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Voamos no Ford Trimotor, um avião de quase 100 anos

Nossa equipe embarcou em um voo panorâmico no 5-AT Trimotor, um avião da Ford Motor Company que tem quase 100 anos


O 5-AT foi a versão alongada e de maior capacidade da série de trimotores da Ford - EAA/Jason Toney
O 5-AT foi a versão alongada e de maior capacidade da série de trimotores da Ford - EAA/Jason Toney

Voamos no Ford 5-AT Trimotor, um avião de transporte de passageiros que dez seu primeiro voo em 1929, por tanto, há quase 100 anos. Um dos aviões mais importantes de seu tempo e que notabilizou a Ford no setor aéreo.

Para além de automóveis e caminhões, incluindo lendários superesportivos e robustas picapes, a Ford Motor Company se notabilizou também por sua atuação na aviação, tendo liderado o segmento de aeronaves comerciais por alguns anos e fornecido componentes para empresas como Consolidated Aircraft e Douglas Aircraft. No segmento militar, saíram de sua unidade industrial de Willow Run, nos arredores de Detroit, mais da metade dos 18.188 bombardeiros B-24 Liberator produzidos.

Durante o AirVenture, os Ford Trimotor ajudam a contar essa história com exibições em todos os encontros há muito tempo. Na edição deste ano, nossa equipe foi convidada pela Experimental Aircraft Association (EAA) para voar na máquina.

Além de poder reviver a experiência de embarcar em um avião de quase 100 anos, pudemos conhecer de perto a curta, mas incrível, saga da Ford na aviação.

Visionário 

No início dos anos 1920, quando a aviação mal tinha entrado na adolescência, o visionário Henry Ford e outros dezenove sócios aceitaram a oferta enviada por carta por William Bushnell Stout, fundador da Stout Metal Airplane, que desejava revolucionar a indústria aeronáutica passando a construir aeronaves inteiramente metálicas no lugar de modelos de madeira e tela.

Consta que o pedido de financiamento incluía sincera declaração que “pelos seus mil dólares, você receberá uma promessa definitiva: nunca receberá seu dinheiro de volta”. Vale ressaltar que mil dólares em 1920 era uma quantidade elevada de dinheiro. Ao todo, Stout conseguiu levantar 128.000 dólares, sendo dois mil de Henry e Edsel Ford. 

Embora seus primeiros projetos não tenham sido bem-sucedidos, pelas dificuldades técnicas e financeiras, após obter o financiamento, foi lançado o Stout 2-AT Pullman, o primeiro avião inteiramente metálico produzido nos Estados Unidos. O grande destaque da construção era o uso de chapas de alumínio corrugadas, com revestimento Alclad.

Vale aqui uma explicação da genialidade do projeto. Criado pela Alcoa, o revestimento Alclad, emprega alumínio de alta resistência e pureza (99,99%), oferece grande resistência a corrosão e tem ponto de fusão de aproximadamente 500 graus Celsius. O ponto negativo é que se trata de um tipo de alumínio ao menos 10% mais pesado do que tradicional.  

Ao optar por chapas corrugadas era possível usar placas mais finas, que manteria a resistência mecânica, mas ganhando ao menos 10% do peso. Simplesmente era possível unir as virtudes do Alclad com um peso menor. O projeto previa um monomotor de asa alta, inteiramente metálico, com capacidade para nove passageiros e um piloto. Com 13,92 metros de comprimento e envergadura de 17,78 metros, o avião já dava pistas de como poderia ser o futuro do transporte aéreo regular, algo ainda em fase embrionária em 1924. 

Equipado com um motor Liberty V12 e 400 cavalos de potência, o modelo tinha boas características de voo para aqueles tempos, com velocidade máxima de 100 nós, cruzeiro de 87 nós e autonomia de quatro hoas, voando até 12.000 pés. O projeto original previa um cockpit aberto, comum na época, para dois pilotos, mas foi revisto e se tornou fechado. 

Mesmo com uma fuselagem bastante estreita, o 2-AT Pullman tinha assentos acolchoados, janelas semicirculares que podiam ser abertas, amenizando o calor a bordo, e ainda um pequeno lavatório. Um verdadeiro carro Pullman, em referência aos luxuosos carros ferroviários de transporte de passageiros de longas distancias.

Apenas onze aviões chegaram a ser produzidos, mas o projeto se mostrou realmente inovador, dando margem para um reprojeto que possibilitou a instalação de três motores radiais. Enquanto o projeto básico era refeito, a Ford assumiu o controle da empresa, que manteve seu nome, ganhando apenas o “sobrenome” Division of Ford Motor Company.

Uso de metal 

Cockpit do Ford Trimotor
Cockpit do Ford Trimotor é bastante simples e com ergonomia nada agradável

O uso de metal não era inédito quanto o Ford Trimotor foi construído, contudo os processos adotados pela Stout eram superior aos dos rivais, em especial os alemães. Embora não tenha qualquer semelhança com os rivais, como os Junkers, a Ford não conseguiu exportar o avião por um processo movido pela rival alemã, que alegava plágio no design básico. Na verdade, os argumentos eram mais profundos, mas, no fim, não passavam de disputas empresariais.  

Os projetistas usaram o conceito de asa alta, com a fuselagem retangular, que oferecia melhor espaço e maior facilidade de construção, com as placas soldadas, o que resolvia parte do problema de peso e ainda oferecia facilidade de manutenção. Acessos internos dão acesso ao cone de cauda e à raiz das asas, onde estão instalados os tanques de combustível.

Embora o alumínio corrugado fosse aerodinamicamente ruim, seu menor peso estrutural compensava o uso. O primeiro Ford 4-AT usava motores Wright J-4 com 200 cavalos de potência cada, dando início à campanha de ensaios em voo.  

O cockpit contava com instrumentação completa, que, na época, resumia-se a velocímetro, turn bank, altímetro, relógio e bússola. O manômetro de óleo, temperatura do óleo, tacômetro do motor central estão no cockpit, os dos motores esquerdo e direito estão respectivamente no braço, nas asas.

O curioso é que os compensadores estão montados acima da porta, atrás dos pilotos, que acessam as manivelas montadas aproximadamente na altura dos ombros. Um piloto experiente acessa os controles sem olhar, mas não parece muito ergonômico. 

Os manetas de potência estão na parte superior do pedestal central. Ao centro ficam os magnetos e, na base, a mistura. Ergonomia dos anos 1920 era basicamente onde era mais fácil para instalar. O manche, em forma de volante, está montado em uma estrutura metálica única, onde ambos os lados se conectam à base. Os cabos de aço dos controles passam pela parte externa do avião, saindo pela lateral, abaixo da janela dos pilotos, onde estão os controles de leme e profundor.

Os do aileron passam por dentro das asas, podendo ser facilmente acessados por um alçapão na cabine de passageiros, onde também estão os tanques. A ideia geral era reduzir peso, simplificar a manutenção e tornar o avião apto a operar com pouca ou nenhuma estrutura de solo.

A família

Ford Trimotor 4-AT
O Trimotor 4-AT é ligeiramente menor que o 5-AT, com capacidade para doze passageiros - Foto: AERO Magazine/Taylor P.

Basicamente, foram criadas três variantes do Trimotor. O 3-AT, que se resumiu ao protótipo, tinha três motores Wright J-4 Whirlwind de 200 cavalos de potência cada. A Série 4-AT agregou algumas melhorias.

O 4-AT-A tinha cockpit fechado com janelas retangulares, o 4-AT-B recebeu novos motores Wright J-5 de 220 cavalos de potência cada e teve a capacidade elevada para doze passageiros, o 4-AT-C foi equipado com motores Pratt & Whitney R-1340 Wasp de 400 cavalos de potêwncia (apenas um produzido), 4-AT-D ganhou asas um pouco mais longas, com 23,77 metros (apenas um produzido), 4-AT-E recebeu motores Wright J-6-9 de 300 cavalos de potência e amplas janelas retangulares (é a versão usada pela EAA) e 4-AT-F, com uma única unidade produzida, era uma versão com piso reforçado para carga do 4-AT-E. 

Por fim, a série 5-AT era uma versão alongada com 23,75 metros totais, com seis janelas de cada lado e capacidade para até treze passageiros. O modelo era equipado com os motores R-1340 de 420 cavalos de potência cada.

O 5-AT-B podia levar até quinze passageiros e tinha opção dos motores Wasp C-1 e SC-1 (é justamente esse o avião que vamos voar). Já o 5-AT-C tinha capotas no motor e polaina nas rodas enquanto o 5-AT-D contava com asas 20 centímetros mais alta, uma cabine ligeiramente maior e melhoria no peso máximo de decolagem, além de ser equipado com os motores Wasp SC de 450 cavalos de potência.

Existiram outras versões, mas a maioria de teste ou que não passavam de mudanças pontuais em aviões em serviço. O mais curioso foi o 11-AT com motores radiais Packard DR-980, que podiam ser abastecidos com diesel. 

Existem hoje alguns Ford Trimotor em serviço de voos panorâmicos, sendo que em Oshkosh estão um 4-AT-E, pertencente à EAA, e um 5-AT-B do Liberty Aviation Museum. A EAA formou um acordo de arrendamento com o museu e passou a oferecer voos panorâmicos com ambos os aviões.

Para entusiastas, é uma oportunidade de voar nos dois modelos do Ford Trimotor. Meu primeiro voo em um Ford Trimotor ocorreu há vários anos, em Lakeland, na Flórdia, durante o Sun ‘n Fun, e foi no 4-AT do EAA, que foi o 146° avião produzido, sendo o 76° 4-AT-E que fez seu primeiro voo em 21 de agosto de 1929.

Avião quase centenário 

Este ano, o convite do EAA previa o voo no Trimotor, mas confesso que passei vários dias torcendo para ser no 5-AT-B. Ainda que pudesse solicitar uma eventual troca, não queria ser deselegante nem arriscar a agenda do voo. Havia predefinido o EAA que voaríamos no primeiro horário, às sete horas da manhã. Isso pressupunha que deveríamos chegar ao aeroporto antes das 06h30, para caminhar entre o portão principal até a área dos Warbirds, o que normalmente leva entre 10 e 15 minutos.  

Avisei a minha companheira de aventuras, a jovem Taylor P., que nos brinda há três anos com seu entusiasmo que deveríamos literalmente madrugar para chegar no horário. Sua resposta foi bastante inspiradora “amo dormir, mas se tem algo que amo mais é voar. Estarei lá às 6h30”.

Minha jovem amiga estava a caráter, com uma camiseta da Rosie the Riveter e seu “We Can Do It!” usando uma bandana, ao melhor estilo década de 1940. Embora quase dez anos após o auge do Ford Trimotor, sua versão vintage nos deu sorte e voaríamos no 5-AT-B, que ostenta o número de série 8, tendo realizado seu primeiro voo em 1º de dezembro de 1928, portanto, há quase 95 anos.

Você conhece quantas pessoas com essa idade? Sim, o NC9645, batizado City of Port Clinton, é um avião quase centenário e em plena forma. 

Ostentando uma fuselagem em alumínio polido, com o enorme logo da Transcontinental Air Transport (TAT), sua primeira operadora, o nosso avião já estava no “pátio”, ou melhor, na grama, exatamente como há nove décadas.

Nosso bilhete constava os assentos e fomos levados a uma área coberta onde seria feito um breve briefing do voo, com as instruções básicas de segurança, como os cintos de segurança devem ser afivelados durante todo o voo, entre outros.

Por ser um voo panorâmico, teríamos pouco tempo entre o embarque e o desembarque, ficando combinado que poderia retornar no final do dia para conhecer mais do avião. Entrar em um avião construído um ano após o nascimento da minha avó paterna me fez pensar no quanto a aviação evoluiu em um século, e mais, o quanto evoluiu em menos de 20 anos desde os voos pioneiros de Santos Dumont, irmãos Wright, entre outros.

A bordo 

Interior Ford Trimotor
Interior do Ford Trimotor era inspirado no luxo dos carros dos trens de passageiros dos anos 1930

O interior do Trimotor relativamente confortável, ao menos para um voo curto, de até duas horas de duração, e as amplas janelas permitem apreciar a vista sem restrições. É curioso notar o acabamento luxuoso, em madeira, com luminárias e cortinas de tecido, como nos grandes carros Pullman da época.

Um olhar mais atento percebe que grande parte do acabamento é novo, mas fiel ao original. Os norte-americanos tem um processo de restauração que, para os puristas, é absurdo, pois sem medo jogam o original fora e substituem por um novinho em folha.  

A justificativa é prática e mostra o grau de organização existente, já que o item novo é construído seguindo estritamente o manual original, mesmo que ele tenha 100 anos. Assim, o restaurador não necessita ficar preso a um item que exigirá um amplo esforço para ser recuperado e muitas vezes impedirá seu uso.

Basta construir um componente exatamente igual, se possível com o mesmo material (algumas vezes legalmente não é possível) e avião, carro, barco, seja o que for, permanece idêntico a quando saiu da fábrica. É isso que mantém tantos aviões clássicos em voo nos Estados Unidos, simplesmente existem peças originais, feitas por especialistas em restauro. 

Evidentemente, um avião como o Trimotor tem alguns componentes atualizados, como os instrumentos de cabine. O que ocorre por razões de certificação, afinal, não é possível voar com equipamentos da década de 1920. Da mesma forma, alguns componentes do motor foram refeitos com novos materiais e técnicas, para garantir a segurança dentro das normas atuais. 

O acionamento é relativamente rápido e logo estamos taxiando e cortando caminho pelo gramado. Ao cruzar uma grande poça, formada pela chuva da madrugada, todos a bordo vibraram com a condição off-road e aventura de voar um avião criado em tempos que pistas de concreto nem sequer existiam.

É interessante notar que a fuselagem basicamente não recebe as vibrações do trem de pouso nem do motor. Os amortecedores montados no braço de suporte do motor e trem de pouso são formados por uma série de discos de borracha, reforçados com cabos, que absorvem quase todas as vibrações e movimentos. Uma solução simples, mas muito funcional.

O voo 

Voo Ford Trimotor
Voar no Ford Trimotor em Oshkosh é uma experiência incrível e que vale cada segundo - Foto: AERO Magazine/Taylor P.

Nossa decolagem ocorre pela cabeceira 18. Ingressamos na pista passando por cima da grama e já sobre a marca dos 1.000, onde os três motores roncam forte, e logo decolamos em um voo suave, observando literalmente centenas de aviões estacionados no aeroporto Wittman.

A visão aérea do aeroporto é algo indescritível, mesmo que você tenha feito dez voos no AirVenture possivelmente não saberá descrever a sensação de ver centenas de aviões estacionados, em um clima de confraternização único.

Logo curvamos para a esquerda e passamos a sobrevoar o lago Winnebago, na proa do Seaplane Base, o lar dos hidroaviões e anfíbios. A vista do lado, das belas casas na sua margem, que se misturam com enormes áreas verdes e grandes áreas de cultivo, tornam a experiencia incrível. O ronco dos motores não é extremamente alto, mas similar ao de um Cessna ou Cirrus, assim é necessário falar mais alto para o colega ao lado escutar. Claro, se o seu companheiro de viagem não for uma menina que está com os olhos brilhando e claramente mais interessada em curtir o voo do que qualquer tipo de conversa. Apenas umas duas ou três fotos para registrar o momento, nada além.  

Por ser um voo panorâmico, o tempo total é de aproximadamente dez minutos, mas que parece ser apenas dois. Quando vejo, estamos ingressando na perna base da pista 18, onde tocamos suavemente. O ritmo de voos durante o dia é bastante frenético, com o avião parando, cortando apenas o motor direito (#3) para desembarque e embarque, seguindo para mais uma curta viagem sobre Oshkosh.  

Os pilotos são voluntários e se revezam na operação dos dois Ford Trimotor, permitindo não apenas pilotar uma máquina incrível, que fez a história na aviação, mas também proporcionar a diversas gerações a experiência de conhecer um avião que sua história começou a um século.

Após o desembarque apenas uma foto na frente do avião e hora do café da manhã, preferencialmente com muita cafeína, segundo minha amiga.

Por Edmundo Ubiratan, de Oshkosh
Publicado em 09/12/2023, às 09h00


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