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Desafio Sonoro

Júlio A. Cordioli (UFSC) explica como reduzir o ruído de eVTOL na mobilidade aérea urbana

Professor da UFSC e especialista em acústica aeronáutica detalha os desafios de ruído dos eVTOL e drones, além das soluções técnicas e regulatórias


Aviação elétrica pode representar o futuro, mas ruído urbano ainda desafia mobilidade aérea - Isadora Cristina/Agecom/UFSC
Aviação elétrica pode representar o futuro, mas ruído urbano ainda desafia mobilidade aérea - Isadora Cristina/Agecom/UFSC

A eletrificação da aviação deixou de ser promessa e entrou na fase de protótipos e pré-certificação: de drones de entrega a eVTOL para transporte urbano, passando por aviões regionais elétricos. O objetivo é cortar emissões — a aviação civil responde por cerca de 3% do CO₂ global. O avanço, porém, expõe um desafio imediato nas cidades: o ruído gerado por múltiplas hélices e rotores, capaz de alterar a paisagem sonora urbana.

Para analisar esse cenário, a AERO Magazine entrevistou Júlio A. Cordioli, professor associado do Departamento de Engenharia Mecânica da UFSC, especialista em ruído e vibrações com experiência internacional em Cambridge, EMBRAER e ESI Group.

Ele participou do Inter-Noise 2025 – International Congress & Exposition on Noise Control Engineering, em São Paulo, na última quarta-feira (27), com o tema "Como o ruído das aeronaves elétricas pode redesenhar o som das cidades".

Cordioli explica os critérios técnicos e regulatórios em estudo, os desafios de aceitação pública e as soluções de design capazes de mitigar o impacto acústico da mobilidade aérea elétrica.

  • Como as cidades, especialmente as densamente povoadas como São Paulo, devem planejar a infraestrutura para integrar essa nova camada de mobilidade aérea com eVTOL e drones sem comprometer a qualidade de vida?
    A palavra-chave é planejamento. Temos dois cenários distintos: a mobilidade urbana de pessoas, envolvendo os eVTOL, e os drones voltados para logística. No caso dos eVTOL, o ponto inicial será o desenvolvimento dos chamados vertiportos — estruturas semelhantes a heliportos, mas adaptadas a esse novo tipo de aeronave. A localização desses espaços precisa ser cuidadosamente planejada, avaliando impactos na vizinhança, cadência de pousos e decolagens e os níveis de ruído. Simulações podem prever esses efeitos e indicar os locais mais adequados para instalação

  • E no caso específico dos drones de logística urbana, quais medidas seriam prioritárias?
    A prioridade é regulamentar zonas de operação. Algumas cidades estudam criar “vias aéreas” específicas, como sobre corredores de alto ruído (marginais ou grandes avenidas), de modo que o som adicional dos drones não se destaque no ambiente já ruidoso. Também é possível estabelecer limites máximos de ruído como condição para operar

  • Basicamente a mesma ideia dos corredores de helicópteros existentes em São Paulo...
    Sim, essa lógica já existe na aviação tradicional e pode ser adaptada a drones e eVTOL

  • Já existem estudos ou critérios para medição e controle de ruído para os eVTOL e outros veículos de mobilidade aérea urbana?
    Há estudos em andamento para definir como regular essas aeronaves maiores em operação urbana. A FAA [agência de aviação civil dos EUA], em parceria com a NASA, conduz grupos de trabalho que discutem parâmetros específicos

  • E quais desses parâmetros podem servir de referência?
    É provável que sejam adotados critérios semelhantes aos da aviação tradicional, mas adaptados à realidade dos eVTOL, já que as trajetórias e fases de voo diferem bastante

  • Como a operação de eVTOL difere da de helicópteros em termos de ruído?
    As métricas usadas para helicópteros servem de referência, mas a frequência e intensidade de operações dos eVTOL serão maiores, exigindo parâmetros de monitoramento próprios. Tanto o nível de ruído emitido pela aeronave quanto os limites aplicáveis aos vertiportos precisarão ser estabelecidos de forma diferenciada

  • Além dos aspectos técnicos e regulatórios, quais são os principais desafios sociais e de aceitação pública em relação ao ruído da aviação eletrificada?
    A resistência inicial é natural diante de uma nova fonte sonora. As pessoas já convivem com ruídos intensos na cidade — rodovias, trens, ônibus —, mas a introdução de um som inédito gera estranhamento. O receio aumenta quando essa fonte está no céu, passando sobre casas, com a percepção de risco associado

  • A percepção do som também interfere na aceitação social? Como comunicar a segurança dos eVTOL?
    O caminho é a conscientização. É preciso mostrar à população como os eVTOL funcionam, quais medidas de segurança existem e de que forma eles diferem dos helicópteros. A propulsão distribuída, por exemplo, garante redundância: se um rotor falhar, outros assumem, tornando a aeronave potencialmente mais segura que os helicópteros. Empresas, fabricantes e autoridades precisarão atuar em conjunto para educar e engajar a sociedade, reduzindo essa resistência

  • Do ponto de vista da engenharia quais são os principais desafios técnicos para mitigar o ruído gerado por múltiplos rotores em aeronaves como os eVTOL?
    O ruído de hélices já é estudado há décadas, mas os eVTOL introduzem configurações inéditas. A maioria dos fabricantes — Joby, Archer, Vertical, além da Eve da Embraer — utiliza multiplas hélices. O caso da Lilium, que apostava em mini fans elétricos, é exceção, e o projeto está suspenso. O desafio é lidar com a interação entre múltiplas hélices e a própria estrutura da aeronave. As esteiras de ar podem incidir sobre fuselagens ou outros rotores, gerando turbulências que afetam desempenho e ampliam o ruído

  • Quais fases do voo, além de decolagem e pouso, de um eVTOL tendem a ser mais ruidosas?
    A trajetória também influencia. Fases de transição, como a aproximação com rotores sustentando e propulsionando a aeronave ao mesmo tempo, tendem a ser particularmente ruidosas. Esses fatores exigem simulações numéricas complexas para prever fenômenos aerodinâmicos e desenvolver soluções de mitigação. Diferentemente dos liners acústicos aplicados em turbofans de aviões comerciais, os eVTOL ainda carecem de soluções consolidadas, demandando novas estratégias de controle de ruído

  • Quais tecnologias ou soluções de design estão sendo pesquisadas e desenvolvidas para tornar as aeronaves elétricas menos ruidosas?
    A mitigação passa por escolhas de projeto. Parâmetros como a distância entre hélices, a separação entre hélices e fuselagem, e a relação entre diâmetro e rotação por minuto (RPM) influenciam diretamente o ruído. Hélices muito próximas interagem e geram mais barulho; maior afastamento em relação à fuselagem tende a reduzir a emissão

  • Contudo, um maior afastamento pode prejudicar o desempenho. Existe um meio termo para reduzir o ruído sem comprometer a capacidade dessas aeronaves?
    Em quase todos os casos, há trade-offs: reduzir o ruído implica perda de performance. Operar a hélice em rotações mais baixas, por exemplo, pode diminuir a intensidade sonora, mas compromete a eficiência. Ainda assim, estudos avançam para encontrar configurações que equilibrem desempenho e silêncio, mesmo que a prioridade dos operadores muitas vezes seja a performance

  • O ruído percebido por uma pessoa no solo não é apenas intensidade, mas também frequência e padrão. Nesse caso como garantir que o som dessas aeronaves seja o menos intrusivo possível, considerando a paisagem sonora urbana?
    A redução de decibéis não garante, por si só, menos incômodo. Por isso, além da análise física, há um esforço de avaliação subjetiva. Em experimentos, os ruídos são reproduzidos para grupos de pessoas, que avaliam o nível de incômodo. A partir daí, métricas específicas são aplicadas ao design e ao planejamento urbano. Essa abordagem permite não apenas reduzir a intensidade, mas também ajustar características que tornam o som menos intrusivo. Mudanças no espectro — deslocando sons de graves para agudos, por exemplo — ou na modulação do ruído — suavizando oscilações de intensidade — essa abordagem é uma forma eficaz de trabalhar com as complexidades da percepção humana do som.

Por Marcel Cardoso
Publicado em 25/08/2025, às 18h03 - Atualizado em 02/09/2025, às 12h00


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