Um relato empolgante do terceiro tripulante do Connie e o Convair 990A
O Super Constellation foi um dos aviões que mais exigiu do engenheiro de voo
Por: Ernesto Klotzel
Nenhum outro tripulante técnico teve tanta importância na complementação das operações normais de pilotagem e, principalmente, nas situações de emergência como o engenheiro de voo (flight engineer). A consagração de sua posição a bordo pode ser creditada ao Lockheed L-1049 Super Constellation. Perdoadas suas tantas mazelas, o Super Constellation deixou saudades em todos os flight engineers que enfrentavam durante horas intermináveis o universo de 'reloginhos”, luzes multicores, chaves e disjuntores dispostos em diversos painéis que, literalmente, os cercavam quase que por completo. Tive a felicidade de vivenciar cada um de seus caprichos, geralmente envolto em circunstâncias previstas por aquela famosa lei formulada conforme as premissas de Mr. Murphy.
Sempre quis trabalhar em aviação, preferivelmente na manutenção de sistemas e respectivos componentes. Embora de posse do brevê primário de pilotagem e de um curso inconcluso em planadores, não me passava pela cabeça enfrentar a maratona que me levaria, após muito tempo, dinheiro, sorte e (por que não?) vocação, ao posto de comandante de uma empresa aérea nacional.
Por outro lado, não hesitaria um minuto em me candidatar a uma posição a bordo por meio da qual pudesse controlar o desempenho das dezenas de sistemas que compunham uma aeronave, começando por seus motores. Em um artigo publicado na antiga “Saturday Evening Post”, revista que falava de profissões interessantes, fiquei imediatamente atraído pela foto de um tripulante da antiga TWA, uma das maiores operadoras de Constellation no mundo, sentado em uma bancada própria, afastado dos dois pilotos e tendo diante de si um mundo de “relógios”, luzes, chaves e manetes. Parecia ser ele que tinha em mãos todos os recursos para controlar a normalidade do voo. Pura verdade, como constataria depois.
Após viver nos Estados Unidos, onde trabalhei na Hiller Aircraft, ingressei na engenharia de manutenção da Real Aerovias – onde havia estagiado em tempos de estudante –, que possuía a maior frota de aeronaves DC-3 da América Latina. E lá comecei meu envolvimento com o posto de engenheiro de voo. Lendo e relendo a exaustão a história do flight engineer descobri que era exatamente o que estava procurando: ser membro normal da tripulação, contribuir para as operações rotineiras de voo, fazer o monitoramento dos sistemas e servir de interface com os mecânicos em terra no caso da necessidade de uma intervenção.
Descobri onde queria estar, embora não conhecesse sequer o interior de um Constellation. E era a única aeronave que, na época, apresentava uma configuração de cockpit que privilegiava o flight engineer com um “escritório próprio”. Na oportunidade, também eram utilizados por empresas mundo afora os confiáveis Douglas DC-6, quadrimotores como os Connie, mas a posição de flight engineer espremida entre os dois pilotos era ocupada por um segundo oficial que não via a hora de ser promovido a copiloto. Embora eficiente, não se podia exigir uma motivação maior do que a de um flight engineer plenamente consciente de sua posição, sem qualquer pretensão de se tornar piloto. Infelizmente, tudo indicava que a Real compraria os confiáveis DC-6, colocando, assim, um ponto final nas minhas pretensões de aeronauta. Certamente, a companhia optaria pelo segundo oficial para ocupar o posto que eu almejava.
Eu não poderia fazer nada para mudar a preferência da companhia pela linha Douglas, mas era muito difícil permanecer à margem do processo, esperando passivamente pelo que, achava na ocasião, o desfecho certo: a compra dos DC-6, com a adaptação temporária dos segundos oficiais travestidos de flight engineers. Restava, ainda, um último recurso, a marcação do “meu território” diante da remotíssima possibilidade de compra dos Super Constellation no lugar dos DC-6. Estes eram meio raros no mercado de novos e usados.
Meu plano exigia uma pressão efetiva no diretor de Manutenção, o engenheiro Eduardo de Mello Alvarenga, grande figura humana, e um amigo, a despeito do abismo hierárquico que nos separava. Os mais artificiais pretextos propiciavam minha visita ao escritório do engenheiro Alvarenga, que sempre me recebia sem mostrar qualquer impaciência à minha campanha de saturação. Batia sempre na mesma tecla: e os DC-6, cuja compra até então era quase uma certeza, viriam mesmo? No caso de serem substituídos pelos Super Constellation, meu amigo me garantiria um lugar a bordo? Sempre paciente, o diretor só me assegurava que a negociação com os DC-6 estava praticamente concluída. A falta da batida do martelo me dava forças para continuar minha incômoda campanha.
Passados meses de indefinição, chegou um dos dias mais marcantes da minha vida. Estava na bancada de testes de um motor de arranque do Pratt&Whitney R-1830, sensacional motor do DC-3, quando o serviço de som anunciou que o Doutor Alvarenga exigia minha presença imediata em sua sala. Com o coração na mão, pensei que significasse minha demissão, após os meses de verdadeiro assédio. Tão logo abri a porta, ele me olhou e, com um sorriso meio sem graça, começou: “Você tem uma boca, não?”. E completou: “Compramos quatro Super-Constellation da Lockheed: você será o chefe dos flight engineers e irá para Burbank chefiando a primeira turma para fazer o curso na fábrica. Durante esse período, as aeronaves estarão sendo fabricadas para o traslado, tripuladas por comandantes e F/E da primeira turma acompanhados por instrutores da fábrica até que vocês e os comandantes, que irão mais tarde, estejam em condições de ‘solar’ o equipamento”.
Para a maioria da turma, receber dois carros do ano da Lockheed para irmos às aulas e ainda fazer programas de lazer, tendo geralmente como foco a Dysneyland de Anaheim, California (o colosso de Orlando não fazia então nem parte dos planos), era puro sonho, completado com a localização do nosso hotel: em plena Hollywood, a menos de duas quadras do cruzamento da Hollywood com a Vine St., que era então a esquina “mais quente” do mundo do cinema. Burbank, sede da Lockheed, não ficava atrás, pois hospedava vários estúdios importantes antes do advento das grandes produções de televisão, existindo até os dias de hoje. A fabricação dos Constellation estava a pleno vapor, com pátios repletos de modelos aguardando o traslado para os cinco continentes e muita atividade nos diversos cursos de familiarização como o nosso. Foi um período de muito estudo para aprender, sucessivamente os mistérios dos motores Wright (extremamente sensíveis com relação à sua operação e, mesmo assim, um item crítico reconhecido por todos os operadores no mundo), de suas hélices (que também tinham lá seus caprichos) e de um rosário de sistemas. Entre eles, os de pressurização e climatização, antigelo e degelo, combustível, lubrificação, hidráulico, elétrico e eletrônico, todos “sob jurisdição” de um flight engineer de L-1049.
Estávamos na segunda metade dos anos 1950, quando não se podia esperar nada que se assemelhasse mesmo com os mais elementares auxílios didáticos atuais. Os complexos diagramas fixados junto ao quadro negro da sala de aula eram seguidos penosamente pelo instrutor e pelos “alunos”, exigindo uma boa dose de imaginação para sua assimilação. Quase não existiam auxílios de treinamento tridimensionais e móveis, mas nada superava o poder de imaginação exigido pelo “simulador”. Este, sim, batia o recorde em termos de “faz de conta”. Tente imaginá-lo: uma armação de madeira que imitava fielmente o formato dos painéis do posto do F/E sobre a qual se achava colada a reprodução fotográfica de todos os indicadores, luzes de aviso, chaves e interruptores. Manetes de mistura, compressor, aceleração, passo das hélices e demais controles faziam pouco mais do que dar um pouco de realismo à invenção da Lockheed.
Mesmo com boa vontade e poder de imaginação, era difícil executar as diversas etapas de uma operação normal, para não falar das numerosas situações de emergência. A partida de um motor é o melhor exemplo. O instrutor de pé ao lado ao aluno servia de interface entre este e a reprodução fotográfica e descrevia o que devia estar acontecendo, caso se tratasse de um Constellation de verdade. Era mais ou menos assim: “Selecionou o motor 3 e apertou o botão do respectivo motor de arranque. A hélice começou a girar e o motor ‘pegou’. A pressão de óleo está subindo, diz o instrutor apontando para o manômetro de óleo da foto, e assim por diante, à exaustão, repassando todas as operações comuns e emergenciais. Mas, no fim, iríamos aprender mesmo sentados nas aeronaves em terra e durante os longos voos regulares para Miami e, principalmente, Los Angeles.
Terminado nosso ground school e já na companhia dos comandantes, cuja familiarização foi muito mais curta, realizamos o voo de traslado para Congonhas fazendo escalas em Houston e Zanderij, na Guiana Holandesa. A chegada a São Paulo foi um evento em si, pois as três primeiras aeronaves saíram juntas de Burbank e foram autorizadas pela torre a realizar um rasante em formação para a alegria do grande número de parentes, amigos e funcionários tanto da Real quanto do próprio aeroporto, que nos aguardavam.
Convair 990A Coronado da Varig sendo finalizado na fábrica da Consolidated Vultee Aircraft, nos Estados Unidos
A partir de 1964, tive de deixar minha “escrivaninha de bordo” por motivos de saúde, o que criou as condições para embarcar também no Convair 990A como engenheiro de voo. Tive tempo suficiente para, mais uma vez, participar de um “ground school” e treinar nesta ave muito especial, tornando minha familiarização com a era do jato muito rápida.
A Consolidated Vultee Aircraft estava começando a fabricar na cidade de San Diego, Califórnia, o Convair 990A Coronado. O modelo quadrimotor, versão alongada do 880, tinha capacidade para 121 passageiros e era movido por quatro turbofans (os primeiros fabricados) GE CJ805-23 com 16.000 lb de empuxo cada, que conferiram ao Coronado a dúbia honra de ser o jato comercial mais veloz já fabricado, com uma velocidade de cruzeiro de 930 km/h e um máximo de quase 1.000 km/h – que por anos foi um recorde.
É claro que este desempenho se dava mediante o alto consumo de combustível. |Errosm sem fim no projeto e sua apresentação ao mercado levaram a produção de apenas 37 unidades, dos quais três vieram para o Brasil. O contrato inicial foi firmado pela Real, mas após a empresa ser absorvida pela Varig, eles foram “impostos” contratualmente à nova proprietária. A Varig não os desejava porque já operava os Boeing 707. Eu, então simples flight engineer no uniforme azul da Varig, me senti meio estranho diante do arejamento do meu novo "escritório" que julguei muito despojado. Nada de manetes de mistura, passo de hélice, sistema de ignição, compressores e componentes correlatos. A operação do F/E do Convair 990A não tinha comparação ao exercício da função no já saudoso Super-Constellation verde da Real, em que o engenheiro de voo atuava como um legítimo “gerente”.
Não demorou para a automação tornar obsoleta a profissão do engenheiro de voo. O bem sucedido 737 da Boeing foi um dos pioneiros em eliminar o terceiro tripulante na cabine. Nos anos 1980 era claro o final da profissão, os Boeing 757 e 767, assim como os Airbus A320, McDonnell Douglas MD-11, entre outros foram projetados sem o "gerente". Foi o fim de um era.
Redação
Publicado em 26/02/2020, às 07h00
+lidas