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Cronologia de uma crise

Turbulência na Boeing acumula quase duas décadas

Desde a virada do anos 2000 fabricante enfrenta período turbulento em seus negócios


Boeing atualizou o 737 buscando manter a fidelidade de seus principais clientes, como a norte-americana Southwest

A Boeing confirmou a suspensão da produção do 737 MAX, que deverá voltar a operar de modo regular em meados de abril de 2020. Até lá, a proibição global de voos imposta ao novo jato terá completado mais de um ano. Independente da data final de retomada dos voos, a sequência de acontecimentos protagonizada pelo maior conglomerado aeroespacial do mundo nos últimos anos, incluindo os problemas com o 787 Dreamliner e outros programas, já tem um lugar de destaque na linha do tempo da aviação por seu ineditismo.

A crise começou em janeiro de 2013, quando o 787 Dreamliner, que tinha poucos meses de operação, foi proibido de voar. Na ocasião, falhas nas baterias podiam levar a um incêndio em voo e colocar em risco todos a bordo. Após uma série de correções o avião voltou a voar em abril do mesmo ano. Mas o pior estava por vir: a falha no 787 era apenas o primeiro solavanco de uma turbulência que causaria danos severos à reputação tanto da Boeing como de seu principal avião, o 737.

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Ao longo de mais de 100 anos, a Boeing se estabeleceu como um dos mais admirados e consagrados fabricantes aeroespaciais do mundo. O nome Boeing, porém, iria se consolidar em meados dos anos 1960 com a chamada Era do Jato. Desde então a frase “If not Boeing, I'm not going” (Se não for a Boeing, não vou – na tradução literal) se tornou quase um lema para muitos. Mas, em meados da virada do milênio, algo saiu errado. Na ocasião a Boeing concluía a absorção da rival McDonnell Douglas e a reorganização da fusão agregou diversos projetos ao portfólio da Boeing, com destaque para as divisões comercial e militar.

717 obteve poucas encomendas e foi retirado de linha com menos de uma década do lançamento

Uma das primeiras medidas da Boeing foi cancelar o programa MD-11, que teve sua última entregue em 2000. Contudo, deu continuidade ao programa MD-95, uma aeronave com capacidade na faixa dos 100 assentos. Para padronizar a linha, batizou o avião de 717, a única sequência entre o 707 e 777 que estava disponível. O modelo logo se provou um completo fracasso de vendas. Era oferecido como Boeing, mas não tinha qualquer familiaridade com nenhum projeto do fabricante, não tendo nenhuma padronização de sistemas, operação ou mesmo logística. O avião conquistou poucos clientes, já que rivalizava com o então recém-lançado 737-600 em um mercado que se mostrava cada vez menos atraente para esse tipo de aeronave. A faixa de 100 aos 120 assentos estava prestes a ser dominada pelo E-Jet da Embraer, um projeto feito dentro das especificações de mercado do início dos anos 2000. Os 737-600 e 717 e o rival da Airbus, o A318, se mostravam pouco atraentes. Por azar ou não, a Boeing tinha dois dos três aviões que o mercado definitivamente não queria. No segmento militar, a Boeing perdeu nesse período o bilionário contrato do Joint Strike Fighter (JSF) para a Lockheed Martin e seu F-35. O F-22 Raptor, construído justamente em parceria com a Lockheed, estava prestes a ver seu pedido encolher para menos de 190 encomendas.

Boeing revelou o Sonic Cruiser como uma resposta ao A380, mas modelo não passou da fase de conceito

Enquanto isso, a Airbus confirmava o lançamento do A380, um gigante que prometia transportar mais de mil passageiros na versão A380-900. Anos antes a Boeing havia oferecido ao mercado o 747-500 e 747-600, versões alongadas do 747. O modelo -600 tinha mais de 80 metros de comprimento, o que claramente se mostrava inviável, visto que o limite para um modelo comercial é de 80 metros. Em paralelo ao desenvolvimento do A380, a Boeing lançou o Sonic Cruiser, um avião de dimensões e capacidades similares às do 777-200, mas capaz de voar transônico, em uma faixa de velocidade muito próxima à do som, que permitia reduzir em ao menos duas horas um voo de 12 horas, só que com um consumo maior do que o de qualquer avião subsônico. Com os efeitos dos atentados de 11 de setembro ainda presentes e a alta no preço do petróleo, nenhuma empresa aérea se interessou pelo projeto. O incrível estava acontecendo. O mercado rejeitava não um, mas cinco projetos da Boeing, dos quais dois estavam prontos e sendo comercializados.

O 717 chegava ao fim em 2005, quando foi anunciado que seu programa seria encerrado. Ainda mais surpreendente, o 757, um bimotor de fuselagem estreita e queridinho das empresas aéreas norte-americanas, também seria retirado de linha. A justificativa era que o já veterano 757 rivalizava com o recém-lançado 737-900, que tinha a mesma capacidade de assentos, nada mais.

Pouco antes o 787 Dreamliner foi lançado e conquistou quase mil pedidos em poucos meses. Era a retomada dos grandes contratos, mas o problema era que o cronograma proposto mostrou que muitos parceiros não tinham condições de atender à demanda e às exigências de um projeto como o do 787. Como resultado houve uma sequência de atrasos no cronograma e a primeira operação comercial ocorreu em agosto de 2011, quase quatro anos após o prazo previsto. Logo as baterias se tornaram um grave problema e a Boeing viu pela primeira vez um de seus aviões ser proibido de voar por quase quatro meses.

787 Dreamliner obteve mais de mil pedidos em poucos meses, mas foi o primeiro avião da Boeing a ser impedido de voar

A Airbus lançou no início da década o A320neo, a versão modernizada do consagrado A320. A Boeing tardiamente respondeu com o 737 MAX, que, rapidamente, obteve uma resposta equilibrada do mercado, mantendo a divisão de quase meio a meio nas encomendas. 

O A320 enfrentava sua primeira modernização enquanto o 737 encarava a quarta cirurgia e o 737 Next Generation parecia ser o limite do projeto dos anos 1960. Mudanças no centro de gravidade, nova aviônica, redesenho dos estabilizadores horizontais, mudanças na posição dos motores, entre outros, levou a criação do famoso MCAS, que se tornou o maior pesadelo da Boeing em mais de 100 anos. 

O Maneuvering Characteristics Augmentation System (ou Sistema de Aumento de Características de Manobra) foi desenvolvido como uma forma simplificada de corrigir a aeronave em determinadas condições por causa do posicionamento dos motores nas asas, mais altos e distantes da fuselagem. A explicação tão simplificada foi também utilizada pela Boeing, que suprimiu qualquer informação detalhada do sistema dos manuais. Oficialmente, a Boeing afirmava que o software “não controla a aeronave em voos normais”, mas, sim, “melhora parte de seu comportamento em condições operacionais não normais”.

Ainda que o sistema não seja muito diferente do que um piloto de linha aérea espera encontrar, o principal problema foi como a Boeing apresentou o MCAS durante a fase de treinamento, oferecida como uma simples atualização dos pilotos. O mergulho de um 737MAX 8 da Lion Air na costa da Indonésia acendeu a luz amarela para o sistema. A resposta da Boeing continuou vaga e discreta, pelo menos até um 737 MAX 8 da Ethiopian Airlines cair logo após a decolagem, menos de seis meses após o desastre com o avião da Lion Air. 

Produção do 737 MAX será suspensa a partir de janeiro de 2020

A FAA e diversas outras agências proibiram o modelo de voar e passaram a investigar a Boeing. Resultado, a empresa virou manchete por menor que fosse o motivo. Para piorar, uma falha estrutural grave acometeu alguns 737NG com menos de trinta mil ciclos, forçando uma convocação para manutenção imediata das aeronaves envolvidas. Em seguida, os KC-46, os novos aviões-tanque da força aérea dos Estados Unidos, que acumularam atrasos e custos cada vez mais elevados, foram impedidos de voar pelos militares norte-americanos. Falhas no projeto das redes e sistemas de contenção de cargas, aliadas à montagem mal realizada, com diversos componentes e fuligens soltas pela cabine, tornaram-se alvo de inquérito no Pentágono.  Por fim, durante um teste estático uma célula do 777-9, o novo flagship da Boeing, apresentou uma falha catastrófica fora dos parâmetros previstos em projeto.

A sequência de problemas levou a Boeing a rever sua metodologia e rever procedimentos. Agora a fabricante suspendeu por prazo indeterminado a produção do 737 MAX, ampliando ainda mais sua delicada situação.

Perdas com o 737 MAX podem superar valor pago pela divisão de aviação comercial da Embraer

A Boeing poderá gastar bilhões de dólares em indenizações para as empresas aéreas, como forma de compensar as perdas milionárias que cada companhia aérea vem acumulando com os 737MAX parados. O custo poderá ser maior do que o valor pago pela joint venture com a Embraer, que aguarda aprovação. A união dos dois fabricantes, aliás, ocorre no pior momento para a empresa de Seattle, que não poderá celebrar sua nova conquista, embora possa ter na engenharia da empresa brasileira um caminho para reverter o atual quadro de incerteza.

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Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 17/12/2019, às 13h00 - Atualizado em 10/01/2020, às 02h55


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