O aviador que dá nome ao mais charmoso torneio de tênis do mundo cultivou amizade com Santos Dumont, pilotou sobre a baía de Guanabara e morreu como um ícone, em combate
Ciclista, jogador de rúgbi, empreendedor, amigo de artistas, razoável intérprete de Chopin ao piano, pioneiro da aviação em três continentes, recordista de velocidade e altitude em voo, criador do caça monoposto, fugitivo de campo de prisioneiros e, finalmente, herói da França na Grande Guerra. No mais enxuto dos resumos, este foi Roland Garros, que viveu como ninguém e morreu um dia antes de completar 30 anos.
Temível no início da Grande Guerra, o Fokker Eindecker recebeu um dispositivo de disparo de tiro aperfeiçoado |
Como é de se supor, o homem que dá nome a um dos mais tradicionais torneios de tênis do mundo, o Aberto da França (leia mais no box da p. 76), veio de uma abastada família. Nascido em Saint-Denis, nas Ilhas Reunião, uma colônia francesa no Oceano Índico, em 6 de outubro de 1888, Roland Adrien Georges Garros teria tudo para levar uma vida pacata e financeiramente confortável, proporcionada pelo patrimônio acumulado pelo seu pai, Georges, um advogado comercial bem sucedido que atuava nas Reunião e que, poucos anos depois, levaria a família para Saigon, na Indochina Francesa. Sua mãe, Clara, ensinou o filho a ler e escrever ainda em casa.
Em 1900, no auge da Belle Époque, que se encerraria logo depois, com o início da Grande Guerra (o termo Primeira Guerra Mundial seria adotado depois, com o início do segundo conflito mundial), o pequeno Roland é enviado para Paris para completar os estudos. A viagem de navio durou dois meses, cruzando o Oceano Índico e o Mar Mediterrâneo, via Suez até Marselha. Na capital francesa, no prestigiado Collège Stanislas de Paris, é acometido de pneumonia. Sua recuperação, longe dos pais, só com o apoio de estranhos, termina por forjar uma personalidade independente e sem temor dos riscos naquele garoto de 13 anos de idade. Esses traços, os recursos familiares e os contatos certos jogariam Garros, nos anos seguintes, na direção da aviação, a grande aventura tecnológica do início do século 20.
EM 1912, GARROS, NO COMANDO DE UM BLÉRIOT XI, TORNOU-SE O PRIMEIRO AVIADOR A CRUZAR A BAÍA DA GUANABARA, TIRANDO FOTOS AÉREAS DO RIO E DE SEUS CARTÕES POSTAIS NATURAIS |
Para recuperar a saúde em um tempo sem antibióticos, dedica-se ao ciclismo nos anos seguintes. Era uma boa maneira de exercitar os pulmões e aproveitar o sol. Aluno sem brilho, para enganar o pai, adota o pseudônimo da Danlor (anagrama de Roland) para competir - e vencer - o circuito interescolar de ciclismo de 1906. Também vence um concurso de piano e um campeonato de futebol. Logo depois, matriculado na HEC Paris (a faculdade de Altos Estudos Comerciais), é apresentado ao rúgbi por um amigo. Também pratica tênis, mas só como lazer. Aos 20 anos, com o diploma na mão, o jovem Roland consegue um emprego na Automobiles Grégoire, onde começa a lidar com motores. Por fim, abre uma representação da empresa perto do Arco do Triunfo com ajuda do pai e a participação de um amigo. A placa na entrada indicava "Roland Garros Automobiles - Voiturettes de Sport".
A GRANDE SEMANA
O interesse pelos motores acaba por levar o jovem esportista ao encontro de seu destino. Em um final de semana de agosto de 1909 vai com o amigo e sócio Jacques Quellennec acompanhar La Grande Semaine d'Aviation de Champagne, perto de Reims. Não era um evento qualquer. Promovido pela República com apoio dos grandes produtores de champanhe, como a Veuve Clicquot, a Grande Semana de Aviação reuniu a nata da aviação. Até então o grande público acompanhava os primeiros aviadores mais pelos jornais do que ao vivo. Prêmios que somavam 167 mil francos seriam dados a quem batesse recordes de distância, velocidade, altitude e transporte de passageiros. Até o final de 1908, apenas sete pessoas haviam permanecido no ar por mais de um minuto. De acordo com o historiador Tom D. Crouch, em "Asas": "Em Reims, oito meses depois, 22 aviadores conduziram 25 aeroplanos para o ar para um total de mais de 120 decolagens, sendo que 67 resultaram em voos de mais de cinco quilômetros". O mundo havia mudado. Ao ver aquelas máquinas em ação, Garros anuncia: "Vou ser aviador".
Os lucros da empresa permitem a compra do primeiro avião. É um dos Demoiselle construídos pelo brasileiro Santos Dumont. A escolha é óbvia. Enquanto o mais potente e moderno Blériot XI custava entre 30 mil e 40 mil francos, um Demoiselle, o primeiro ultraleve da história, saía pela relativa bagatela de sete mil francos. Santos Dumont e Garros se tornam amigos e trocam ideias sobre voo e pilotagem antes mesmo que o francês obtenha sua licença de piloto. Nem seria preciso. No ano seguinte, Garros é contratado para voar em Cholet, durante as festividades do aniversário da Revolução Francesa. Em 19 de julho, o Aéro-Club de France lhe concede o brevê de número 147. Garros tem 21 anos.
A partir daí a vida do jovem piloto adquire um novo ritmo. Logo, o pequeno e elegante Demoiselle, de seda e bambu, torna-se pequeno e fraco demais. Novos modelos e motores são rapidamente desenvolvidos. Ainda com poucas horas de voo, conhece a milionária americana, madame Hart O. Berg, amiga e incentivadora dos irmãos Wright. Ela pretendia promover a aviação nos Estados Unidos. Entusiasmado com a ideia, mas equipado apenas com o Demoiselle, não consegue participar. Porém, ao encontrar o amigo franco-canadense John Moisant, entra para o Circo Moisant, que faria shows aéreos em todos os EUA. A partir daquele momento ele passaria a ganhar dinheiro para fazer o que mais gostava. O circo também faz apresentações no México e em Cuba.
Com suas técnicas de voo aprimoradas e a bordo de um Blériot, Roland Garros volta à França em maio de 1911 para participar das corridas aéreas Paris-Madri, Paris-Roma e do Circuito Europeu. Apesar de suas habilidades aprimoradas, não consegue vencer nenhuma competição ou bater recordes, sendo apelidado jocosamente pela imprensa de o "Eterno Segundo". Os críticos não tardam por esperar. Ao conhecer o construtor Charles Voisin, ex-sócio de Louis Blériot, e a Baronesa de Laroche, a primeira aviadora da história, consegue o apoio financeiro necessário. Em 4 de setembro de 1911, bate o recorde mundial de altitude, atingindo 3.950 metros. Visionário, Garros afirma que a quebra de recordes não é só coisa de aventureiros, mas algo necessário para aperfeiçoar a aviação e torná-la mais segura. A notoriedade permite que reate as relações com o pai.
BRÉSIL E RECORDES
O passo seguinte é desbravar a América do Sul, contratado pelo industrial Willis McCormick, que organiza uma turnê. Em 1912, no comando de um Blériot XI, Garros é o primeiro aviador a cruzar a baía da Guanabara, tirando fotos aéreas do Rio e das montanhas circundantes. Também é o primeiro a fazer o trajeto São Paulo-Santos, levando uma mala postal. Ao seu lado está o brasileiro Eduardo Chaves, um dos pioneiros da aviação no país. No Rio, após uma de suas apresentações, trava contato com o major Paiva Meira, da Comissão Militar do Brasil, e com o tenente Ricardo Kirk, o primeiro oficial aviador do exército brasileiro, treinado na École d'Aviation d'Etampes, na França. Com Meira e Kirk, Garros dedica uma semana de voos com os militares, levando muitos pela primeira vez aos céus.
Após a turnê pela América do Sul, Garros vence os mais de mil quilômetros da Corrida de Anjou, em junho, sendo aclamado como o Campeão dos Campeões. Logo depois, vence em Viena e Houlgate, atingindo o recorde de altitude de 4.950 metros. Contratado como piloto de testes da Morane-Saulnier, decide ir para a Tunísia, onde as condições meteorológicas seriam mais favoráveis. Antes, na Provença, atinge a marca de 5.610 metros de altitude. Na Itália, é o primeiro homem a sobrevoar o vulcão Vesúvio, sendo aclamado em Roma. O fabricante de carros esportivos Ettore Bugatti batiza uma de suas criações de quatro rodas com seu nome. Só sete exemplares são construídos, um ainda resiste. A maior aventura vem em 13 de setembro de 1913, com a primeira travessia do Mediterrâneo, o primeiro voo intercontinental da história.
A decolagem ocorre em Fréjus, às 5h47 da manhã. O Morane-Saulnier chega em Bizerta após 7 horas e 53 minutos de voo e 730 quilômetros com apenas cinco litros de combustível. Não é uma viagem fácil. O motor entra em pane por duas vezes, perto da Córsega e sobre a Sardenha. Com a façanha, Garros vira herói e celebridade, sendo aclamado em definitivo em toda a Europa. A travessia é façanha tecnológica. Quatro anos antes, Louis Blériot havia penado tanto quanto para cruzar os 36 quilômetros do Canal da Mancha. É a prova de que logo, com os devidos ajustes e avanços, voos comerciais poderão cruzar o mar.
O PAI DO CAÇA
Quando a Primeira Guerra irrompe, em 28 de julho de 1914, Garros está na Alemanha, visitando fábricas de aviões como convidado de construtores locais. Diante do agravamento da crise, mas sem suspeitar que a guerra fosse começar, consegue sair da Alemanha dirigindo seu Bugatti Garros pouco antes do fechamento da fronteira. O piloto mais famoso da França estava com 25 anos e logo usaria farda pela primeira vez.
OS PÁSSAROS DO FRANCÊS MORANE-SAULNIER G
BLÉRIOT XI
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No início do conflito, por mais estranho que possa parecer, o avião de caça não existia. As aeronaves eram usadas para reconhecimento, direcionamento de artilharia, ataque ao solo e bombardeio. Construídos em lona e madeira, os frágeis biplanos e monoplanos eram alvos fáceis para o fogo de terra. Era extremamente difícil um piloto abater outro. Armas eram usadas de modo improvisado. Alguns levavam pistolas, rifles de caça e até ganchos e cordas. O primeiro abate ocorre em 5 de outubro de 1914, quando um sargento francês, Joseph Franz, improvisa uma metralhadora sobre o motor de seu Voisin. A vítima é um Taubegermânico. Porém, o feito é de difícil repetição. Logo os ingleses começam a usar metralhadoras leves Lewis em seus biplaces. O observador fazia o papel de artilheiro. É quando Roland Garros volta a se destacar.
O TEMPLO DO SAIBRO O torneio de tênis Les Internationaux de France, ou Roland Garros, como é mais conhecido, tem suas origens em 1891, quando era disputado apenas por franceses no clube Stade Français, do qual Roland Garros era membro. Não se tem notícia, contudo, de que o aviador tenha participado de alguma competição de tênis. Talvez rúgbi, já que esse era um dos esportes principais do Stade Français, criado em 1883. Só em 1925 o campeonato de tênis se tornou verdadeiramente "internationaux", aceitando a participação de jogadores estrangeiros e tornando-se, assim, um dos quatro grandes eventos mundiais, juntamente com o Australian Open, Wimbledon e US Open. Três anos depois o nome Roland Garros ficaria ligado ao torneio. Em 1927, a equipe francesa - que ficou conhecida como "Os Mosqueteiros" - conseguiu um feito histórico ao derrotar o time norte-americano (dentro dos Estados Unidos) e conquistar a Copa Davis (campeonato entre nações) pela primeira vez. Na época, o vencedor defendia seu título em casa, portanto, os franceses queriam fazer bonito e construir um estádio para jogar no ano seguinte Depois de uma disputa da federação francesa de tênis com a prefeitura de Paris, o Stade Français resolveu ceder um terreno perto de Porte d'Auteuil, em frente ao Bois de Boulogne, com a condição de que o local levasse o nome de seu mais famoso sócio, Roland Garros, morto 10 anos antes de o estádio - com capacidade para 10 mil pessoas - ficar pronto. Os franceses venceram a Copa Davis por seis vezes lá e o Les Internationaux de France também passou a ser disputado no local. Roland Garros é considerado o mais charmoso dos quatro Grand Slams e o único disputado em piso de saibro. Mesmo sendo o último a ter aceito a participação de jogadores estrangeiros, foi o primeiro a aceitar tenistas profissionais, em 1968. Em 1997, ele ficaria conhecido do público brasileiro após a conquista de Gustavo Kuerten, o primeiro tenista nacional (homem) a vencer um Grand Slam - fato que se repetiria em 2000 e 2001. A maior vencedora do torneio até hoje é a norte-americana Chris Evert, com sete títulos, número que o espanhol Rafael Nadal tenta alcançar neste ano, no torneio que começa em 21 de maio. Por Arnaldo Grizzo, editor da revista Tênis, especial para AERO Magazine |
Com uma improvisação óbvia para os dias de hoje, o francês derruba pelo menos três aviões inimigos nos primeiros 18 dias de abril de 1915. Algumas estimativas apontam cinco abates. Garros havia inventado o caça ao instalar uma metralhadora Hotchkiss que disparava por entre as pás das hélices de seu Morane-Saulnier L. O dispositivo fez com que o modelo ganhasse o apelido de "parasol". Sua primeira vítima é um Albatroz alemão, em 1º de abril. Sem um mecanismo de sincronia, ele instala aletas de metal nas pás da hélice para desviar os tiros (nenhuma bala ricocheteou contra o piloto). Aquelas duas semanas mudariam a aviação de guerra. Porém, a sorte de Garros e da aviação francesa mudariam.
Morane-Saulnier N equipado com metralhadora e as aletas defletoras de balas nas pás da hélice |
FLAGELO FOKKER
Em 19 de abril, seu Morane-Saulnier é atingido por fogo de terra e cai em chamas. O jornal inglês Flight publica: "a respeito do modo como Garros tinha se sacrificado pela França ao arremessar a si mesmo e à sua máquina diretamente contra uma aeronave alemã, envolvendo o inimigo e a si mesmo em uma tragédia inevitável". Pura propaganda. Capturado ileso atrás das linhas inimigas ao bombardear um trem, Garros é levado a um campo de prisioneiros. Seu aeroplano é desmontado e entregue ao projetista holandês Anthony Herman Gerard Fokker, que trabalhava para o Kaiser. Ele tinha a missão de adaptar o dispositivo de Garros. Fokker faz mais. Temeroso que um bala ricocheteada atingisse um piloto, elabora uma engrenagem com ajuda do soldador Reinhold Platz. É uma cópia de um dispositivo criado por Franz Schneider, da LVG, que sincronizava a rotação da hélice com os disparos. O dispositivo improvisado de Garros vira um produto industrial instalado no monoplano Fokker E "Eindecker" com a finalidade de matar franceses.
A chegada dos primeiros Eindecker E.I, E.II e E.III ao Front Ocidental, em junho e julho de 1915, marca o início do Flagelo Fokker. É o período da supremacia alemã, que termina no início de 1916, com a chegada de biplanos Nieuport 11 e DH.2 aliados, com mais poder de fogo, agilidade e potência do que o Eindecker. A invenção de Garros torna os pilotos de ambos os lados heróis. Enquanto exércitos inteiros ficavam imobilizados nas trincheiras enlameadas, vitimados pelo canhoneio, gás venenoso, franco-atiradores e doenças, nos céus os aviadores se enfrentavam com aparente galhardia. E se voltassem inteiros, podiam terminar o dia com um banho e uma refeição quente. Acostumados a celebrar as façanhas de seus pilotos de competição e exibição, os franceses faziam o mesmo durante a guerra. Algo que Garros, prisioneiro, só voltaria a usufruir depois de 15 de fevereiro de 1918, quando foge disfarçado de oficial alemão junto com o tenente Anselme Marchal.
LEGIÃO DE HONRA
De volta à aviação, ainda que debilitado pelo tempo de cativeiro, Garros esconde que está com a visão comprometida. Ele passa a usar óculos para voar nos novos Spad XIII. Nomeado cavaleiro da Legião de Honra, diz que foi abatido por sua própria culpa e se recusa a servir nos gabinetes. O presidente Poincaré ordena que ele passe por um novo treinamento e que só volte após se recuperar. Em Paris, durante um ataque aéreo, se recusa a procurar abrigo por estar muito ocupado vendo a amiga Isadora Duncan dançar para ele em plena Place de La Concorde. Sua atitude enfurece os superiores, mas ganha aplausos do público.
Os anos na prisão permitem que dezenas de outros pilotos superem Garros. O primeiro ás é Adolphe Pégoud, que derruba seis alemães antes de morrer, ainda em agosto de 1915. Garros quer lutar, mesmo sabendo que atingir a marca dos maiores ases, Manfred von Richthofen, o Barão Vermelho, com 80 abates, ou o francês René Fonk, com 75, seria impossível. Em 5 de outubro de 1918, o Spad XIII de Garros é atingido por fogo de terra após abater um Fokker D.VII sobre a Bélgica. Em chamas, o Spad se espatifa no solo em Saint-Morel, nas Ardenas. O corpo do herói da França é enterrado próximo dali, em Vouziers. No dia seguinte, Roland Garros faria 30 anos e a guerra acabaria em 40 dias.
| André Vargas
Publicado em 19/04/2013, às 06h54 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
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