Os desafios em solo diante das novas normas para aviação geral e a urgência de um debate mais qualificado sobre segurança de voo de aeronaves leves
Lá pelos anos 1950, quando a Organização Internacional de Aviação Civil (ICAO, na sigla em inglês) passou a regular o novo segmento global de aviação civil, de fato, surgiram normas estabelecendo como as aeronaves deveriam ser projetadas, fabricadas, operadas e mantidas. Muito do conhecimento da época vinha da aviação militar, pois o cenário era de fim da Segunda Guerra Mundial e início tanto dos conflitos na Coreia quanto da Guerra Fria entre Estados Unidos e a então União Soviética. Nesse contexto, a segurança de voo esperada pelos militares era a que garantisse tão somente a realização de suas missões. Não se preocupavam com a longevidade de suas máquinas, tampouco em preservá-las de danos decorrentes das aplicações bélicas. A ICAO, por outro lado, tinha (e tem) consciência de que o transporte aéreo civil somente poderia ser útil às sociedades caso seguisse uma ordem de segurança, eficiência e agilidade. Daí surge o conceito de “aeronavegabilidade”.
Ele continua atual, mas as técnicas vêm se aperfeiçoando ao longo das décadas. No momento do projeto de uma aeronave, esse conceito se transforma em práticas que irão garantir a segurança das operações. Estabelecido tipo de aplicação do futuro helicóptero ou avião, são desenvolvidas as diversas plantas, definidos os materiais utilizados, delineados os ensaios de certificação, escritos os programas de manutenção e os manuais de operação, dentre outras tarefas. Na primeira fase, o projeto antevê todas as etapas de vida da aeronave. A complexidade está relacionada ao tamanho dela, à sua aplicação e aos sistemas que serão aplicados, existentes ou não. No Piper Matrix, por exemplo, foram aproveitados quase todos os sistemas do Piper Mirage, com ganhos de eficiência e economia. Isso reduz o trabalho e as despesas da fase seguinte, que é a certificação. Nesses casos, é natural que o novo projeto incorpore parte da documentação daquele do qual deriva, tais como o resultado de testes, manuais e boletins de serviços.
Quase o mundo todo segue os conceitos de projetos aeronáuticos dos EUA. As regulações da FAA são adotadas em muitos países, inclusive no Brasil. Não por acaso a RBAC 23 (Requisitos de aeronavegabilidade: aviões categoria normal, utilidade, acrobática e transporte regional) é cópia fiel de algumas partes da FAR 23, da FAA. Isso acontece porque os norte-americanos sabem ir à Lua, têm o mercado aeronáutico mais cobiçado do planeta e permitem que suas normas sejam copiadas.
O conceito de aeronavegabilidade também é aplicado às regras de certificação aeronáutica. Nessa fase, o produto aeronáutico, quer seja fuselagem, motor ou outro componente, vai ser submetido a testes. Para receber um certificado de aeronavegabilidade, deve provar que resiste aos esforços previstos. Mas a especificidade desses testes se altera de tempos em tempos, na medida em que surgem novos materiais, novas ensaios ou demandas de uso.
Tomemos como referência as células de aeronaves de pequeno porte. Desde os anos 1970 que o alumínio vem cedendo lugar para os materiais compostos na confecção de fuselagens. Os planadores Blanik, dos anos 1950, eram confeccionados de alumínio. Essa matéria-prima perdeu espaço para a fibra de vidro, como no Pik 20, dos anos 1970, ou no Puchacz, da década de 1980. Tradicionalmente, a resistência de célula era avaliada com vibrações, que reproduziam o voo, na tentativa de identificar pontos fracos, onde rachaduras poderiam surgir como resultado de fadiga do material. Já os materiais compostos são vulneráveis a outros fatores, como raios ultravioleta, provenientes do sol. Portanto, os ensaios tiveram de ser alterados.
Atendidos os requisitos de aeronavegabilidade nos ensaios de certificação, o projeto recebe da FAA um certificado chamado “Type Certificate”. Os “TC”, como são conhecidos, podem ser encontrados no site da Anac e da FAA e traduzem a identidade de um produto aeronáutico certificado. O produto amparado por um TC não pode ser modificado, a não ser por meio de novos testes que comprovem que a alteração não trará consequências perigosas. Um motor Lycoming O-540 B4B5 citado no TC com um carburador não pode receber bicos injetores, sob a pena de perder o amparo da legislação, como seguro aeronáutico e autorização de voo.
As regras gerais de manutenção estão contidas no RBAC 43 da ANAC
Os requisitos de aeronavegabilidade presentes no momento da concessão do TC precisam ser continuados após a entrega do produto aeronáutico ao consumidor. O que garante essa continuidade são os processos de manutenção, rastreabilidade de componentes e o sistema de notificação de dificuldades em serviço. A responsabilidade civil e criminal de preservar a aeronavegabilidade não é da empresa de manutenção, nem do dono da aeronave, mas, sim, do operador. Aviões arrendados, por exemplo, são operados por quem não é proprietário do bem. Os nomes de proprietário e operador, pessoas físicas ou jurídicas, constam no RAB (Registro Aeronáutico Brasileiro) e vêm sempre explicitados na documentação de porte obrigatório. Por isso é importante que o operador conheça os requisitos de manutenção de sua aeronave. Eles podem ser obtidos nos manuais de operação e de manutenção. As regras gerais são encontradas na RBAC 43 (Manutenção, Manutenção Preventiva, Reconstrução e Alteração).
O conceito de aeronavegabilidade continuada não aceita o fim da vida de uma aeronave. Seguidos todos os itens dos manuais de manutenção, as corretas técnicas de reparos e a atualização do projeto por meio da aplicação dos boletins e diretrizes de aeronavegabilidade (DA), a existência de uma aeronave não se extingue jamais.
A prática de aeronavegabilidade continuada também necessita de um sistema de fluxo de informações que ligue o fabricante, o operador e a autoridade aeronáutica do país de registro da aeronave. O sistema se inicia nos manuais das empresas que prestarão serviços de manutenção. A autoridade aeronáutica deve realizar vistorias para se certificar de que possuem os tais manuais, que sejam lidos pelos mecânicos, que recebam atualizações periódicas e que pertençam aos modelos para os quais a empresa presta serviços. Tarefa árdua para os inspetores da Anac, que frequentemente não os encontram, ou os localizam ainda lacrados em envelopes ou guardados em armários. Difícil também a tarefa da empresa de manutenção em mantê-los atualizados, já que certos modelos de aeronaves, como alguns aviões Cessna movidos a pistão, estão no mercado há mais de 50 anos, em dezenas de variantes do projeto pioneiro.
No cotidiano das operações é possível que alguma peça se danifique antes do tempo, alguma técnica de manutenção se mostre ineficaz ou haja falha de algum material, que não resistiu ao esforço previsto. Quem detectar algum problema deve avisar toda a comunidade de aviação. Assim, estarão contribuindo para a preservação da aeronavegabilidade do modelo que operam. Mas como fazer isso?
No segmento automotivo, quando muitos donos de carros novos reclamam de defeitos, os fabricantes revisam os projetos e podem disparar um chamamento aos clientes para a substituição do componente defeituoso. O processo é conhecido como recall. Na aeronavegabilidade continuada, ocorre algo parecido. O chamamento pode ser realizado pela autoridade aeronáutica do país de registro, daquela que produz a aeronave ou, ainda, pelo fabricante do componente, em qualquer época, mesmo após o período de garantia. Para a identificação dos problemas, há um sistema mundial de retroalimentação de informações, chamado Dificuldades em Serviço. No Brasil, a Anac mantém em seu site um campo para que operadores e mantenedores relatarem suas dificuldades.
A pessoa deve entrar em sua conta no sistema SACI, da Anac, e acessar o link SINTAC (Sistema Integrado de Informações de Aviação Civil). Nele poderá relatar o que aconteceu no voo, no solo ou na oficina. Esse registro será cruzado com outros de mesmo tipo, por todo o mundo, via ICAO, e, se a ocorrência for reincidente, uma providência poderá ser disparada pela autoridade aeronáutica que gere o sistema. Esse cruzamento de informações tenta avaliar a necessidade de algum “recall”. Então, uma nova diretriz de aeronavegabilidade poderá ser publicada pela Anac, ou um boletim de serviço, editado pelo fabricante.
A falta de suprimento no interior do país fez desenvolver a cultura da improvisação
Infelizmente, o número elevado de acidentes de aviação geral no Brasil tem deixado claro que a aeronavegabilidade continuada ainda é uma ilustre desconhecida. E há muitas barreiras à correta operação das aeronaves. Oficinas não encontram mecânicos com competências na língua inglesa e os manuais de manutenção, quando existem, são esquecidos num canto qualquer. Se estiverem em formato digital, a coisa complica. Exigem computadores nas oficinas e alguma habilidade extra para operá-los. Mecânicos normalmente sabem substituir velas de ignição, mas experimente perguntar qual deve ser o torque do aperto... Muitos modelos de aeronaves e algumas de suas peças já não são fabricados e, portanto, ficam sem suporte ou atualização técnica. Além disso, a falta de suprimento de aviação pelo interior do Brasil fez desenvolver uma cultura de improvisação. A era do garimpo deixou sequelas que se manifestam até hoje. É comum achar aviões antigos, cujos sistemas receberam modificações sem qualquer estudo de engenharia. São cilindros reparados com soldas superficiais, velas com eletrodos dobrados no martelo, hélices desempenadas após terem colidido com o chão, corrosão, equipamentos que consomem energia além da capacidade dos alternadores, dentre outros perigos.
E o que se pode dizer sobre a aeronavegabilidade continuada de aeronaves experimentais? Nada! Porque experimentais não possuem aeronavegabilidade em nenhum de seus processos de projeto, fabricação, manutenção ou operação. São aeronaves cuja autorização limita o voo, ao próprio operador. Portanto, não podem realizar nenhum serviço profissional a terceiros e os passageiros devem estar cientes dessa situação. Daí porque a obrigação de o operador em avisá-los, mantendo fixada uma placa no painel com o alerta da falta de aeronavegabilidade.
Mas isso não quer dizer que a operação de experimentais seja, por natureza, mais arriscada. É preferível a segurança de um experimental bem mantido do que uma aeronave certificada com manutenção “canetada”. Mas como manter um experimental? Afinal, não possuem manuais de manutenção, boletins de serviço, diretrizes de aeronavegabilidade, relatos de dificuldades em serviço e vários outros benefícios desenvolvidos pela ICAO, como a investigação de acidentes e processos de aprovação de grandes modificações.
Por tudo isso, atualmente, a Anac vem alterando as normas de fabricação de experimentais em série. A intenção é incluir a aeronavegabilidade na produção, e a aeronavegabilidade continuada na operação e na manutenção de todas as aeronaves nacionais. Mas a agência pretende manter as autorizações de voo para aeronaves construídas pessoalmente, por indivíduos que queiram voá-las sem aeronavegabilidade. Respeita-se, assim, um princípio de liberdade de pesquisa aeronáutica e uso recreativo limitado.
Nos Estados Unidos, milhares de construtores amadores produzem aeronaves em casa, quer pelo uso de kits ou em projetos próprios. É comum o cidadão norte-americano encher sua garagem de equipamentos e ferramentas, a ponto de deixar o carro do lado de fora. Quem já viajou para aquele país deve ter se espantado com o gigantismo das seções de ferramentas dos grandes magazines e com lojas de materiais ao estilo pegue e faça.
No Brasil, a coisa é um pouco diferente. Respeitando-se as exceções, não temos a cultura da construção amadora, não mantemos grande ferramental em casa e consumimos nosso final de semana com outros “divertimentos”. Então, a grande maioria que opera aeronaves experimentais não as construiu e não tem condições de realizar a manutenção. Tem de confiar isso a alguém. Mas como alguém poderia atendê-los bem? A primeira condição para a prestação serviços de manutenção em aeronaves que não possuem desenhos técnicos, manuais ou diagramas elétricos é a experiência na sua construção. Portanto, é razoável esperar que o operador de um experimental eleja a oficina do próprio fabricante. Alguns modelos, como o Vans RV10, são fabricados por várias empresas no Brasil. Daria certo confiar à empresa “A” a manutenção de um RV10 construído pela empresa “B”? Depende! Os modelos RV10 brasileiros são equipados com o mesmo motor, e possuem os mesmos sistemas, a despeito de algumas variantes de projeto. Podem ser equipados com diferentes tipos de hélices ou aviônicos, escolhidos pelo proprietário. Esses componentes foram produzidos por indústrias altamente especializadas, como Lycoming, Garmin, Hartzell, Dynon, dentre outras, e contam com publicações técnicas fartas. É por meio delas que o mantenedor espera realizar um bom serviço. Ao operador, cabe conversar com a oficina e perceber o nível de capacitação esperado. Essa incumbência seria da Anac, no caso da avaliação de oficinas para aeronaves homologadas.
Abrafal passou a controlar os relatórios de inspeções anuais de manutenção (RIAM)
Como a comunidade de experimentais poderia trocar experiências? Precisamos estar cientes de que, hoje, os problemas enfrentados pelos experimentais são digeridos apenas no âmbito de seus fabricantes. Ampliado esse ambiente, novas experiências e soluções externas surgiriam. É o que faz a AOPA, dos EUA. Essa associação de pilotos é a maior do mundo e concentra cerca de 250.000 sócios. Presta inúmeros serviços relevantes, estudando os cenários mais comuns onde seus associados voam. Há pesquisas de segurança de voo, cursos on-line, fóruns e assim por diante. Nos Estados Unidos, o usuário de uma pequena aeronave, certificada ou experimental, prefere se amparar na associação, em vez de fazê-lo na FAA. No Brasil, há várias associações de operadores. Recentemente a Abrafal (Associação Brasileira de Fabricantes de Aeronaves Leves) passou a controlar os relatórios de inspeções anuais de manutenção (RIAM). Cada RIAM somente será aceito pela Anac se estiver publicado no site da Abrafal, que o fará após diligências que avaliam a qualidade do serviços de quem os assinou.
Ainda assim, há um vasto campo de troca de informações que o segmento de experimentais poderia empreender. Essa percepção já começa a tomar forma na medida em que os diversos encontros de aviação leve, que ocorrem em todo o país, começam a trazer debates, palestras e fóruns sobre os problemas do segmento. Muitos participantes são atraídos por temas relacionados à operação segura. Oxalá que prosperem.
Já a Anac, em estreita parceria com a Abrafal e outras entidades representativas, vem desenvolvendo novas regulações que façam que a fabricação de experimentais em série vá dando lugar a aeronaves de mesma compleição, agora certificadas por processo mais simples e de menor custo.
Por Jorge Filipe Almeida Barros
Publicado em 14/07/2014, às 00h00
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