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A atmosfera sobre o mar

Fenômenos marinhos típicos da costa brasileira afetam operações offshore



A operação offshore se torna ainda mais delicada com condições adversas

O início da exploração dos poços petrolíferos na camada do pré-sal das bacias de Campos e de Santos está trazendo uma grande ampliação dos movimentos aéreos nas zonas costeira e oceânica da porção sudeste brasileira, sobretudo de helicópteros, que são essenciais para o apoio logístico das operações offshore, transportando tanto pessoal como carga, de bases terrestres como Macaé e Jacarepaguá até plataformas a distâncias médias de 200 milhas náuticas (370 km), situadas em alto-mar. Esses voos sobre a água ocorrem em condições consideradas adversas, exigindo precauções em relação à navegação, além da presença de equipamentos de sobrevivência a bordo, para o caso de pouso forçado. Entre as adversidades estão condições meteorológicas típicas dos oceanos, talvez melhor conhecidas pelos marinheiros, que as enfrentam desde tempos imemoriais: massas frias vindas dos polos, ventos e rajadas fortes, tempestades ciclônicas, nevoeiros, assim como os fenômenos próprios do mar, as ondas e as correntes. Naturalmente, as condições do mar estão estreitamente ligadas às condições atmosféricas e, na prática profissional de meteorologista, aprendemos a entender e a conviver com ambos os reinos, dos céus e das águas.

Lições meteorológicas de um naufrágio

Como exemplo de situação adversa no mar e que encerra lições para eventuais operações aéreas na região de voo do pré-sal, apresentamos um estudo do naufrágio do barco turístico Tona Gálea na área de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, cerca de meio-dia do sábado, dia 19 de abril de 2003, causando 12 mortes. As condições meteorológicas no horário do sinistro podem ser aferidas pelas observações horárias (METAR) da base da Marinha em São Pedro da Aldeia – tais condições fizeram o barco virar. Desde as primeiras horas da manhã, o vento já era forte. Às 12 horas (15 horas UTC), o vento soprava de 040 graus (Nordeste) com 22 nós (cerca de 40 km/h), temperatura do ar 31 graus, ponto de orvalho 24, pressão 1.015 hectopascal. No mar, a velocidade do vento devia ser ainda maior. Uma frente fria atingia o litoral do estado de São Paulo, tendo o aeroporto de Congonhas registrado rajadas de 25 nós, de sul, durante a tarde.

Para o litoral do Rio de Janeiro, portanto, tratava-se de uma situação pré-frontal, quando os ventos típicos de nordeste em Cabo Frio, previsivelmente, sofrem uma aceleração, precedendo a chegada da frente fria. Mesmo sem consultar as previsões meteorológicas (o que é sempre recomendável), muitos marinheiros saberiam reconhecer, pelos indícios locais – reforço do vento NE e seu giro progressivo a partir de E para NE e N, queda do barômetro, nuvens cirros pelo setor oeste e assim por diante – os sinais da alteração do tempo e a situação de alto risco para embarcações do tipo do Tona Gálea. Na noite do mesmo dia, por volta das 19 horas, naufragou o Mestre Gervásio, junto a Ilha Grande, sem vítimas.

Dois acidentes de helicóptero reveladores, a rota mais adequada para SP

Os acidentes dos helicópteros Esquilo PT-HMK, em 12 de outubro de 1992 na Ponta da Joatinga (RJ), e Agusta PP-MPA, em 27 de julho de 2001 em Maresias (SP), encerram também lições instrutivas sobre as características dos sistemas meteorológicos que afetam a costa sudeste do país. O primeiro causou a morte do deputado Ulisses Guimarães, do ex-ministro Severo Gomes, de suas esposas e do piloto Jorge Comeratto (veja análise meteorológica em AERO 24, de maio de 1996). O segundo, operado pelo Grupo Pão de Açúcar, vitimou o piloto Ronaldo Jorge Ribeiro e a passageira Fernanda Vogel, salvando-se o copiloto e outro passageiro (AERO 98, de julho de 2002). Ambos os acidentes estiveram associados à ação de frentes frias: no caso do MPA, a uma versão simples e previsível de frente e, no caso do HMK, a uma frente que já havia passado, mas transformou-se num sistema complexo de mesoescala, de mais difícil interpretação.


Voos sobre o mar exigem uma série de equipamentos de sobrevivência

As cartas sinóticas de superfície do dia 12 de outubro de 1992 mostravam uma frente estacionária no leste do Rio de Janeiro, sul de Minas Gerais e leste de São Paulo, que acabou por instabilizar grande área no interior do continente, gerando trovoadas e convergências de ventos. Às 14 horas (1700Z), os METAR informavam chuvas e trovoadas na área de São Paulo, reduzindo a visibilidade a 500 metros, e o teto a 300 pés, em Congonhas. São José dos Campos, trovoada às 16 horas, com visibilidade de 3.000 m e teto de 300 m (1.000 pés); e Santos, chuva com visibilidade de 4.000 a 8.000 m às 14, 15 e 16 horas. A decolagem do HMK de Angra dos Reis foi feita às 15h40 e o acidente ocorreu junto a ponta da Joatinga, após cerca de 15 minutos de voo. A evolução das condições pode ser mais bem acompanhada pelos dados do radar de Ponte Nova, operado pela Universidade de São Paulo (USP) e pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE). As imagens digitalizadas mostraram que o acidente coincidiu com a passagem pela área de dois sistemas de mau tempo que se juntaram, acompanhados de precipitações fortes com índices de até 120 mm por hora. O primeiro sistema, de menor intensidade, deslocou-se de noroeste enquanto o segundo deslocou-se de sudoeste na forma de uma linha de instabilidade orientada no sentido NW-SE, estendendo-se do oceano até o interior paulista. Obviamente, a falta de informações meteorológicas em Angra contribuiu para o acidente, impossibilitando ao piloto avaliar corretamente as condições do tempo, tomar a decisão de voo e selecionar a rota mais adequada, se pelo litoral ou pelo interior.

A queda no mar do Agusta MPA, em frente à praia de Maresias, no litoral norte paulista, deu-se às 18h30 de 27 de julho de 2001. A carta sinótica das 9h (1200Z) mostrava uma forte frente fria que já havia passado Santos naquele horário, deslocando-se para nordeste. Associava-se, no oceano, a um ciclone em intensificação a sudeste da costa de Santa Catarina e, no interior do continente, a um centro de alta pressão de 1.036 hPa – um valor muito elevado, indicativo de forte invasão polar que repercutiu no dia no mercado de café, em razão de ameaça de geada. Os dados obtidos das estações meteorológicas da praticagem de São Sebastião e do Yacht Club de Ilhabela mostravam que a frente já havia entrado naquela área por volta das 10 horas e que as más condições do tempo resultantes se estendiam ao horário do acidente, com tetos baixos, má visibilidade, chuviscos e chuvas, ventos de rajada e mar agitado. Em entrevista coletiva, o copiloto (e sobrevivente) reconheceu a existência da frente fria, mas declarou que “só consultamos o tempo quando vemos que as condições não estão boas; como elas eram boas, a gente não achou necessário fazer isso” – declaração que  parece demonstrar um deficiente procedimento de avaliação da situação meteorológica para o voo. Essa avaliação não deve ser pontual, mas abranger uma área grande o suficiente para mostrar os fenômenos atmosféricos que possam influir na rota de voo. Atitude desse tipo foi também a que levou aos trágicos acidentes de balões em outubro de 2010, em Boituva, iludidos pelo bom tempo na hora da decolagem.

Neste rol dos acidentes no mar devem também ser incluídos desastres em terra na faixa litorânea, como indicativos dos riscos meteorológicos afetando os voos no segmento offshore. Entre eles, o acidente com LET-410 da Team, em 31 de março de 2006, que chocou-se com a Serra de Rio Bonito (RJ) em voo Macaé-Rio de Janeiro, vitimando 17 passageiros e dois tripulantes. O morro estava encoberto por camada de nuvens, como podia avistar do posto em Rio das Ostras, onde estava de serviço naquele dia, fazendo a previsão do tempo e do estado do mar para as obras do emissário submarino. Acidentes semelhantes, de colisão em voo com morros obscurecidos por nevoeiro ou névoa úmida, têm ocorrido com certa frequência na Serra do Mar no estado de São Paulo.

Mais um incidente emblemático dos problemas de operações offshore aconteceu em abril de 2009. Nessa data, estava programada a presença do presidente Lula e Dilma Rousseff, com transmissão pela TV, da primeira extração de petróleo do pré-sal no campo de Tupi. Duas missões precursoras que foram testar as condições para a operação fracassaram. O helicóptero Esquilo, que levaria as autoridades do navio da Marinha à plataforma, não conseguiu pousar. Face à previsão da meteorologia de ondas de até 4 metros, a visita presidencial foi cancelada, por razões de segurança.

Ventos, frentes, ciclones, ondas e correntes

Os principais fenômenos que caracterizam a meteorologia marinha da costa brasileira, mais especificamente entre o Chuí e Abrolhos, interessando, portanto, às operações dos aeródromos entre Pelotas, ou Rio Grande, e Porto Seguro, ou Trancoso, são ventos, frentes, ciclones, ondas e correntes.

O vento prevalecente nessa costa é o de nordeste (NE), determinado pela “Alta subtropical” do Atlântico Sul (zona de alta pressão semipermanente). Entretanto, na faixa litorânea, esse vento é modulado por uma oscilação interdiurna, isto é, uma alternância entre brisa do mar durante o dia e brisa de terra (terral) durante a noite, cuja causa é o aquecimento diferencial entre água e solo. A presença de serras costeiras reforça essas brisas. Na região de Cabo Frio, fatores atmosféricos, topográficos e oceanográficos, conjugados, reforçam o vento NE, que, por sua vez, cria a ressurgência – afloramento de águas frias do fundo para a superfície. A água arrastada pelo vento NE é desviada para o sul pelo efeito Coriolis (rotação da Terra) e, para substituí-la, há um movimento ascendente de água vinda de 300 ou 400 m de profundidade a uma temperatura tipicamente de 14ºC. Quando o vento costeiro sopra mais de Leste (E), a chamada “lestada”, essa água pode chegar às praias cariocas com 19ºC, como aconteceu em janeiro de 2006, ao mesmo tempo em que se registrava no Rio uma temperatura máxima do ar de 39,5ºC.

No rol dos acidentes no mar devem ser incluídos os desastres em terra na faixa litorânea

Outra influência que modifica o vento prevalecente são as frentes frias que, periodicamente, varrem a costa atlântica sul-americana, deslocando-se de sudoeste para nordeste. A passagem de frentes geralmente faz os ventos girarem sucessivamente, para NW (pré-frontal), SW e SE (pós-frontal). Em geral, o Sudoeste (SW) é o mais rijo, dependendo da formação e da proximidade do ciclone extratropical associado à frente fria, e geralmente localizado ao largo da costa. Deve-se notar que os ventos pouco mais ao largo da costa são muito mais fortes do que os observados em terra. Na experiência que tive na Barra da Tijuca, era comum, por exemplo, vento de 5 nós no aeroporto de Jacarepaguá, 15 nós no escritório em frente à praia e 30 nós no píer de 300 m de comprimento e mesmo alinhamento da pista de Jacarepaguá. E, pouco além, 40 nós, a julgar pelas manobras dos kitesurfistas na praia! Por isso sempre utilizamos, com grande proveito no nosso trabalho para as obras costeiras ou para a navegação, os dados de vento dos faróis da Marinha (interceptados por radiotelegrafia), muito mais representativos das verdadeiras condições no mar.

Mar em fúria

Registro de ondas feito por ondógrafo colocado a 3 milhas da Praia Grande, mostrando
pico de 5,0 metros em novembro de 1994

A localização e a intensidade dos ciclones são melhor visualizadas pelas imagens de satélite

A localização e intensidade dos ciclones extratropicais associados às frentes frias podem ser mais bem avaliadas pelas imagens de satélite, apresentando a característica estrutura em espirais, enroladas em torno do centro (onde está o mínimo da pressão atmosférica). A região ao largo de Cabo Frio está sujeita ocasionalmente à formação de ciclones extratropicais, que agravam consideravelmente os efeitos adversos das frentes frias a eles associadas. Em março de 2004, um desses ciclones extratropicais transformou-se no furacão (ciclone tropical) Catarina, que, ao produzir um interminável vento SW, levantou ondas que prejudicaram o nosso trabalho na obra do emissário da Barra da Tijuca. Os grandes ciclones extratropicais presentes ao largo da costa patagônica da Argentina são, em geral, responsáveis pela geração das grandes ondas que alcançam o litoral sudeste brasileiro, criando ressacas.

Para o observador local no litoral sudeste brasileiro, a falha da brisa marinha durante o dia pode ser o primeiro sinal da aproximação de uma frente fria. A zona de baixa pressão da frente “atrai” o vento de norte, contrariando a brisa que viria do setor sul. Ao mesmo tempo, há uma elevação acentuada da temperatura (máximas da ordem de 35º) e uma queda dos índices do barômetro. A leitura do barômetro deve levar em conta a “maré barométrica”, muito acentuada no Brasil. A pressão passa por um máximo entre 9 e 10 horas da manhã, que é o melhor período para se observar o barômetro a cada 24 horas, para se estabelecer a tendência do tempo, grandemente controlada pelo deslocamento das frentes frias. Ultimamente, as variações do barômetro na área de São Paulo e Rio de Janeiro têm se acentuado, como provável reflexo da mudança climática. Temos observado frequentes mudanças de 5 hPa em 24 horas em São Paulo, lembrando a Antártica (lá os Esquilos da Marinha paravam de voar quando a pressão caia mais de 2 hPa em uma hora).

Quedas abruptas de pressão podem servir de aviso de mudanças bruscas, causadas por fenômenos de menor escala e duração, como as linhas de instabilidade, acompanhadas de rajadas de ventos de NW ou SW e trovoadas. Tempestades desse tipo podem surgir tão abruptamente, e sem apresentar sinal prévio, a ponto de desafiarem explicações técnicas. Foi o que aconteceu conosco na obra do emissário submarino da Praia Grande (SP) às 20h45 de 21 de abril de 1994, danificando o canteiro de obras da CBPO Engenharia. Os ventos intensos, do setor oeste, surgiram “do nada”, duraram 30 minutos e chegaram a 50 nós, enquanto a chuva se prolongou por duas horas. Um fenômeno anômalo na bacia de Campos, que tem rendido espetaculares fotos, é a passagem de “nuvens rolo”, semelhantes às famosas “Morning Glory”, do Golfo de Carpentharia, na Austrália (AERO 66, de 1999), exploradas pelos pilotos de planador. Elas produzem turbulência a baixa altura.

Finalmente, em cruzeiros oceanográficos observamos fileiras de nuvens, similares a grandes cúmulos (TCU), alinhadas com o talude (onde a plataforma continental afunda abruptamente no oceano), produzidas pelo contraste das águas quentes da corrente do Brasil, correndo paralelamente à costa do Rio, 100 milhas ao largo. Portanto, verdadeiras “nuvens orográficas”, só que refletindo sobre a superfície o relevo submerso do mar.

A experiência marítima do meteorologista Rubens Junqueira Villela foi adquirida em cruzeiros nas águas brasileiras e na Antártida, em apoio a obras de emissários submarinos em Praia Grande, Barra da Tijuca, Rio das Ostras e Salvador, na consultoria para testes de estabilidade de plataformas da Petrobras e em uma navegação no veleiro Rapa Nui como parte de projeto de Amyr Klink.

Por Rubens J. Villela, especial para AERO MAGAZINE
Publicado em 29/01/2014, às 00h00 - Atualizado em 11/11/2014, às 11h34


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