Em janeiro de 2006, partindo de Congonhas, embarcamos no demonstrador do então recém-lançado G550, o jato de ultralongo alcance da Gulfstream
Nenhuma aeronave executiva vai tão longe quanto o Gulfstream G550, cujo alcance máximo é de 6.750 milhas náuticas (12.501 km) em regime de cruzeiro a Mach .80 — um pouco abaixo da velocidade máxima de Mach .885.
Com números de performance impressionantes, o G550 reina hoje na categoria dos jatos executivos de ultralongo curso. Prova disso, é que já existem 270 unidades em operação no mundo (GV e G550), sendo que dois G550 operam atualmente no Brasil e um terceiro deve chegar em 2007.
A história da Gulfstream confunde-se com o desenvolvimento da aviação executiva. Sempre focada em produzir aeronaves que atendessem às necessidades das grandes corporações, a empresa de Savannah, Georgia (EUA), focou sua linha de produtos em grandes jatos. O Gulfstream G550 surgiu em 2003 como uma versão atualizada do modelo GV, projeto anunciado em 1989 e oficialmente lançado em 1992.
O G550 inclui melhorias aerodinâmicas como novos geradores de vórtice em algumas áreas da fuselagem e da asa para melhorar o fluxo aerodinâmico; novos suportes (pylons) dos motores e melhoria nas saídas do APU e das packs; a troca da aviônica para a linha Honeywell Primus Epic com sistema PlaneView, o que reduziu em 600 libras (272 kg) o peso da aeronave e ainda aumentou o espaço interno na cabine; houve uma alteração aerodinâmica no flap para permitir menores ângulos de ataque nas aproximações e a capacidade de combustível aumentou em 2.767 kg.
O peso máximo de decolagem do jato ainda aumentou em 2.676 kg. Também é possível diferenciar o G550 do GV contando as janelas do lado esquerdo da fuselagem: são 7 no G550 contra 6 do modelo anterior.
Voaremos o demonstrador da fábrica que está configurado para 14 passageiros e conta com área de descanso para tripulação e galley dianteira. A Gulfstream oferece 12 opções de interior, 6 com galley na frente e 6 atrás, com variações que permitem acomodar de 12 a 18 passageiros.
Ao entrar na aeronave vemos logo uma enorme galley no lado direito do corredor, equipada com forno elétrico, forno de micro-ondas, duas cafeteiras, duas gavetas de gelo, compartimento para alimentos refrigerado eletricamente, pia com sistema de esterilização de água, porta copos, pratos, talheres e compartimento para garrafas e lanches, tudo para tornar mais agradáveis voos que podem durar mais de 14 horas.
Ainda na parte dianteira da cabine há uma poltrona de descanso para um tripulante. Existe um toalete dianteiro para atender preferencialmente à tripulação sem incomodar a cabine de passageiros. O interior tem um amplo club seating na parte dianteira e, na seção intermediária, há mais quatro poltronas com uma ampla mesa que pode ser usada para refeições e reuniões. Ao lado fica um prático armário com um aparelho multifuncional de fax, copiadora e impressora. Completam a parte traseira um divã com quatro lugares, que se transforma em cama, e dois outros assentos frente a frente. Todas as poltronas são extremamente confortáveis e estão equipadas com sistema de entretenimento.
O toalete traseiro, a vácuo, é muito espaçoso, com água esterilizada e tem um armário. O acesso interno ao porão de carga é pelo toalete, o bagageiro tem capacidade para 6.4 metros cúbicos, é amplo e atende às necessidades da capacidade da aeronave para voos longos.
A aeronave tem dois assentos VIP, de onde pode-se comandar o controle de temperatura da cabine (que é dividido por área), da iluminação (todo sistema de luzes é feito com LED) e do sistema de entretenimento. Esse controle também pode ser feito por um painel na Galley ou por controle remoto.
A aeronave conta com o sistema Wireless (sem fio) com banda larga BBML (Broad Band Multi Link) e oferece uma velocidade de transmissão de dados de 3,5 Mb/s. O pacote de entretenimento é composto por dois sistemas de vídeo e sistema de áudio, duas telas de cristal líquido (telas individuais nos assentos são opcionais) e controle dos fones de ouvido em cada assento. Temos quatro pontos de telefone via satélite a bordo. O sistema Airshow 4000 permite que os passageiros assistam na tela à progressão do voo e também exibe imagens de três câmeras instaladas na parte externa do avião (no alto do leme, no nariz do avião e próximo ao trem principal). Também está disponível um sistema de televisão via satélite, em tempo real. Para garantir um nível extra de conforto, o ar de toda a cabine de passageiros é trocado a cada dois minutos.
A cabine de comando é ampla, equipada com um jump seat, e as quatro grandes telas do sistema PlaneView tornam o ambiente bastante agradável.
De acordo com a Gulfstream o PlaneView é muito versátil e oferece três telas CDU para que a tripulação possa inserir informações de navegação e performance, além das informações reunidas nas telas principais. Deste modo, garante-se maior redundância em caso de falha de alguma tela. Para navegar entre os menus e as telas, optou-se por um CCD (Control Cursor Device) semelhante ao de algumas aeronaves militares, com um comando em cada lateral, similar a uma barra, e um cursor de acesso aos ambientes das telas.
Segundo os pilotos da fábrica este sistema é bem mais eficiente para ser operado em condições de turbulência porque os pilotos “agarram” a barra de comando com as mãos. Todos os comandos de funções do EFIS podem ser acionados por meio do painel de controle ou diretamente nas telas.
A versão básica vem equipada com HUD (Head-Up Display) e EVS (Enhanced Vision System), sistema de câmeras infravermelhas que permite ao piloto “enxergar” o que está à frente mesmo em condições com baixa visibilidade ou durante a noite, quando é possível fazer desvios além das informações fornecidas pelo radar, pois pode-se visualizar as formações de nuvens.
O G550 é equipado também com um AFIS (Airborn Flight Information System), sistema da Honeywell que possibilita acessar via satélite os bancos de informações aeronáuticas para obter dados meteorológicos em voo; e tudo pode ser impresso na própria cabine.
Além disso, com o AFIS a aeronave pode solicitar autorizações de tráfego diretamente do órgão de controle, sem a necessidade de fazer a solicitação por rádio (Digital Clearance). Atualmente as aeronaves estão com a versão C do software de controle, que ainda não realiza operações ADS e CPDLC — sistemas de navegação e transmissão de dados que já estão em operação em vários espaços aéreos do globo — mas a próxima versão, a ser lançada até o meio deste ano, permitirá o uso do ADS além de incluir lógicas de cálculo de peso e balanceamento, performance (inclusive análises de pista complexas) e Engine Out.
Mas o CPDLC estará disponível somente no meio de 2007. São vários os recursos que promovem um incremento da segurança de voo, como o Auto Descent Mode, em que o sistema de piloto automático inicia a descida de emergência no caso de uma despressurização, abrindo uma curva de 90 graus à esquerda enquanto o Auto Throttle reduz o motor e a aeronave desce na MMO/VMO até 15.000 pés, uma proteção extra para uma aeronave cujo teto operacional é 51.000 pés.
O Auto Thottle também evita que o G550 opere em velocidades muito baixas ou muito altas, mesmo se estiver desengajado, reduzindo a potência em caso de sobre velocidade e aumentando a potência quando a velocidade estiver próxima ao estol.
Outro recurso é a reversão manual dos comandos em caso de perda do sistema elétrico. Assim, o piloto voa “na mão” o G550, como faria com um pequeno monomotor. Um ponto que merece atenção no G550 são os comandos do painel overhead, que não foi concebido na filosofia dark cockpit. Portanto, ao acionar um Push Button no overhead, o botão acende indicando que a função selecionada está ativa.
Vamos então conferir como voa esta máquina. Meu instrutor é o Skip Wilkerson, piloto de demonstração do G550, que voou caças F-16 na Força Aérea Norte-Americana, e o safe pilot é o Paulo Jancitsky, um brasileiro radicado nos EUA que também faz parte do time de demonstração da Gulfstream.
Nosso voo será um circuito fechado decolando de Congonhas (SP), seguindo para o bloqueio do VOR de Londrina (PR) e retornando para São Paulo. O comandante Wilkerson me passa um longo briefing sobre os sistemas e as lógicas de interface da aeronave e, depois, um outro briefing sobre a pilotagem do G550.
Assumo o assento da esquerda e vou me familiarizando com os painéis e informações, pois a cabine já fora preparada pelo Paulo. A partida dos motores é muito simples, toda controlada pelo Fadec, com uma temperatura máxima de 700ºC. Após a partida completa executamos o longo check-list, que é mostrado na tela MFD, onde confirmamos cada item checado utilizando o comando CCD.
Com táxi autorizado, saímos cuidadosamente do Hangar da SATA, já que a envergadura de 28,5 metros exige certo cuidado. O controle do steering é muito preciso e suave bem como os freios, que são extremamente eficientes. Estamos com 58.368 libras (26.475 kg), quase a metade do peso máximo de decolagem. Nossa V1 será de 109 nós; VR de 117 nós e V2 de 122 nós. Seguimos no táxi e aguardamos quase 40 minutos para decolar, por causa do intenso tráfego em Congonhas.
Após a espera, alinho na 17L e ao ser autorizado levo a manete de potência a meio curso, acionando o Auto Throttle, que completa a potência até 1.58 de EPR. A aeronave acelera rapidamente e, na metade da pista de 1.300 metros, iniciamos a rotação. Um ponto curioso da operação do G550 é a recomendação de recolher os trens de pouso e os flaps (que estavam na posição 20 graus) logo após livrar o solo. Noto que o trem de pouso de nariz faz um forte barulho quando é recolhido. Não há a necessidade de aguardar uma altitude de aceleração por causa do enorme gradiente de subida e da capacidade de aceleração do jato.
Inicialmente o G550 atinge pitch de 20 graus e acelera para 160 nós com uma razão de subida de 6.000 pés/minuto. Depois estabiliza o pitch em 15 graus e acelera para 250 nós. Depois de 10.000 pés, o avião acelera para 300 nós e mantém esse regime até atingir o ponto de transição para Mach, no nosso caso, transição Mach .80.
Em 25 minutos estamos nivelados no FL 490 (49.000 pés). A quantidade de informações disposta nas telas é muito grande, bem como são várias as configurações possíveis, o que requer uma disciplina operacional grande para evitar distrações e manter o estado de alerta situacional durante o voo. O painel de controle de EFIS tem uma série de menus que permite a mudança das funções na tela, o ajuste das informações do HUD e do EVS, bem como visualizar informações importantes para o voo. É um recurso bastante útil, porém, requer uma boa adaptação. Mantemos velocidade Mach .80, no regime de longo curso, indicado para voos acima de 12 horas. Em voos cuja duração fica entre 10 e 12 horas recomenda-se voar a Mach.83 e, em voos de até 10 horas, a velocidade indicada é de Mach .85. Por sinal, é de um operador brasileiro o recorde de alcance no G550, em um voo entre Guarulhos e Moscou, uma etapa de 6.368 nm (11.793 km).
Como parte do ensaio, acelero o Gulfstream até Mach .885 e executo algumas curvas. A aeronave não apresenta nenhuma tendência ou vibração. Após o bloqueio de Londrina retornamos para São Paulo ascendendo para o FL 510 e mantendo Mach .80. Nessa altitude a pressurização mantém a cabine a 6.000 pés com um diferencial de 10,48 psi, o que garante que passageiros e tripulantes tenham um desgaste físico menor mesmo em voos longos.
No nosso ponto ideal de descida o Auto Throttle reduz a potência e iniciamos a descida suavemente. O FMS calculou nossa velocidade de aproximação em 115 nós e uma Vref de 110 nós, velocidades muito baixas para uma aeronave deste porte que não tem slats.
Entramos no procedimento de descida (STAR) e vale destacar que os pilotos têm acesso a todas as cartas digitalizadas no MFD e podem projetar a posição da aeronave durante o procedimento, o que é muito útil principalmente em espaços aéreos congestionados. Ao girarmos para a posição Ever, comando os flaps em 10 para iniciar a redução para a interceptação da final.
Quando alinhamos no procedimento, peço flaps 20 e trem baixado. Ao ultrapassar o Marcador Externo colocamos os flaps na posição 39 e ajustamos para a velocidade de aproximação. Até este momento estava usando o HUD para me orientar, mas como ainda não estou familiarizado com o equipamento, recolho a lente do HUD, desligo o piloto automático enquanto o comandante Wilkerson desliga o Auto Throttle para que eu possa sentir a redução durante o pouso.
Na tela PFD um símbolo avisa aos pilotos quando se deve utilizar a potência para manter a velocidade requerida. Isso facilita muito o ajuste do motor. O G550 não tem auto brake nem é capaz de fazer pousos automáticos, mas está certificado para aproximações de precisão CAT II.
Durante a curta final, tenho a sensação de que estamos nos aproximando com o nariz muito baixo. Deve ser por causa da posição do painel e da pequena alteração no flap. Conforme o Wilkerson havia me avisado dá uma vontade de segurar o nariz, mas mantenho a atitude até o cruzamento da cabeceira, quando reduzo o motor para Idle e, a apenas 10 pés do chão, dou uma ligeira quebrada na atitude.
Como meu instrutor havia dito, a aeronave pousou suavemente, praticamente sozinha, logo após a marca de 1.000 pés. Skip Wilkerson fica orgulhoso, mas reconheço que só fiz o que ele mandou, não foi feeling. O avião pousou sozinho. Depois do toque, seguro o nariz para não bater forte no solo e obtenho êxito em mais esta tarefa. Simultaneamente aciono o reverso e apoio o pé no freio. Poderia até livrar pela taxiway central, mas prefiro não abusar dos freios e saímos na seguinte.
Para quem voa nele pela primeira vez, o G550 impressiona pela facilidade de pilotagem, além da performance dos recursos existentes, o que torna o voo extremamente prazeroso. Sigo no táxi para a SATA com muito cuidado, faço o giro e cortamos os motores, apesar da minha vontade de continuar voando.
Ao final deste voo entendo melhor porque os americanos consideram a marca Gulfstream um sinônimo de sucesso e porque muitas das grandes empresas mundiais se utilizam dessas aeronaves para alavancar seus negócios pelo mundo afora.
O espaço, o conforto, as funcionalidades, a performance de pouso e decolagem em pistas curtas e o alcance aliado à grande velocidade de cruzeiro fazem do G550 um avião muito difícil de ser batido na sua categoria.
* Publicado originalmente na AERO Magazine 141 · Janeiro/2006
Por Daniel Torelli
Publicado em 26/03/2024, às 15h00
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