando uma nova era na aviação de transporte leve da FAB.  

O entrave era a viabilidade técnica do projeto, que envolveria criar uma tecnologia de propulsão e gestão de sistemas e baterias que ainda não existe. Isso sem considerar que o avião mais sofisticado, em termos de tecnologia de propulsão, seria justamente aquele que deveria voar em áreas remotas, com pouco ou nenhum suporte de solo.

Para piorar, grande parte dos voos seriam na região Amazônica, onde o clima quente e úmido sempre foi um pesadelo para sistemas eletrônicos e elétricos. O Comando da Aeronáutica optou por suspender qualquer processo de desenvolvimento do Stout, que foi declarado cancelado antes mesmo de nascer.

Aeronave de combate não tripulada

Em meados de abril de 2021, a Embraer divulgou um teaser onde previa um UCAV, ou seja, uma aeronave de combate não tripulada, de grande porte, com capacidade de realizar uma série de missões, desde ataque até reconhecimento.

O anúncio não passava de um vídeo com um modelo tridimensional, sem qualquer acordo de desenvolvimento assinado com a Aeronáutica. Apenas a troca de informações sensíveis (como quais missões e sistemas a FAB pretendia operar) foi feita entre os militares e a Embraer.

Embora tenha entusiasmado muitos militares e entusiastas, os custos e as tecnologias envolvidas no projeto estão completamente fora do orçamento da FAB. Resultado, o Comando da Aeronáutica anunciou que não seguiria com o estudo. O argumento era custo elevado e a prioridade de curto prazo de adquirir o segundo lote do Gripen.

KC-30

KC-390
Por ora não existe orçamento e nem prazo para a eventual conversão dos dois A330 da FAB para o padrão MRTT

Durante uma live, no final de janeiro de 2021, o então presidente Jair Bolsonaro afirmou que havia recursos para a compra de dois Airbus A330 MRTT (Multi-Role Transport Tanker), um transporte multifunção e aeronave-tanque.

Na ocasião, foi considerado que o orçamento seria utilizado para a compra de duas unidades do modelo que estavam sendo ofertadas pela força aérea britânica no mercado de usados. O projeto avançou e ficou definido que o orçamento seria oriundo do Ministério da Defesa, com objetivo exclusivo de comprar dois Airbus A330-200, que seriam convertidos posteriormente no padrão MRTT.

Inicialmente, o argumento para a compra era a urgente necessidade de transporte de grande volume para atender à pandemia. Evidentemente, o programa não estaria disponível no tempo necessário, sendo assim, oficialmente, a justificativa passou a ser a necessidade de um avião de transporte estratégico multifuncional.  

O A330 MRTT oferece capacidade para transporte de grandes volumes em seus porões, aliado a uma cabine no piso principal que pode ser convertida em avião VIP, transporte de pessoal e, dependendo da compra de um kit especial, até mesmo uma grande UTI aérea. O projeto foi detalhado ao longo de um ano, com a definição ocorrendo em 2022, quando ficou acertado que seriam adquiridos no mercado dois aviões comerciais, da mesma série, com no máximo oito anos de uso, que seriam na sequência convertidos pela Airbus como MRTT.  

A Azul Linhas Aéreas venceu a licitação para oferecer os dois A330-200, que seriam convertidos. Um dos aviões fazia parte da própria frota, que, originalmente, havia sido entregue para a Avianca, enquanto o segundo, que também havia sido entregue para a Avianca, estava estocado após a crise sanitária.

Vale destacar que ambos os aviões chegaram ao Brasil com a designação KC-30, mas sem qualquer capacidade de reabastecimento. A conversão para o padrão MRTT envolverá uma segunda licitação, que ainda não tem data para acontecer.

Mísseis e sistemas

A Aeronáutica também iniciou um completo projeto de reequipamento de seu arsenal, confirmando a compra de novos mísseis para o Gripen, acordos para sistemas integrados que vão permitir operar os novos caças e a frota de aviões existente de forma jamais vista no país. Um dos desafios da FAB será manter um sistema de datalink capaz de oferecer a plena integração entre meios aéreos, sistemas de solo e centros de comando e controle.

O Comando da Aeronáutica está ciente de que a guerra moderna depende de um sofisticado ecossistema que integre todos seus recursos, sem espaço para o modelo anterior que cada avião, helicóptero ou estação de radar operava de forma quase autônoma, apenas recebendo ordens.  

As mudanças promovidas pelo Comando da Aeronáutica apontam para a prioridade de prover uma capacidade bélica elevada, colocando a capacidade industrial em segundo plano pela primeira vez em 80 anos. A estratégia, embora controversa para muitos, aponta um novo ciclo na Aeronáutica, de se ver mais como força aérea do que uma estrutura aeronáutica complexa.

Em um cenário com recursos limitados e custos cada vez maiores, o comandante da Aeronáutica definiu um foco, tornar a FAB muito mais capaz do que foi em toda sua história.

Se o modelo escolhido para atingir tal objetivo foi certo ou errado, saberemos no futuro, mas, seja como for, ao menos agora, existe um plano traçado de longo prazo e com um objetivo final estabelecido. 

* Publicado originalmente na AERO Magazine 338 · Jul/2022
Atualizado em Jun/2024

Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 20/06/2024, às 13h47


Mais Aviação Militar