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A virada do Rafale

Como o Rafale virou arma geopolítica da França

O Dassault Rafale superou os reveses, conquistou o mercado internacional e hoje representa o futuro da indústria de defesa europeia


Mais que um caça, o Rafale representa o esforço da França por independência tecnológica - Dassault
Mais que um caça, o Rafale representa o esforço da França por independência tecnológica - Dassault

A Dassault Aviation intensificou sua campanha de exportação do caça Rafale, mirando o Canadá e Portugal como potenciais clientes em meio à revisão dos compromissos com o F-35 da Lockheed Martin. O movimento ocorre em um contexto de reavaliação estratégica entre os aliados dos Estados Unidos, diante das incertezas diplomáticas e militares provocadas por mudanças na Casa Branca.

A recente volatilidade nas relações internacionais, especialmente durante o governo Donald Trump, evidenciou a dependência da Europa em relação à proteção militar norte-americana. Embora não tenha havido mudanças práticas imediatas, declarações controversas – como o interesse na compra da Groenlândia e a postura ambígua diante da guerra na Ucrânia – acenderam o alerta entre os aliados europeus.

Os ruídos causados agitaram imediatamente o cenário internacional, sobretudo a Europa, que passou a encarar a dura realidade que se desejar garantir sua proteção deverá investir em soluções locais.

Desde o final da Segunda Guerra, os europeus passaram a reduzir seus orçamentos militares, em uma confortável situação de contar com a proteção de Washington, que enquanto ampliava sua influência no continente, investia bilhões de dólares muito além de suas fronteiras. 

Assim, a maioria dos países da Europa, ano após ano, reduziu seus investimentos e pesquisas em defesa, mantendo um mínimo necessário para não perder suas capacidades. A exceção é a França, que no caminho contrário dos vizinhos passou a investir de maneira independente — até onde é possível — em indústrias estratégicas, desde defesa até geração de energia.

A Dassault Aviation desde o final da guerra se destaca como um dos motores estratégicos da França. Por décadas seus aviões militares formaram a espinha dorsal da defesa francesa, sobretudo os Mirage. Aliás, o caça em delta foi por décadas a linha de frente de diversos países, com um histórico notável de ações em combate. 

Caças Rafale em voo com pós-combustão, executando manobra de subida
O Rafale foi desenvolvido para ser o único caça do arsenal francês

Nos anos 1970, a Força Aérea Francesa (Armée de l’Air) e a Marinha (Marine nationale) buscavam aeronaves de combate que pudessem substituir sua frota de caças, que ainda que fossem bastante capazes, já vislumbravam no horizonte uma defasagem de capacidade perigosa.

Apesar de inicialmente participar do programa que deu origem ao Eurofighter, a França discordou dos requisitos do modelo, em especial por não ter capacidade de operar embarcado, assim como a divisão do projeto. A alternativa foi manter sua independência, entregando o projeto para a Dassault, que era responsável pela maioria dos caças do país. 

Os requisitos do projeto previam que o novo avião deveria ter capacidade multimissão, incluindo superioridade aérea, reconhecimento, interdição, apoio aéreo aproximado, antinavio e dissuasão nuclear. Em resumo, o Rafale deveria ser o único caça do arsenal francês, com aptidão para assumir até mesmo missões especializadas, como ataques contra alvos navais e o emprego de armas nucleares. 

Um dos destaques do programa Rafale foi permitir os engenheiros ampliarem o uso de projetos em computador, utilizando o sistema CATIA (Computer Aided Three-dimensional Interactive Application), um pacote de software tridimensional de design e fabricação auxiliados por computador (CAD/CAM) desenvolvido pela Dassault Systèmes, e que se tornaria padrão em toda a indústria. 

CAD/CAM Catia Dassault
O Rafale foi o primeiro caça desenvolvido integralmente com o uso do sistema CATIA, software 3D criado pela Dassault Systèmes, que revolucionou o projeto com maquetes digitais, simulações em tempo real e integração total entre engenharia, produção e manutenção

Uma das vantagens do novo sistema foi permitir processos de desenvolvimento com maquete digital e gerenciamento de dados de produto (PDM, na sigla em inglês), aumentando a eficiência e reduzindo os riscos do projeto. Era possível saber antecipadamente detalhes como comportamento do componente, previsão de desempenho em voo, construção de ferramental com máxima eficácia, entre outros.

Outro ponto interessante é que o CATIA permitiu melhorar a ergonomia, ao oferecer a visão 3D em tamanho real do cockpit e todos os sistemas, melhorando até a manutenção de rotina. Além de ter inovado no uso intensivo de projeto em computador, o Rafale também se destacou por ser quase totalmente projetado e construído na França, por meio de uma ampla base industrial de defesa, que contou ainda com a Thales e a Safran (na época, Snecma).  

Embora seja um projeto 30 anos mais novo que o Mirage, os engenheiros da Dassault optaram por manter a configuração em delta, com canards próximos da fuselagem. De acordo com diversas simulações computacionais, a solução das asas em delta com canards próximos oferecia uma ampla faixa de posições do centro de gravidade para todas as condições de voo, além de excelente manobrabilidade em todo o envelope de voo.

Caça Rafale em voo de patrulha sobre área costeira, destacando alcance tático da aeronave
O Rafale combina comandos de voo elétricos (Fly-by-Wire) com canards próximos à fuselagem, garantindo alta manobrabilidade e estabilidade em todas as fases do voo, mesmo com cargas pesadas

No caso, essa configuração se mostrou essencial para o desempenho em combate do Rafale. Mesmo em ângulos de ataque elevados o avião mantém manobrabilidade elevada, mesmo com cargas mais pesadas de armamentos. Não por acaso, trata-se da configuração básica dos três principais caças europeus, incluindo o Eurofighter e o Gripen. 

O grande diferencial do Rafale está principalmente em sua eletrônica embarcada, como o sistema de controle de voo por comandos elétricos (Fly-by-Wire), com redundância quádrupla: três canais digitais e um canal analógico projetado separadamente, sem qualquer sistema mecânico de backup. O sistema se tornou inclusive a base também para o controle de voo da família de jatos de negócios Falcon, e, mais recentemente, o autothrottle também será empregado no futuro Falcon 10X, oferecendo uma única manete de potência. 

Embora comum em projetos mais recentes, o Rafale foi concebido com capacidade para realizar voos terrain following, ou seja, seguindo o relevo, em qualquer condição meteorológica, inclusive com visibilidade zero. Isso permite ao avião penetrar no espaço aéreo inimigo voando a baixa altura, aumentando as chances de cumprir a missão e considerado decisivo para a sobrevivência em ambientes com elevada defesa aérea. 

Cockpit Dassault Rafale
Desenvolvido no Rafale, o sistema Fly-by-Wire de redundância quádrupla foi adaptado para os jatos Falcon, culminando no Falcon 10X [abaixo] com controle por manete única e autothrottle avançado
Cockpit Falcon 10X

Os controles de voo e o seguimento automático do terreno (terrain following system, em inglês) trabalham de forma integrada com o Sistema Automático de Prevenção de Colisão com o Solo (AGCAS), que amplia a capacidade de voo mesmo em ambientes com topologia complexa.  

Outra característica até então inovadora foi o emprego de materiais compostos, que representam 70% da área da fuselagem, o que, além de aumentar a resistência estrutural, permitiu um ganho de 40% na razão entre o peso máximo de decolagem e o peso vazio, quando comparado com estruturas convencionais feitas de alumínio e titânio. 

Além disso, seguindo uma tendência dos anos 1980, houve uma preocupação considerável com a seção transversal de radar (radar cross-section) da fuselagem, visando ampliar a capacidade furtiva, ainda que distante do desempenho de aviões de quinta geração como o F-22 e F-35.

Embora a maioria das características de furtividade do projeto sejam classificadas, algumas são visíveis, como os padrões serrilhados nas bordas de fuga das asas e dos canards. Isso reduziu consideravelmente a assinatura radar, mesmo utilizando canard, o que segue sendo polêmico em projetos stealth, como o russo Su-57 e o chinês J-20. Porém, em caças de geração 4,5 (ou 4++), o canard não representa um problema de furtividade, ainda que os engenheiros tenham trabalhado para reduzir ao máximo seu efeito. 

Outra novidade do Rafale foi ter sido o primeiro caça europeu a utilizar um radar de varredura eletrônica ativa (AESA). Desenvolvido pela Thales, o radar RBE2 oferece capacidade de detecção e rastreamento antecipados de múltiplos alvos. Não por um acaso, a tecnologia AESA se tornou um padrão na indústria ao oferecer níveis inéditos de consciência situacional e capacidade de ataque.

Dassault Rafale em voo
Rafale simboliza a aposta da França em um caça multimissão 100% desenvolvido em sua própria base industria

Já os sistemas de missão do Rafale contam com a capacidade de integração de uma ampla variedade de armamentos, como os mísseis ar-ar Meteor, MICA IR e MICA EM, munições ar-terra Hammer, o míssil de cruzeiro SCALP e o míssil antinavio AM39 Exocet. Como armamento padrão o Rafale emprega um canhão NEXTER 30M791 de 30 mm, podendo ainda empregar armas convencionais e bombas guiadas. 

Embora o primeiro demonstrador de tecnologia tenha realizado o primeiro voo em julho de 1986, as mudanças na geopolítica, com o fim da Guerra Fria, somado aos humores políticos da França e da Europa, e cortes orçamentários, provocaram atrasos consideráveis no projeto. Originalmente, o cronograma previa que o Rafale estaria operacional em meados de 1996.

Os primeiros aviões de série só foram construídos em 1992, mas o projeto foi suspenso três anos depois. Após diversas mudanças de orçamento e prioridades, a produção foi retomada em janeiro de 1997, avançando na etapa de ensaios em voo para maturação de sistemas e operação. Todavia, o acordo agora previa um pedido para 48 aeronaves, sendo apenas 28 firmes, com as entregas ocorrendo entre 2002 e 2007.

Dupla de Dassault Rafale em voo
Recentemente o Rafale obteve diversos acordos internacionais, se tornando um dos principais caças de exportação da Europa

Embora comprovadamente um caça multimissão de alta capacidade, as perspectivas francesas não favoreciam as vendas internacionais. Sem um contrato robusto em um momento de incertezas econômicas no mundo, sobretudo na virada do século, o Rafale passou a sofrer derrotas em licitações internacionais. Ainda assim, em 2004 o governo francês confirmou um segundo lote, com 59 unidades da versão Rafale F3. 

Em 2009, o governo Lula chegou a declarar, de forma precipitada, que o Brasil havia selecionado o Rafale como vencedor do programa FX-2. O anúncio ocorreu durante a visita oficial do então presidente francês Nicolas Sarkozy ao Brasil. Imediatamente a Força Aérea Brasileira desmentiu o fato e concorrentes pediram explicações oficiais. Após a polêmica, o governo foi obrigado a recuar e afirmou que a concorrência ainda estava aberta. Embora a escolha do FX-2 só tenha acontecido mais tarde, em 2013, já no governo Dilma Rousseff, uma das negativas para a compra do Rafale seria a então dificuldade de vendas no modelo na própria França. Foi apenas em novembro de 2009, quase três meses após a declaração brasileira, que Paris encomendou 60 aeronaves adicionais, elevando o pedido total para 180 unidades.

No início dos anos 2000 o Brasil chegou a avaliar o Rafale para a Força Aérea Brasileira e uma eventual possibilidade de adquirir a versão embarcada para a Marinha

Contudo, em fevereiro de 2015, o Rafale obteve seu primeiro acordo internacional, com o Egito anunciando a compra de 24 aviões, seguido de um acordo similar com o Qatar dois meses depois. Na sequência, o Rafale ainda venceu contratos na Índia, Grécia, Emirados Árabes, Indonésia, além de uma venda de unidades usadas para a Croácia e um acordo em estágio avançado com a Sérvia.

Em outubro do ano passado, o presidente francês Emmanuel Macron voltou a oferecer o Rafale ao Brasil, como parte de um amplo acordo de defesa. A oferta prevê 24 aviões e armamentos, com o objetivo de substituir, no curto prazo, a frota de A-1 AMX, que deverá ser aposentada nos próximos meses.

Todavia, a oferta ocorre em um momento em que a FAB busca orçamento para um segundo lote do Gripen, o vencedor do programa FX-2. Além disso, diante da perspectiva de não existir verba suficiente, avalia um lote de F-16 usados como solução tampão para substituir os AMX e F-5.

Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 04/06/2025, às 14h00


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