Necessária para a navegação via satélite, a confiabilidade das informações fornecidas por sistemas como o GPS precisa ser conhecida pelo piloto
Na 10º Conferência de Navegação Aérea promovida em 1991 pela ICAO, as nações que dela participaram decidiram que a navegação aérea, a partir de então, passaria a se basear no uso intenso de satélites. À época, havia dois países com condições técnicas de oferecer seus sistemas para uso civil. Os Estados Unidos e a URSS (hoje Rússia) haviam desenvolvido constelações de satélites para uso militar, úteis para a navegação aérea e a guiagem de artefatos bélicos que atingiriam seus alvos com mais precisão. A intenção em se utilizar satélites, em vez de antenas de rádio navegação, era, e ainda é, permitir que as aeronaves civis possam voar suas rotas em trajetórias mais diretas, economizando tempo e combustível. Para quem oferecia os sinais de navegação, havia motivações econômicas e estratégicas. Econômica porque ao longo dos anos 1980, EUA e URSS haviam mergulhado numa profunda competição por superioridade espacial e suas economias entraram em recessão. Do lado soviético, o impacto social dos gastos militares levou ao questionamento do regime, culminando no esfacelamento da união de países que compunham a URSS. No ano em que a ICAO realizou sua conferência, havia problemas de sobra na URSS para que pudessem garantir a integridade de suas constelações de satélites de navegação. Coube aos EUA liderar o segmento de provimento de sinal de satélites para navegação aérea civil.
A garantia oferecida à ICAO era a disponibilidade do sinal em todo o mundo, de forma gratuita, com qualidade necessária para o voo IFR, por um tempo inicial de 10 anos. Esse compromisso também estabelecia uma antecedência de seis anos para que os EUA notificassem a ICAO de qualquer modificação nos termos do acordo, que alterasse substancialmente a qualidade do sinal. Ao longo dos anos 1990, a FAA passou a regular o uso do sinal GPS nos EUA e suas normas técnicas foram copiadas pelos demais países do mundo ICAO. Nessa mesma época, surgiram vários modelos de navegadores GPS para voos VFR e IFR. Com o passar do tempo, o sinal recebeu melhorias. Os satélites de primeira geração foram sendo substituídos por outros com novas tecnologias que elevaram a potência de transmissão. Para quem voou nos anos 1990, era comum ouvir histórias de perda de sinal do GPS na linha do equador, especialmente pelos que transladavam aeronaves dos EUA para o Brasil. Em 2000, o DOD (Departamento de Defesa dos EUA), responsável pela gestão do sistema, descontinuou o “Selective Avalilability” , um erro induzido nos relógios dos satélites, que negava aos aviões civis a melhor precisão que as forças armadas norte-americanas obtinham. Nos anos seguintes, a FAA e o DOD seguiram desenvolvendo sistemas e aprimorando a navegação GPS, sempre com foco no espaço aéreo norte-americano. A qualidade do sinal sobre outras áreas do mundo, no entanto, permanece básica como era nos anos 1990. Assim, quando discutimos as características do sinal de GPS, precisamos discernir entre o que há nos EUA e fora dele.
Na multilateração, sinais carregam códigos com origem e horário em que foram emitidos. Receptores decodificam dados e medem o tempo da viagem. Tempo relacionado com velocidade da luz dá a distância. Eventual falta de sincronismo entre relógios do satélite e do receptor podem gerar imprecisão
Nos últimos anos, outros países lançaram projetos de desenvolvimento de suas próprias constelações de navegação. A Rússia reativou o sistema GLONASS, abandonado desde o esfacelamento da antiga União Soviética. Em 2011, o governo russo anunciou a disponibilidade do sinal dos 27 satélites GLONASS para todo o mundo (https://glonass-iac.ru/en/). A Apple passou a incluir um sensor de GLONASS em seus produtos iPad e iPhone a partir de então. Algumas empresas russas e europeias começaram a produzir navegadores para uso terrestre, mas, em sua maioria, equipamentos híbridos combinados com receptores de GPS.
A China desenvolve hoje o seu sistema Beidou (http://en.beidou.gov.cn/), uma infraestrutura de solo e de espaço que copia a lógica do GPS norte-americano. Em 2010, o sistema cobria a China e todo o continente asiático. Pretende cobertura global em 2020. Por último, a Europa também vem desenvolvendo o seu sistema Galileo. Pretende uma constelação de 30 satélites em 2020, com cobertura global e compatibilidade plena com o sistema GPS. Portanto, a ICAO espera poder contar com uma centena de satélites de navegação num sistema que batizou de GNSS (Global Navigation Satellite System).
Vivemos um período de profusão de tecnologias de navegação por satélites. O Brasil participa ativamente dos trabalhos da ICAO nos temas que se referem ao uso do sinal do GNSS na navegação PBN (Performance Based Navigation). No entanto, a opção política de abandono do projeto espacial nos impossibilitou de participar como agentes de desenvolvimento do provimento do sinal. Por ironia, somos um dos países que mais consome aeronaves preparadas para a navegação GNSS. Quase todo dia, uma delas chega dos EUA ou é fabricada por aqui, utilizando equipamentos importados. Seus manuais orientam como operar tais equipamentos no sistema de circulação aérea dos EUA. E a Anac aprova tais manuais sem exigir que esclareçam os protocolos de operação da navegação GNSS no Brasil. Quem se encarrega disso são as normas do Decea. Mas, para a maioria dos pilotos da aviação geral, a compreensão dos sistemas é dificultada pela escassez de literatura em português e pela complexidade natural dos assuntos. Um dos mais importantes temas que deveriam ser de domínio desses pilotos é exatamente a qualidade do sinal do GNSS, necessária para a navegação IFR.
A despeito do sistema GPS ser o mais antigo e confiável de todo o GNSS, sua literatura técnica aponta quatro características necessárias à navegação. A “precisão” é a primeira delas. Para cada situação de voo, o piloto deve conhecer os parâmetros de precisão do sinal.
Afinal, se resolver realizar uma aproximação RNAV por GNSS, não poderá prosseguir se o erro de posição estiver acima de 0,3 milha náutica.
A “continuidade” é outra característica. Alguém que viaje de Manaus a São Paulo, por exemplo, vai precisar do sinal de forma contínua ao longo da viagem. Isso depende da distribuição de satélites e suas órbitas pelo planeta. Talvez ela seja menor nas áreas remotas do Oceânico Índico ou do Pacífico, como no trajeto do Chile à Austrália, onde poucos voos acontecem. Mas deve ser mais densa em locais onde se voa mais.
O quesito “disponibilidade” vem a seguir, e interessa mais aos aeroportos. Num período de 24 horas, o sistema GPS garante que estará com seu sinal do ar por pelo menos 95% do tempo. E o que o piloto deve fazer se for agraciado com os 5% faltantes? E qual administrador de aeroporto iria desejar perder o sinal do GNSS a cada período de tempo? “Continuidade” e “disponibilidade” devem ser conhecidas pelo piloto antes de iniciar a viagem. No site do FAA há um link para o site http://www.raimprediction.net/ que permite ao piloto que voa nos EUA saber com antecipação se haverá cobertura suficiente de satélites para o seu voo IFR.
Por último, vem a mais importante característica do sinal GPS, que é a “integridade”. Dela podem depender as demais. O conceito de integridade se refere à preservação das propriedades do sinal que chega ao receptor, em relação ao momento que foi emitido pelos satélites. Ela não varia em nenhuma escala de mais ou de menos. Ou há Integridade ou não há. O parâmetro de integridade é exigido pelas autoridades aeronáuticas para que o piloto prossiga na aproximação RNAV GNSS. Sem ela, o aviador deve executar a aproximação perdida. Para monitorar esses quatro parâmetros, o piloto deve conhecer profundamente a aviônica que utiliza. Nos modernos painéis glass cockpit há paginas que fornecem informações úteis, como as do EPU, ou “Estimated Position Uncertantain”, que é utilizado na linha Garmin e se refere a um anel de indefinição de real posição da aeronave. Dentro dele, ela poderá estar em qualquer lugar. É como dizer que alguém esta em “casa “, mas onde exatamente dentro de casa? No Brasil, esse anel tem valores mínimos em torno de 0,05 mn de raio. Ou seja, na melhor das hipóteses, a aeronave estará a 92 m de distância da coordenada apresentada. Se estiver em rota, esse erro não significa problema, mas o valor pode inviabilizar uma aproximação de precisão. Nos EUA, o mesmo valor pode chegar a mínimos 0,01 mn, devido ao fato de que por lá o sinal é corrigido por um sistema chamado WAAS.
Saindo do vácuo, os sinais do GPS mudam de direção ao encontrar as camadas da ionosfera e isso gera perda de precisão. Os aparelhos fabricados nos EUA são calibrados para as características da ionosfera de lá, bem diferente das daqui
LOI: Perda de Integridade. É possível navegar por GPS apenas em trechos de rota. Proibido efetuar STAR, SID e aproximações RNAV GNSS.
INTEG OK: A Integridade voltou a seu nível normal.
DR: Perda de sinal. Necessidade de utilizar outro meio de navegação
Outro parâmetro interessante é a de geometria das órbitas dos satélites. Se os satélites estiverem descrevendo órbitas espaçadas entre si, a geometria é boa e isso beneficia a precisão. Ao contrário disso, o valor de DOP (Deluction of Precision) é alto e a precisão cai. Se a aviônica que utiliza o sinal do GNSS for certificada para voo por instrumentos, deverá prover avisos de falta de integridade para o piloto. Na linha Garmin G1000, por exemplo, esse aviso se dá no CDI, por meio de uma mensagem LOI (Loss of Integrity). Durante a permanência da mensagem, o piloto não pode utilizar o sinal do GNSS para os procedimentos SID, STAR e RNAV GNSS. Portanto, precisará considerar a necessidade de ter a bordo outros meios de navegação como VOR, ILS ou o agonizante ADF. Isso porque os NDB não são mais considerados pela ICAO como meio de navegação PBN. Portanto, serão desativados em todo o mundo. Ainda na suíte G1000, a perda de intensidade do sinal do GPS faz disparar um alarme de DR (Dead Recogning) sobre o mesmo CDI. Por tudo isso, é importante que o piloto esteja familiarizado com os detalhes de sua aviônica. Esse conhecimento poderá significar a garantia de um voo seguro.
Por Jorge Filipe Almeida Barros
Publicado em 13/12/2014, às 00h00
+lidas