O descumprimento intencional de procedimentos revela-se um dos maiores desafios no dia a dia de quem voa e torna a desobediência um padrão
Em dezembro de 2001, um Gulfstream 3, chegando em Aspen, no estado norte-americano do Colorado, acidentou-se a 750 metros da cabeceira, em uma atitude típica de desorientação espacial por tentativa de voo visual em condições meteorológicas de voo por instrumentos (IMC), determinando a perda de vida de 15 pessoas.
Durante a investigação, o National Transportation Safety Board (NTSB) descobriu que os pilotos concluiriam a aproximação em período noturno, o que não era permitido na localidade. Como agravante, ao atingir a altitude mínima de descida (MDA) sem avistar a pista, os pilotos mantiveram a rampa e colidiram com o terreno com uma inclinação de 40 graus.
Mais de uma década depois, em 2014, um evento envolvendo um Gulfstream 4 também chocou os investigadores. Durante a tentativa de decolagem da Bedford, em Massachussets, com a trava de comandos (gust lock) aplicada, a aeronave sofreu uma excursão de pista e colidiu com um barranco a 250 metros do fim da faixa pavimentada do aeroporto Hanscom Field, em velocidade superior a 90 nós, vitimando sete pessoas.
O que impressionou a equipe do NTSB, nesse caso, foi que o check de comandos (que possibilitaria identificar que a gust lock não havia sido retirada) fora negligenciado em 172 das 175 decolagens anteriores realizadas por aquela mesma aeronave.
Em outras palavras, um procedimento obrigatório para todas as decolagens, que consome menos de 20 segundos, foi negligenciado em 98% das operações. Nesse episódio em Bedford houve, ainda, um agravante: todos os quatro checklists que deveriam ter sido feitos antes da decolagem não aconteceram.
O que esses acidentes têm em comum entre si e o que dividem com dezenas de outros eventos conhecidos globalmente? Sim, a negligência intencional de procedimentos ou normas que, nos casos citados, são considerados basilares para a segurança operacional: execução de checklists, respeito a mínimos meteorológicos e combustível mínimo.
Se explicar o não cumprimento intencional de regras ou procedimentos pode ser considerada uma tarefa até simples, compreender a motivação por trás de tais comportamentos se mostra um desafio bem mais complexo.
Refletindo sobre essa questão, em janeiro de 2006, o piloto David Rutzinger, em um artigo publicado na revista Business and Commercial Aviation, cunhou pela primeira vez a expressão Procedural Intentional Non-Compliance, ou apenas PINC (que, em tradução livre, seria justamente o descumprimento intencional de procedimentos).
O texto recebeu o título In the PINC. David Rutzinger, que iniciou sua carreira como piloto de helicóptero na Guarda Costeira norte-americana, tornou-se um profissional de referência da indústria do transporte aéreo na área de segurança operacional, tendo ocupado, por exemplo, o cargo de diretor de segurança da Korean Air. Em seu artigo, Rutzinger investigou a fundo o famigerado comportamento PINC.
Sua análise começa fazendo uma relevante distinção entre fugas de padrão intencionais e não intencionais, reconhecendo que todos os pilotos, em algum momento, fogem da regra escrita.
Nesses casos, contudo, a fuga costuma ser não intencional, e se justifica por diversas circunstâncias, incluindo falha da aeronave, problemas com passageiros ou mesmo esquecimento. Eventos como esses se distinguem claramente de um comportamento PINC, uma vez que há a ausência de intenção (ou presença, no caso do PINC) de um descumprimento deliberado de determinada regra ou procedimento.
A ocorrência de eventos PINC está associado à presença de três fatores que motivam esse tipo de comportamento.
O primeiro tem relação com a presença de um sentimento de recompensa diante de uma violação, o que é algo extremamente individual. Em outras palavras, diferentes motivações estimulam o comportamento de non-compliance. Há quem se sinta recompensado por estímulos financeiros, enquanto outros se sentem recompensadas pelo sentimento de “cumprir a missão”. Há, ainda, recompensas pessoais, tais como exibição aos pares, redução do tempo de voo, discordância com procedimentos publicados ou o simples desejo de pousar logo.
O segundo fator presente nesses eventos seria uma avaliação de sucesso em relação ao risco, feita pelo autor da violação. Uma linha de raciocínio se estabele da seguinte forma:
Se nessa avaliação o infrator percebe uma alta probabilidade de sucesso em relação aos riscos identificados, resta como barreira ao evento PINC o receio de uma punição.
Relacionado ao receio dessa punição, está o terceiro componente de um evento PINC, que seria a ausência de reação adversa de outras partes. Uma pessoa que rotineiramente viola as regras se sente confiante de que não haverá reação adversa de outros pilotos, das autoridades, de clientes ou de seu empregador.
Essa aceitação do non-compliance por quem deveria ser gatekeeper, por sua vez, também tem diferentes origens: desconhecimento (o gatekeeper desconhece a ocorrência de eventos PINC), a indiferença (sabe que ocorrem, mas não se importa) ou até mesmo o estímulo (incentivando o evento).
Na memória relativamente recente dos brasileiros está a tragédia com a equipe da Chapecoense, na Colômbia, ocorrida em novembro de 2016. Tão trágicas quanto a perda de 71 vidas foram as circunstâncias em que ocorreu o acidente: os pilotos souberam, desde o planejamento, que, mesmo com os tanques cheios, o combustível abastecido era suficiente para cumprir exatamente a etapa entre Santa Cruz de La Sierra e Rio Negro, sem nenhuma reserva para contingências, desvios ou alternados.
Durante o voo, a situação do combustível e possíveis soluções foram discutidas, mas os pilotos optaram por deixar o combustível acabar sem nunca terem formalmente declarado emergência.
Analisando esse acidente sob a ótica de Rutzinger, é possível notar a presença destes três componentes clássicos de eventos PINC, o sentimento de recompensa, a análise de risco e a ausência de reação adversa de outras partes.
Muitos eram os sentimentos de recompensa presentes naquele voo: compensar a equipe da Chapecoense por um serviço anterior e economizar custos e tempo em relação a um abastecimento adicional, por exemplo.
O segundo componente é a análise de risco, que foi comprovada pelo próprio registro do gravador de voz da cabine (o CVR): em determinado momento, a tripulação discute a questão do combustível e alternativas.
Em comum a outros eventos PINC, contudo, está a inutilidade desta avaliação: de que adianta avaliar o risco se não se tem a intenção de colocar em prática as ações de mitigação? Mais clara ainda é a ausência de reação adversa de outras partes. Uma vez que o plano de voo (apesar da clara inconsistência em relação ao combustível) foi aceito e aprovado, as autoridades de controle de tráfego aéreo (ATC), em alguma medida, contribuíram para o desfecho da viagem.
Dentro da aeronave, a situação era ainda pior. Sim, o comandante do voo era um dos proprietários da empresa e empregava todos os demais membros da tripulação. Quem deveria ser o gatekeeper era, na verdade, o autor do non-compliance.
Diante de fatores tão presentes no comportamento humano, como é possível prevenir os eventos PINC? A prevenção passa justamente por eliminar da operação esses componentes tão presentes nessas ocorrências.
A primeira estratégia de prevenção é, portanto, eliminar o sentimento de recompensa. Por exemplo: se a companhia passa por dificuldades e o sentimento de recompensa vem no sentido de “ajudar” o empregador, a estratégia de prevenção é blindar a linha de frente dessas adversidades.
Se a recompensa é diretamente financeira, a organização (que pode ser um esquadrão ou outra unidade militar, um operador civil regular ou de fretamento ou mesmo um proprietário de aeronave) deve refletir: por que meu funcionário coloca seu emprego, sua reputação profissional e sua vida em risco por valores tão baixos?
A segunda recompensa, relacionada ao sentimento de cumprimento da missão, tem como estratégia de prevenção a mudança de cultura e também passa por blindar a equipe de aspectos específicos da missão.
Não são estratégias fáceis, sobretudo em determinados tipos de operação. Em operações de fretamento, por exemplo, o cliente sempre espera ser entregue no destino. Para a ação de mitigação ser efetiva, o cliente deve saber que o cumprimento de procedimentos é de interesse de sua própria segurança. Nesse tipo de operação, também compensa ter um backup.
Por fim, a maior prevenção de sentimento de recompensa está na disciplina do pessoal da linha de frente, que deve reconhecer motivações e atitudes PINC e, também, admitir que sua conduta pode ser pior do que parece.
A segunda estratégia de prevenção é a eliminação da avaliação de risco, ou seja, a eliminação do racional. A organização deve deixar claro que não espera que os integrantes da linha de frente (seus pilotos, por exemplo) atuem como super-heróis. O que se espera de bons profissionais é a aderência às regras e aos procedimentos e, caso estes sejam ruins, que se discuta em ambiente apropriado.
Outra ferramenta é deixar claro o resultado de eventos PINC anteriores e, nesse aspecto, não faltam exemplos na aviação: ainda que um comportamento PINC não gere uma tragédia, incontáveis desastres começaram com um evento PINC.
Estratégias adicionais passam por demandar disciplina, enfatizar o comprimento de procedimentos e, principalmente, criar ferramentas robustas de avaliação de risco para situações não previstas.
São as chamadas Flight Risk Assessment Tools (FRAT), que ajudam os pilotos em situações não previstas e funcionam de forma similar às matrizes de avaliação de risco e consequência.
A organização pode também atuar provocando a reflexão sobre os possíveis desfechos sobre um evento PINC: seria defensável frente à justiça ou à autoridade de aviação civil? Como o indivíduo seria responsabilizado? O receio de punição é uma ferramenta eficaz para aumentar a percepção de risco de um non-compliance intencional.
Por fim, a última estratégia de prevenção é estabelecer a reação adversa e, para isso, há alguns artifícios, tais como o treinamento em gerenciamento de recursos em cabine (CRM) e a cultura justa, em que os eventos devem ser reportados e aqueles que forem reportados serão investigados e, sobretudo, devidamente tratados. Em outras palavras, a organização não pode ser cúmplice desse tipo de comportamento.
Se o estabelecimento da reação adversa (em que se reporta, investiga-se e se enfrenta os eventos PINC) é uma estratégia de prevenção, deve-se compreender como o mecanismo de investigação colabora com a segurança operacional. Dentro do processo investigativo, a primeira pergunta que deve ser feita é: “Por que esse evento ocorreu?” Esse é um questionamento que, desde o início, ajuda a entender a motivação do indivíduo e o papel da organização na ocorrência.
A motivação pode ter justificativas razoáveis dentro do contexto operacional, tais como regras inapropriadas, não escritas ou desatualizadas. Outra justificativa compreensível para se deixar de cumprir uma regra ou um procedimento é uma emergência em voo.
No entanto, se o indivíduo apresenta justificativas que se caracterizam mais como o que foi chamado anteriormente de “recompensa”, o tipo de tratamento deve ser diferente. Para exemplificar a perspectiva da motivação por meio de uma regra inapropriada ou desatualizada, considere a situação do ingresso em um circuito de tráfego em forma contrária a uma carta de aproximação visual (VAC) publicada para aquele aeródromo.
Ora, se foi construído um determinado obstáculo violando a zona de proteção do aeródromo na trajetória da perna base publicada na referida carta VAC, não é impossível que os pilotos que operam rotineiramente naquele aeródromo descumpram aquela trajetória em que se encontra um risco inaceitável para a operação.
No mesmo exemplo do descumprimento de um circuito de tráfego, imagine uma aeronave fazendo uma aproximação direta (sem ingressar no circuito): esse pouso direto pode ser motivado por uma emergência, como uma pane seca iminente ou uma emergência médica, ou pode ser motivado simplesmente pelo desejo de economizar tempo.
Trata-se de um mesmo evento PINC com justificativas distintas, e que devem ter tratamentos distintos.
Compreendida a motivação do indivíduo, o próximo passo é compreender o papel da investigação no evento. Essa organização investigou e tratou adequadamente eventos de non-compliance anteriores ou varreu para debaixo do tapete? Treinamentos, manuais e procedimentos são adequados às regras e à realidade operacional? Há incentivo ao compliance e desincentivo ao PINC? Por fim, a organização cerceia oportunidades e estímulo à violação?
Em 22 de maio de 2020, ocorreu um dos mais chocantes eventos de PINC da história da indústria, com a queda de um A320 no aeroporto de Karachi, no Paquistão. Somente nesse evento, entre vítimas no solo e na aeronave, cem pessoas perderam suas vidas.
O descumprimento intencional de procedimentos (ou regras) ainda é responsável por grande parte dos acidentes na aviação mundial, a despeito dos trabalhos de conscientização desenvolvidos ao longo dos anos.
Para mitigar essa ameaça sempre presente, a organização deve tomar a frente para a prevenção de eventos PINC: por ter mais recursos e por ser a liderança, cabe a ela dar o tom da operação. Em seguida, vem o papel da linha de frente da operação, pois a ela cabe resistir às tentações ao desvio, que aparecerão.
Ter disciplina, revisar constantemente suas próprias premissas, assumir pior cenário e seguir os procedimentos operacionais padronizados (SOP) são passos fundamentais para uma cultura segura.
Por fim, os observadores, as outras partes envolvidas na operação, têm o poder-dever de relatar eventos, ou seja, de estabelecer a relação adversa, entendendo também que quem comete desvios nem sempre é “culpado”, pois pressões externas ao desvio também estarão presentes.
* Francisco Augusto Costa é piloto de A320
e mestre em Transporte Aéreo e Aeroportos pelo ITA.
Por Francisco Costa*
Publicado em 09/10/2023, às 17h00
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