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Turbulência inesperada

Aumento da incidência desse tipo de fenômeno precisa ser mais bem investigado, segundo mostra episódio envolvendo voo da TAM entre Madri e Guarulhos, que deixou pelo menos 15 feridos


Serão necessárias novas pesquisas básicas de meteorologia para esclarecer a crescente incidência de condições atípicas de turbulência em ar claro, algumas atribuídas nos meios aeronáuticos a estranhos “bolsões de ar quente”, não descritos em literatura científica, enquanto se testam em laboratório novos instrumentos para medida de turbulência atmosférica, baseados em radar óptico. Considerando 60 anos de experiência prática e acadêmica nos estudos de fenômenos atmosféricos, diria que a atmosfera terrestre não é mais a mesma e, de modo geral, está mudando para pior.

Na noite do primeiro para o segundo dia de setembro último, o voo JJ 8065 da TAM, Madri-Guarulhos, encontrou forte e inesperada turbulência no FL400, pouco antes de cruzar a linha do equador, cerca da meia-noite no horário local. Dos 168 passageiros e 16 tripulantes a bordo do Airbus A330, 15 sofreram ferimentos. O avião foi obrigado a fazer pouso não programado em Fortaleza (CE) para atendimento e hospitalização de feridos. Segundo os depoimentos dos passageiros, tudo durou de 10 a 15 segundos e as luzes de alerta para que todos apertassem seus cintos não estavam acesas. Os relatos também não falam de tempestade, nem mesmo de nuvens no céu. Até então, o voo seguia tranquilo, mesmo tendo atravessado, mais de uma hora antes, a zona de convergência intertropical, onde normalmente ocorrem turbulências associadas a formações de cúmulos-nimbos, como as que causaram a queda do voo AF447, da Air France, em 2009.

A posterior análise meteorológica da região onde se deu o voo
JJ 8065 da TAM, de fato, não indica nenhuma condição atmosférica conhecida associada a turbulências em níveis altos, tais como a presença de nuvens convectivas de grande desenvolvimento vertical ou de fortes variações de velocidade e direção do vento (isto é, cisalhamento) – que causam a turbulência de ar claro. O que se nota, na rota, é um amplo arco de ventos curvando-se de nordeste 30 nós ao norte do equador, para oeste 40 nós ao sul da linha, condição que normalmente estaria associada a bom tempo.

Parece, portanto, que temos mais um exemplo de condições atípicas de turbulência em ar claro, exemplo que se soma a vários outros em anos recentes, tais como, entre os que afetaram passageiros brasileiros, o da própria TAM, Miami-Guarulhos, na altura de Ribeirão Preto, em maio de 2009, e o da Continental, Rio-Houston, ao norte da República Dominicana, em agosto de 2009, que foi obrigado a desviar para Miami.

Meteorologia e acidentes

A turbulência, como uma propriedade natural dos fluidos e que se manifesta como movimento irregular e às vezes caótico do meio, é objeto de estudo da física e em especial do ramo da mecânica dos fluidos. Dentre os grandes nomes da ciência que contribuíram para o entendimento do fenômeno estão, para citar alguns, Reynolds, Helmholz, Bernouilli, von Karman e Prandtl. São nomes também associados à criação da aerodinâmica, ou seja, homens que fundaram a ciência do voo mecânico. Entre eles cabe destacar, ainda, Otto Lilienthal, o grande experimentador do voo planado, que pagou com sua própria vida o preço do pioneirismo, ao enfrentar a turbulência orográfica ao voar nos montes Rhinower, na Alemanha, em 1896.

Há, entretanto, uma diferença importante entre a definição de cientistas para a “turbulência clássica” – em termos do campo da velocidade e sua variação aparentemente aleatória –, e a definição dos pilotos para a “turbulência aeronáutica” – em termos das reações da aeronave. Com isso, não só movimentos desorganizados do ar constituem turbulência, mas também movimentos organizados com força e tamanho suficientes para influir no voo. Além disso, as ações do piloto podem mascarar as turbulências atmosféricas e introduzir outras acelerações.

Como é justamente na atmosfera que podemos encontrar os mais radicais exemplos de fluxo turbulento, são os aviadores os profissionais que no seu dia a dia mais convivem com o fenômeno. Felizmente, o voo em geral é bem mais frequente em condições calmas do que turbulentas. Estima-se que a probabilidade de uma aeronave na troposfera terrestre (a camada mais agitada, em contato com a superfície) encontrar turbulência significativa é de uma vez em 20. Quando ocorre, a maior parte da turbulência é leve, mas, dependendo de localização geográfica, altitude, época do ano, condições locais de tempo, hora do dia e outros fatores, o risco de turbulências moderadas, severas e mesmo extremas aumenta consideravelmente.

Um estudo da FAA sobre um total de 20.732 acidentes de aviação nos Estados Unidos no período de 1992 a 2001 concluiu que 4.316 das ocorrências estiveram associadas a causas ou fatores meteorológicos, dos quais 509 foram associados a turbulências. Entre os acidentes relacionados a turbulências quase 23% foram fatais, totalizando 251 mortos. Na aviação geral, a causa ou fator mais frequente dos acidentes se associam em geral a correntes descendentes enquanto nas linhas aéreas a turbulência de ar claro (CAT) predomina nos dados estatísticos dos acidentes. Outros fenômenos ligados aos acidentes elencados no estudo foram onda de montanha, turbulência dentro de nuvens, turbulência dentro de cúmulos-nimbos (trovoada), ascendentes e turbulência induzida pelo terreno e por convecção.

É interessante observar as tendências assinaladas por esse levantamento da FAA. Na aviação geral houve uma redução grande (de quase 60%) dos acidentes relacionados com turbulência no período de 10 anos analisados, ao passo que na aviação de transporte registrou-se um aumento. Curioso observar, também, que os acidentes associados a turbulências na aviação geral nos EUA ocorreram com maior frequência na fase de cruzeiro, seguida pela fase de aterrissagem. Muitos acidentes com aviões de menor porte nos EUA ocorrem em estados montanhosos, como Colorado e Novo México, onde a influência do relevo é maior. O estudo da FAA dá o seguinte exemplo: piloto encontra fortes ventos em altitude ao entrar num passo de montanha a 3.200 m (10.500 pés) de altitude, no Colorado; descendente severa causou 245 m (800 pés) de perda de altura, ficando abaixo da crista, cabrou e impactou a neve, não houve feridos.

Outros três exemplos da FAA para acidentes com aeronaves de transporte comercial relacionados a turbulências são instrutivos:

  1. Aeronave danificada, comissário e passageiros feridos seriamente; o despacho falhou em repassar aviso de condições meteorológicas significativas (SIGMET), incluindo tornados; no início da subida, encontrou linha de trovoadas, radar mostrou brecha de 10 milhas, mas, em seguida, apareceu eco de nível 6; granizo partiu para-brisa e danificou pitot, radome, asas, cauda e motores.
  2. Voo vetorado entre duas células em IMC (Condições Meteorológicas por Instrumento), CB observado visualmente à frente, mas sem eco no radar, tarde demais para evitar, turbulência severa durante 10 segundos perdendo 900 pés de altitude, 3 comissários e um passageiro feridos seriamente.
  3. Voo cargueiro em cruzeiro encontra turbulência severa de ar claro no FL310 (31.000 pés), grandes flutuações de velocidade e oscilações tanto de arfagem como rolagem, motor 1 e 19 pés do bordo de ataque da asa esquerda se desprenderam, pilone do motor 4 rachou.

Nos últimos anos, têm se repetido com mais frequência as notícias sobre acidentes ou incidentes sérios de turbulência em voo na aviação comercial. A queda do Airbus A330 na rota Rio-Paris em 01 de junho de 2009 foi, sem dúvidas, o mais trágico deles, e ocorreu em condições de turbulência encontrada no FL350 dentro de cúmulos-nimbos na zona de convergência intertropical próximo ao equador. Em 3 de agosto do mesmo ano, ocorreu o incidente com Boeing 767 da Continental, voo Rio-Houston, pouco ao norte da Republica Dominicana, ferindo 26 dos 179 ocupantes a bordo e obrigando o avião a pousar em Miami. Em 26 de maio, ainda em 2009, um A320 da TAM, ao término de voo Miami-Guarulhos e na altura de Ribeirão Preto, também sofreu com inesperada turbulência. Muitos casos mais, ocorridos em países como Japão, China, Austrália, EUA e Canadá, poderiam ser acrescentados. Embora vários deles possam estar relacionados à turbulência de ar claro, uma análise meteorológica falha em identificar os fatores comumente associados ao fenômeno, tais como cortantes (cisalhamento) do vento e proximidade de grandes nuvens convectivas, também deve ser considerada. Mesmo no caso do voo AF447, a formação forte de gelo nos tubos pitot, em nuvens equatoriais, não seria um fenômeno típico.

Paralelamente, estudos meteorológicos da Universidade de Reading na Inglaterra, publicados na revista “Nature Climate Change” e recentemente apresentados na União Européia de Geociências, em Viena, comprovaram que a estrutura básica da atmosfera acima dos 10 km de altitude está se alterando e contribuindo para aumentar a intensidade dos ventos nestes níveis. Como consequência dessa constatação, os cientistas preveem um aumento de 10% a 40% da turbulência média sobre o Atlântico Norte, duplicando a probabilidade de encontro de turbulência moderada ou maior nessa rota, até meados deste século. A pesquisa estima o custo anual disso para a aviação comercial em 150 milhões de dólares anuais. Espera-se mitigar os prejuizos com melhor tecnologia e melhor treinamento dos previsores meteorológicos.

Previsão de turbulência

O quadro ao lado resume graficamente os fenômenos atmosféricos responsáveis por turbulência. Existem algumas normas fundamentais sobre as técnicas para evitar turbulência, com base em parte nas publicações da OACI. Como regra geral, com os instrumentos atualmente disponíveis, o piloto não pode dar-se conta da existência de turbulência em alto nível em céu claro (sem nuvens) antes de penetrar nela. Por isso, a análise das condições meteorológicas antes do voo, as previsões e os reportes de voo, procedentes de aeronaves na área, são da maior utilidade para planejar operações nas áreas suspeitas.

A causa principal da turbulência em alto nível em ar claro é a cortante do vento, que se apresenta tanto em ar claro como dentro de nuvens. A cortante do vento é uma mudança do vetor vento (direção e/ou velocidade) horizontalmente através de uma área, ou verticalmente numa camada.

Nas zonas frontais, a mudança predominante do vento nos níveis inferiores consiste em mudança de direção, enquanto as mudanças de velocidade são mais comuns nos níveis superiores. Em ambos os casos, a mudança de temperatura que ocorre através da frente geralmente vem acompanhada de turbulência.

Nas zonas sem frentes, em altos níveis, a turbulência é causada por mudanças de velocidade ou da direção do vento, ou por ambas. As variações de velocidade são encontradas mais frequentemente perto de uma corrente de jato, enquanto as mudanças direcionais associam-se a cavados e cristas da pressão em alto nível. Ambos os tipos se combinam muitas vezes em correntes de jato que apresentam meandros.

Ventos fortes que sopram sobre terreno acidentado produzem uma grande quantidade de turbulência e de correntes. A mistura, por efeito mecânico, estende essa turbulência para cima na atmosfera, até uma altura que depende não só do gradiente térmico vertical como da velocidade do vento. Quando uma forte corrente de ar estável se desloca perpendicularmente a uma crista montanhosa, no lado de sotavento, pode haver formação de uma onda estacionária com correntes verticais acentuadas. A turbulência de onda orográfica pode alcançar milhares de pés acima da tropopausa; é mais pronunciada quando o terreno descende bruscamente no lado de sotavento.

As correntes de jato de uma velocidade superior a 205 km/h (110 nós) no núcleo podem apresentar áreas de turbulência importante nas proximidades, na tropopausa inclinada em cima do núcleo, na frente da corrente de jato por baixo do núcleo e no lado de baixa pressão do núcleo. Nestas áreas há frequentemente cortantes fortes do vento.

Os seguintes valores medidos de intensidade de turbulência e expressos em termos de velocidade de rajada vertical derivada permitem comparar aeronaves com respostas distintas:

Tipo de turbulênciaFlutuação de velocidade no ar (kt) Aceleração vertical (g)Rajada derivada (pés por minuto)
Leve5 – 14,90,20 – 0,49300 – 1.199
Moderada15 – 24,90,50 – 0,991200 – 2099
Severa> ou = 251,0 – 1,992.100 – 2.999
Extrema> ou = 2,00> ou = 3.000

Medições mais precisas requerem instrumentação avançada como plataformas inerciais e navegação por satélite e determinação precisa do ângulo de ataque.

Turbulência no Brasil

A meteorologia e a climatologia aeronáutica no Brasil, apesar de inegáveis progressos nos últimos anos, continua deficiente e ainda não satisfaz os requisitos operacionais para melhor planejamento, previsão de rotas, operação de aeroportos e assim por diante. Faltam estudos especializados, estatísticas meteorológicas, radares Doppler, sondadores verticais, estações automáticas, para citar algumas das carências.

Um trabalho útil divulgado no site do Decea (Departamento de Controle do Espaço Aéreo) trata das características de turbulência na Região de Informação de Voo de Curitiba, com base em dados de voo (AIREP) informados entre 2001 e 2005 para os FL290-410, realizado pelos funcionários do Cindacta II Cícero Barbosa dos Santos e William Augusto Rocha Krapp. As frequências de turbulência moderada e forte por estação do ano foram 26% no inverno, 25% na primavera, 20% no outono e 15% no verão. Por áreas selecionadas, as frequências de intensidades moderada e forte foram de 39% na Área 4 (litoral de SC, PR e SP), 16% na Área 2 (SP – novos corredores RVSM), 11% na Área 1 (MT e MS) e 3% na Área 5 (fronteiras RS). A maior ocorrência nessas áreas foi entre os FL330 e 370. A maioria da turbulência no mês de maio se deu na forma de CAT; os meses de maio a novembro apresentaram a maior incidência de turbulências nos níveis de voo analisados. Em caso de mudança do vento previsto de Noroeste para Sudoeste, antevê-se também turbulência forte. Predominou na região vento de SW entre 110 e 130 km/h (60 e 70 kt).

Referências
- Review of Aviation Accidents Involving Weather Turbulence in the United States. FAA – NADAC, ago/2004.
- Turbulence, A New Perspective For Pilots. Peter F. Lester, Jeppesen Sanderson, 1994.

Por Rubens J. Villela, especial para AERO Magazine
Publicado em 07/10/2013, às 00h00


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