As rixas entre a Marinha e a FAB marcaram a trajetória da aviação naval do Brasil por vários anos e envolveu até tiro
O Brasil há mais de um ano não conta mais com porta-aviões, desde que a Marinha do Brasil fundou o A-12 São Paulo em fevereiro de 2023, após meses de indefinições e ter sido rebocado em círculos na costa brasileira.
O A-12 São Paulo estava fora de serviço havia um bom tempo, a embarcação, arrematada em um leilão por pouco mais de dez milhões e meio de reais, drenava vultuosos recursos apenas para se manter em condições mínimas de segurança – trata-se de uma máquina flutuante fabricada no fim dos anos 1950.
Mas, alheia à decisão, há uma história nem sempre amistosa em relação à operação de aeronaves militares no Brasil.
Apesar do que se vê em torno do Projeto H-XBR Caracal – o primeiro envolvendo Marinha, Exército e Aeronáutica na compra de um helicóptero novo capaz de atender, simultaneamente, aos interesses das três forças –, a integração operacional entre os militares brasileiros já teve solavancos.
A atual sinergia nasceu depois de um longo processo de amadurecimento, e conflitos, com muitas diferenças, sobretudo, entre Marinha e Aeronáutica, que protagonizaram episódios de extrema tensão por quase 25 anos, entre 1941 e 1965.
O histórico voo de Alberto Santos Dumont com seu 14-bis, no Campo de Bagatelle, na França, em 1906, marcou o início de um desenvolvimento exponencial da aviação mundial. Em território nacional, apenas cinco anos depois, o próprio Santos Dumont criou e se tornou presidente do Aeroclube do Brasil.
No mesmo ano, em 1911, por iniciativa e recursos próprios, o tenente da Marinha brasileira Jorge Henrique Moller se matriculou na École Farman, tradicional escola de aviação da França, tornando-se o primeiro piloto militar latino-americano a receber um brevê.
O feito do jovem oficial abriu caminho para a aviação militar brasileira e culminou na criação da Escola de Aviação Naval, em 1916.
Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os brasileiros fizeram parte do 10º Grupo de Operações de Guerra da inglesa Royal Air Force, realizando operações reais de patrulha nos céus da Europa.
No Brasil, nessa fase inicial, aeronaves Curtiss modelos C-1, F-5-L, HS-2L e N-9H, além dos Macchi M-7 e M-9, foram pioneiras na patrulha aérea do litoral brasileiro e na integração do recém-criado Correio Aéreo Naval. Nesse período, os militares também plotaram as primeiras cartas de navegação aérea para apoiar os aviadores em suas rotas pelo litoral.
Do então Centro de Aviação Naval do Rio de Janeiro (hoje base aérea do Galeão), fundado em 1923, surgiram as oficinas gerais de aviação naval. Ali eram fabricados, ainda, sob licença, os primeiros modelos de aeronaves do país, com destaque para o Fw 58B Weihe e o de Havilland D.H.82 Tiger Moth.
Nos anos seguintes, a Marinha seguiu voando e aprimorando sua operação. Até 1941, quando o então presidente Getúlio Vargas, por meio de um polêmico decreto, interrompeu as atividades da Aviação Naval e da Aviação de Exército, criando a Força Aérea Nacional, mais tarde denominada Força Aérea Brasileira (FAB), o que gerou um mal-estar generalizado, momentaneamente irreversível.
Por um lado, começava a ser escrita uma das mais belas páginas da aviação mundial, com o 1° Grupo de Aviação de Caça “Senta a Pua”, representando o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Por outro, a Marinha não se conformava em perder tudo o que havia conquistado.
O contra-almirante Paulo Renato Rohwer Santos, atual comandante da Força Aeronaval da Marinha do Brasil, diz que a posição da época fazia sentido, sobretudo pelo pioneirismo nos ares da aviação naval.
“Em 1942, o Estado-Maior Naval salientava as grandes dificuldades da Marinha para cumprir o seu papel institucional, citando o êxito inicial da esquadra japonesa na campanha do Pacífico e os sucessos norte-americano e britânico durante a guerra muito em função do aproveitamento do potencial aeronaval destas nações e da sua integração com as forças de superfície e submarinas”, diz.
Apesar dos argumentos, até 1952, a Marinha permaneceu proibida de operar qualquer tipo de aeronave.
O renascimento da Aviação Naval acontece com a recriação da Diretoria de Aeronáutica da Marinha (DAERM), viabilizada por um decreto presidencial. Assim, abriu-se a possibilidade de a Marinha adquirir, inicialmente, aeronaves de asas rotativas, o que desagradou o então Ministério da Aeronáutica, que não aceitava dividir com a força coirmã o domínio do ar.
A aquisição do navio-aeródromo Ligeiro (NAeL) A-11 Minas Gerais (em 1956) e as inúmeras adequações da futura nau capitânea realizadas em um estaleiro holandês fariam com que o “porta-aviões” estivesse operacional somente em 1960.
Enquanto isso, no Brasil, a Marinha se preparava para voar, adquirindo helicópteros Bell HUL-1 (Model 47) e Bell-Kawasaki HTL-6 (Model 47G), além de aeronaves de asas fixas, já pensando em operá-las no A-11 Minas Gerais, incluindo seis Pilatus P-3 e oito North American T-28 Trojan.
O problema é que a FAB não abria mão de atuar no Minas Gerais, posição corroborada pela criação do 1º Grupo de Aviação Embarcada (1° GAE), em 1957, bem como a aquisição de 13 aviões Grumman Tracker (P-16) novos em folha.
A vinda do navio Minas Gerais ao Brasil traduziu os embates políticos da época, a ponto de os militares atrasarem sua chegada para que ocorresse somente após 31 de janeiro de 1961, data da posse do presidente Jânio Quadros.
A entrada triunfante do navio-aeródromo na baía de Guanabara, trazendo no convés três veteranos aviões TBM Avenger e nove helicópteros Bell HTL-5 (Model 47D) e Westland S-55 Whirlwind Srs.1, e a estratégica parada da embarcação em frente à Escola Naval (e ao Aeroporto Santos Dumont) caracterizavam uma a clara demonstração de força, além de uma provocação tácita à Aeronáutica. A diferença entre as cores azul e branca só aumentava.
A escalada da rivalidade entre Marinha e Força Aérea registrou um episódio marcante envolvendo a proximidade geográfica entre o 1° Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral da Marinha e o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, controlado pela Aeronáutica.
A FAB argumentava que a operação de aeronaves naquela unidade da Marinha implicava em sérios riscos de ocorrência de acidentes aeronáuticos devido ao aumento do tráfego aéreo no Galeão.
Por outro lado, a Marinha via na unidade localizada na tradicional Avenida Brasil uma base de fundamental importância para expandir seu poderio aéreo. Até porque seu centro de instrução havia sido transferido para a base aérea de São Pedro da Aldeia (BAeNSPA), também no Rio de Janeiro, depois de um grave acidente, em 1951, envolvendo um treinador T-21 da FAB e um Vickers Viscount de passageiros, que se aproximava para pouso no Galeão.
Rixas à parte, a circulação aérea no entorno do aeroporto internacional precisava, sim, mudar, urgentemente. Como represália, a Aeronáutica não reconhecia as aeronaves da Marinha, referindo-se a elas como “objetos voadores não identificados”.
Nessa linha, um caso marcante aconteceu em 1961, quando um North American T-6 da FAB abordou em voo um helicóptero Widgeon da Marinha, interceptando e obrigando a aeronave naval a se afastar das imediações do Galeão.
Em 7 de setembro de 1962, em meio às celebrações pelo Dia da Pátria, houve uma tentativa por parte da FAB de conciliação do conflito, após uma visita de cortesia do então comandante do Comando Aerotático Naval ao NAeL Minas Gerais. O brigadeiro da FAB viajou de helicóptero, pousou NAeL e levou uma mensagem de apreço à Marinha pela data nacional.
Até 1965, seria a única vez em que uma aeronave da FAB pousaria no Minas Gerais antes de uma solução definitiva do imbróglio. Pelo menos pelo lado da Marinha, o gesto dos coirmãos não teve o resultado esperado, muito pelo contrário.
Ainda em 1962, sem autorização prévia do governo brasileiro, a Marinha adquiriu, diretamente de fabricantes suíços e norte-americanos, doze aeronaves, sendo seis Pilatus P-3 e outros seis North American T-28C Trojan, este um modelo amplamente utilizado pela US Navy em seus navios-aeródromo.
A chegada dessas aeronaves ao Brasil, em 1963, ganhou repercussão nacional e a interpretação de que a Marinha “contrabandeou seus aviões” estampou a capa dos principais jornais do Rio de Janeiro na época. Uma operação noturna teve de ser organizada para o desembarque das caixas contendo as partes dos aviões desmontados e o transporte delas até a unidade naval na Avenida Brasil.
Lá os aviões foram montados e voaram para São Pedro da Aldeia, de madrugada, a fim de não chamarem a atenção do controle aéreo da FAB. O episódio ficou conhecido como “a revoada”.
O ponto alto da tensão entre militares da Marinha e da FAB aconteceu em Tramandaí, no Rio Grande do Sul, em 1964, com um incidente que ganharia ares pitorescos.
O almirante Rohwer conta que “um piloto da Marinha havia pousado o seu helicóptero Widgeon N-7001 na cidade gaúcha para reabastecer quando se deparou com três oficiais da FAB pertencentes ao 2º Esquadrão de Comando e Controle da base aérea de Canoas, que estavam em exercício fora de sede. Eles comunicaram ao comandante do helicóptero, um capitão de fragata, que a aeronave seria apreendida. Diante da negativa do militar da Marinha, este recebeu voz de prisão, que também não foi cumprida. O piloto até chegou a iniciar a decolagem, mas o helicóptero acabou alvejado por tiros de metralhadora vindos dos militares da FAB e teve o rotor de cauda danificado, impedindo o seu voo”, conta o atual comandante da Força Aeronaval.
O incidente acabou resultando na emissão de um decreto presidencial, que colocou ponto final em anos de animosidade entre Marinha e Aeronáutica sobre o Poderio Aeronaval. O “Decreto do Castelo” (em alusão ao então presidente Castelo Branco, que o assinara) determinava que a Aeronáutica deveria operar aeronaves de asas fixas e a Marinha, helicópteros.
O Esquadrão Cardeal da FAB (1° Grupo de Aviação Embarcada) recebeu os Pilatus P-3 e os T-28 e repassou à Marinha os helicópteros antissubmarino Sikorsky SH-34, em uma troca vantajosa para ambos.
Tinha início uma fase de desenvolvimento da Aviação Naval com a cooperação efetiva entre Marinha e Aeronáutica. Também a 2ª Esquadrilha de Ligação e Observação (ELO) foi transferida para a BAeNSPA, onde permaneceu por 30 anos até a sua desativação, em 1995.
Após um período de tanta animosidade, que durou quase 25 anos, manteve-se no ar o temor de que a operação conjunta no NAeL Minas Gerais não tivesse sucesso. Porém, aconteceu exatamente o contrário.
Desde o primeiro toque e arremetida de um Grumman Tracker P-16 da FAB, no dia 22 de junho de 1965, foram mais de 14 mil pousos e decolagens, demonstrações de extrema técnica e profissionalismo dos dois lados, durante os 32 anos seguintes, com elevados índices de segurança e operacionalidade.
Em 1998, foi desativado o 1° Grupo de Aviação Embarcada e o NAeL Minas Gerais passaria a ser um porta-aviões sem aviões, mas por pouco tempo. No mesmo ano, o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto devolvendo à Marinha o direito de operar aeronaves de asas fixas.
A Marinha agiu rápido e, atenta às oportunidades de mercado, soube que o Kuwait estaria interessado em vender seus A-4 Skyhawk. Apesar de relativamente antigos, os aviões haviam voado muito pouco.
Assim, foram adquiridas 20 unidades monoposto e outras três biposto, que, pelas configurações, seriam capazes de decolar do NAeL Minas Gerais, ainda que o porta-aviões estivesse com sua aposentadoria à vista.
Os Skyhawk chegaram a realizar suas primeiras operações no veterano navio no dia 11 de setembro de 2000. Eis que, no ano seguinte, chegou ao Brasil, para integrar a frota, o navio-aeródromo São Paulo, um vetor mais moderno, com uma pista de pouso cerca de 100 metros maior do que a do Minas Gerais.
Infelizmente para a Marinha, a carreira do NAe São Paulo acabou sendo bem mais curta do que os oficiais aeronavais gostariam. Aconteceram dois acidentes sérios em uma de suas caldeiras, inclusive com mortes a bordo.
Considerado um dos cinco maiores porta-aviões do mundo, o São Paulo contava com até 1.500 tripulantes. Entre os anos de 2005 e 2010, o navio passou por um programa de revitalização, mas havia sérias deficiências em motores, eixo e catapultas para lançar aviões.
Assim, o São Paulo deixou de navegar em 2014, tendo realizado no Brasil 566 operações de pousos e decolagens de aeronaves tripuladas, incluindo as do AF-1, designação da MB para o McDonnell Douglas A-4 Skyhawk, hoje operados a partir da base de São Pedro da Aldeia.
Em 2017, decidiu-se pela aposentadoria do A-12, uma vez que os gastos empregados na embarcação eram muito altos.
Depois de décadas de idas e vindas, a Aviação Naval vive um momento de integração plena com as demais forças armadas do país. No fim de 2020, Marinha, Exército e Aeronáutica realizaram pela primeira vez o que chamaram de Adestramento Conjunto de Emprego de Helicópteros.
Aeronaves das três forças armadas voaram a partir do porta-helicópteros multipropósito (PHM) Atlântico, principal vetor do poderio naval brasileiro. O objetivo da operação foi prover a qualificação de equipagens do Exército Brasileiro (EB) e da Força Aérea Brasileira (FAB) em pousos e decolagens a bordo de navios da Marinha do Brasil, responsável por cerca de 5,7 milhões quilômetros quadrados de águas oceânicas, que estão sob jurisdição brasileira, denominada Amazônia Azul.
Desde sua criação, no longínquo ano de 1916, até os dias atuais, incluindo o período de interrupção de suas atividades entre 1941 e 1952, a Aviação Naval da Marinha do Brasil se organiza em unidades aéreas.
Elas passaram por diversas reestruturações até a atual configuração, com dez esquadrões de aeronaves, sendo seis deles sediados na BAeNSPA, a morada da Aviação Naval, além de outros quatro esquadrões localizados em Belém, no Pará, Ladário, no Mato Grosso do Sul, Rio Grande, no Rio Grande do Sul, e Manaus, no Amazonas.
Por Marcelo Migueres*
Publicado em 02/09/2024, às 15h00
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