Jornalista homônima refaz com um turbo-hélice monomotor a circum-navegação que a pioneira Amelia Earhart tentou em 1937
A vida e o desaparecimento da aviadora norte-americana Amelia Earhart sobre o Oceano Pacífico é um episódio inesquecível, atingindo o status de lenda. Pioneira da aviação que tentou circum-navegar o globo em meados de 1937, ela é objeto de biografias e documentários, se tornando personagem de filmes, livros, peças de teatro, canções populares e, volta e meia, até de teses conspiratórias envolvendo extraterrestres e identidades trocadas. A partir dos anos 1960, com o avanço da tecnologia aeronáutica, sua malfadada viagem foi refeita, sem incidentes, por outras mulheres em pelo menos três voos comemorativos bem documentados. Mesmo assim, o desafio continua atraente. Na quarta e mais recente jornada, concluída em 12 de julho último, Amelia Rose Earhart, de 31 anos de idade, tornou-se a mulher mais jovem a cruzar o planeta em um monomotor. Sem parentesco com a aviadora original, Amelia Mary Earhart, a nova Amelia herdou, além do nome escolhido por sua mãe, a paixão por aeronaves e grandes travessias. A circum-navegação começou e terminou no Aeroporto Metropolitano Rocky Mountain (KBJC), próximo a Denver, no estado do Colorado, após 17 dias de viagem e 45.000 km (24.300 mn) percorridos em 108 horas de voo, com 17 escalas técnicas em 12 países.
Amelia Rose comandou um Pilatus PC-12NG adaptado para grandes travessias ao lado do copiloto Shane Jordan – em 1937, Amelia Mary voou um bimotor Lockheed L 10E Electra em companhia do navegador e piloto Fred Noonam. O planejamento durou cerca de um ano e meio e incluiu a obtenção de vistos, escolha da rota, permissões de sobrevoo, vacinação, cursos de sobrevivência no mar, mecânica, navegação, escolha de bases de apoio, gerenciamento de combustível, escolha de equipes de trabalho e de divulgação. Jornalista de rádio e TV, Amelia atuou por oito anos como repórter aérea em Los Angeles e para a rede afiliada da NBC em Denver, acumulando cerca de 4.000 horas na operação de uma câmera Cineflex de alta definição a bordo de aeronaves AS350 Eurocopter (hoje Airbus Helicopters). A inspiração para tentar a aventura de sua homônima famosa foi um desafio decorrente de seu nome e de seu trabalho nos céus como repórter. “As pessoas sempre me perguntavam: ‘Você nunca irá voar ao redor do mundo? Você poderia se tornar piloto’. Fiquei tão irritada com isso que resolvi dar uma olhada para ver se gostava. Acontece que adorei. É a minha paixão”, afirmou.
Com tanque suplementar de 800 galões, PC-12NG teve alcance ampliado para 4.630 km
Apesar de relativamente novata, Amelia Rose entrou com tudo na vida de piloto de olho na possibilidade de completar a façanha de sua ilustre xará, uma ideia que havia passado por sua cabeça na adolescência, mas que depois acabou deixada de lado. A licença de piloto privado foi obtida só em fevereiro de 2010, enquanto o aprendizado para voar por instrumentos (IFR) terminou no final de 2012, em uma travessia continental entre Oackland, Califórnia, e Miami, Flórida. A mesma rota que a aviadora original havia percorrido pouco antes de sua fatídica viagem. A certificação IFR veio em junho de 2013, a bordo de um Cirrus SR-20, já com a viagem acertada. Em janeiro deste ano, Amelia Rose cruzou o Atlântico Norte a partir de Stans, na Suíça, até Denver, no PC-12 NG que pilotaria ao redor do mundo. Já famosa nos EUA, foi convidada a “passear” em um F-16D do 120thFighter Squadron da USAF, na base de Buckley.
Para a viagem, o PC-12NG voado por Earhart e Shane Jordan – que é instrutor do modelo, mas não assumiu os comandos – recebeu um tanque suplementar de 3.100 litros (800 galões), ampliando o alcance para 4.630 km (2.500 mn). A modificação foi necessária para garantir a travessia de grandes distâncias sobre o Oceano Pacífico. Também foram instalados equipamentos de comunicação via satélite para transmissões ao vivo e emprego de redes sociais. Junto com outros fornecedores, o fabricante prestou apoio nas diferentes etapas da viagem, incluindo a escala de 16 horas em Natal, entre 30 de junho e 1º de julho, antes da travessia do Atlântico Sul até Dacar, no Senegal.
Pilatus PC-12 NGTipo Monomotor turbo-hélice Desempenho* Distância de decolagem sobre obstáculo de 15 m (50 ft) 808 m (2.650 ft) Motor Motor 1 Pratt & Whitney Canada PT6A-67P Dimensões Comprimento 14,4 m (47 ft 5 in) Pesos Vazio 2.974 kg (6.557 lb) |
A viagem começou com um trajeto rumo oeste, em 25 de junho, de Denver para Oackland e, de lá, para Miami, na Costa Leste, onde a viagem original teve início, em 1º de maio de 1937. As primeiras escalas fora dos EUA foram em Trinidad e Tobago e Natal, no Brasil. Durante o trajeto Amelia tuitou ininterruptamente, angariando uma legião de fãs. De saída, os registros mostravam certo formalismo. “Com uma etapa de oito horas pela frente, vamos descansar, pensando em acordar às 4 da manhã para entrevistas e voar para Natal”, postou em 28 de junho, em Trinidad. Em outros momentos houve deslumbramento. “Eu só posso imaginar o que há dentro da floresta úmida do Rio Amazonas... Tão misterioso e escuro”, postou no dia seguinte. Em 2 de julho, exatos 77 anos após o sumiço de Amelia Earhart e Fred Noonam no Pacífico, Amelia Rose sobrevoava a África Equatorial, entre São Tomé e Príncipe e a Tanzânia: “Vemos o Kilimajaro. Estamos a 250 km (154 milhas) e podemos avistar seu pico nevado”. Se em Dacar a dupla teve acesso à sala presidencial do aeroporto, em Lae, na Nova Guiné, houve um atraso de quatro horas na alfândega. As instalações nas ilhas Christmas eram sofríveis e, em 5 de julho, o trecho de sete horas e meia entre Cingapura e Darwin, Austrália, exigiu nove horas de voo trabalhoso diante de ventos de proa de até 87 km/h (47 nós) sobre Bornéu.
Tempo e distância108 horas de voo |
O grande dia da circum-navegação ocorreu em 9 de julho, quando o PC-12 NG fez um desvio ao decolar de Bonriki, no atol de Tarawa, em Kiribati, para sobrevoar a Ilha Howland, distante cerca de 1.150 km (620 mn), o ponto de abastecimento jamais alcançado pela primeira Amelia. Com bom tempo, Amelia Rose e Shane Jordan puderam fotografar a ilhota, um território norte-americano não incorporado com 2 km de extensão e uns 500 m de largura, situado 48 minutos ao norte da linha do Equador, a 3.100 km do Havaí, na metade do caminho para a Austrália, quase na Linha Internacional de Data. O pouso ocorreu no aeroporto Cassidy, nas Ilhas Christmas, ainda em Kiribati, após 3.245 km (1.752 mn) percorridas. No dia seguinte, a dupla seguiu rumo norte, para Honolulu. Dois dias depois, em 12 de julho, sábado, pousaram em Denver diante de duas dúzias de fãs (registro do noticioso 9News Denver), encerrando uma viagem sem incidentes que misturou aventura, planejamento e tecnologia aeronáutica. Durante o sobrevoo da Ilha Howland, a piloto anunciou, via Twitter, os nomes dos primeiros contemplados com as bolsas de estudos de sua fundação Fly With Amelia, que auxilia garotas entre 16 e 18 anos a aprender a voar. “Foi incrível ver o quão corajosa esta mulher foi na década de 1930, sem (os equipamentos de) navegação que temos hoje”, disse a Amelia Rose Earhart após completar seu incrível voo.
Por André Vargas
Publicado em 30/07/2014, às 00h00 - Atualizado às 19h10
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