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Aviação Experimental

Ameaça real?

A polêmica em torno dos voos de aeronaves experimentais sobre áreas densamente povoadas


Aeronaves experimentais podem voar em densamente povoadas se a operação for autorizada pela Anac

A aviação revolucionou os transportes e a forma como humanidade vem interagindo. Mais que meros meios de “leva e traz” de pessoas e coisas, aviões e helicópteros deram ao mundo novos padrões de eficiência e segurança, os quais servem de inspiração para inúmeros outros setores econômicos. Desde seu princípio, voar significou empreender estudos, criar bases científicas e inovar, o que se dá até o presente. Assim, a aviação é o meio de transporte mais seguro que há, o que representa não apenas a proteção de quem está voando, mas também daqueles que são sobrevoados.

O elevado índice de segurança nas operações aéreas se traduz na padronização mundial de normas e procedimentos voltados ao voo. A uniformização dos processos também facilitou a criação de uma cultura de segurança, dentro da qual quaisquer acidentes ou incidentes repercutem imediatamente no seio da comunidade aeronáutica. Na prática, os aviadores aprenderam que a prevenção e a análise de eventuais erros ou falhas devem ser prontamente incorporadas em seu dia a dia na forma de um aprendizado contínuo.

O céu e a terra

A segurança da aviação começa no solo, ponto de partida para suas operações. Muitas dessas bases, criadas no Brasil principalmente a partir das décadas de 1920 e 1930, seguem em operação. É o caso dos aeroportos Campo de Marte e de Congonhas, ambos na capital de São Paulo, que foram fundados em 1929 e 1936, respectivamente. O grande boom da criação de aeroportos e aeródromos, porém, aconteceu nasdécadas de 1940 e 1950, com o lançamento de programas como “Asas para o Brasil” e “Marcha para o Oeste” e a construção de Brasília, tudo fomentado pelo excedente de aeronaves provenientes da Segunda Guerra Mundial e pelo interesse em se promover a atividade aeronáutica, o que consolidou a integração do país. Contudo, se nos céus tivemos a ordem, no solo, veio o caos.

Enquanto a aviação se vale de normas e regras rígidas, padronizadas internacionalmente para operar e existir, o poder público, que tanto preza pelas regras no ar, negligencia o solo, permitindo o que há anos vem acontecendo na terra.

O descaso com normas de zoneamento urbano e o estímulo à especulação imobiliária predatória fizeram com que os principais aeródromos e aeroportos do país, originalmente localizados em áreas distantes e isoladas, tivessem seus arredores usurpados sem o menor pudor pelas municipalidades, sem que estas observassem as regras de segregação necessárias, que sempre existiram (e existem até hoje), mas que são deliberada e impunimente colocadas ao largo.

Campo de Marte é o berço da aviação geral paulista e um importante aeroporto para a cidade de São Paulo

Éevidente que as cidades tomaram os espaços de aeródromos e aeroportos sem qualquer contrapartida ou observação às regras relacionadas às áreas de segurança aeroportuárias ou à sua própria legislação ambiental. Hoje em dia, muitos municípios, como São Paulo (SP), Belém (PA), João Pessoa (PB) e Belo Horizonte (BH), após aviltarem os terrenos circunvizinhos às pistas de pouso, acabam por requisitarem seu fechamento, alegando questões de “segurança”, pois as operações daqueles sítios aeroportuários estariam colocando em “risco” seus munícipes.

Diferentes categorias

A aviação se divide em diversos ramos. O transporte regular recebe a maior parte dos holofotes, pois opera aproximadamente 670 grandes aeronaves que, no Brasil, em tempos normais, transporta mais de cem milhões de pessoas anualmente, interligando cerca de 120 localidades.

Tão importante quanto a aviação regular são os táxis-aéreos, incluídos no ramo da aviação geral e que também operam voos comerciais interligando milhares de localidades e plataformas de petróleo, fazem evacuações médicas (primordial em época de pandemia) e são os únicos autorizados a transportar passageiros e cargas de maneira não regular e remunerada. Eles operam aproximadamente 1.300 aeronaves.

Por fim, também na aviação geral, há os operadores de serviços aéreos privados, que, apesar de utilizarem basicamente os mesmos tipos de equipamentos dos táxis-aéreos, operam voos quenão podem ser remunerados por seus usuários. Nessa categoria, estão inseridas aproximadamente 14.100 aeronaves certificadas e outras 6.011 experimentais.

A aviação geral privada abarca o transporte aéreo particular de cargas e passageiros, a aviação agrícola, a formação de pilotos e os voos recreativos e desportivos. Mas, das 22.278 aeronaves em operação no Brasil, cerca de 32% estavam em 2019 com seu certificado de aeronavegabilidade suspenso ou cancelado, o que significa que 7.128 estavam de alguma forma inaptas ao voo.

Acidentes e incidentes

Mais importante que a quantidade de aeronaves da frota nacional, temos a qualidade nas operações. No Brasil, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) receberam mais de 95% de conformidade, segundo os padrões da Organização da Aviação Civil Internacional (Icao, na sigla em inglês).

Segundo o Centro Nacional de Investigação e Prevenções de Acidentes (Cenipa), onúmero de acidentes aeronáuticos vem caindo desde 2013 no país, sendo que o ano de 2019 teve a menor quantidade de ocorrências da década de 2010, com 102 no total, das quais 18 foram com fatalidade, resultando em 28 óbitos em todo o país. Portanto, os números mostram que a aviação é uma atividade segura e que, apesar dos acidentes, a incidência de vítimas que estavam no solo é rara.

Mesmo sendo raros, os acidentes aeronáuticos, quaisquer que sejam, causam uma grande comoção, especialmente quando se dão próximos ou dentro de áreas urbanas. Por sua volta, os governos, sobretudo os municipais, usam essas tragédias para inflar seus argumentos em detrimento dos sítios aeroportuários.

Apesar das estatísticas demonstrarem o contexto em prol da segurança, nos últimos tempos, estabeleceu-se uma polêmica sobre os “voos em áreas densamente povoadas”, discussão já presente no atual Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7565/1986), que, em seu artigo 15, parágrafo 1º, dispõe: “A prática de esportes aéreos tais como balonismo, volovelismo, asas voadoras e similares, assim como os voos de treinamento, far-se-ão (sic) em áreas delimitadas pela autoridade aeronáutica”.

Os experimentais

Talvez pelo fato de boa parte das aeronaves desportivas estar inserida na categoria “experimental”, o novo RBAC/ANAC 91 trouxe em seu bojo a vedação, por exceção, da operação de aeronaves com certificado de voo experimental (CAVE), dizendo em seu subitem 91.319, letra “c”: “Somente é permitido operar uma aeronave com CAVE sobre áreas densamente povoadas se tal operação for autorizada pela Anac e em conformidade com as regras do Decea”.

Assim, em um primeiro momento, diversos operadores de experimentais, independentemente do modelo de suas aeronaves ou da forma como foram fabricadas ou montadas, viram-se expulsos de suas bases, quaisquer que fossem, pois, segundo a terminologia empregada pelo RBAC 1: “Área congestionada ou área densamente povoada significa, em relação a uma cidade, vila ou povoado, uma área substancialmente usada para fins residenciais, comerciais ou recreativos”.

Não háuma fórmuladensimétrica conhecida capaz de determinar se uma área seria densamente povoada ou não. Contudo, aeródromos localizados em centros metropolitanos ou incrustrados em qualquer cidade podem ser classificados como dentro de uma “área densamente povoada”, sendo, portanto, vetado o voo de aeronaves não certificadas.

Em seguida, passou-se à discussão sobre como seria conceituada uma “aeronave experimental”. Apesar da obviedade de não terem o seu processo de produção certificado pela Anac, para obter seu CAV ou CAVE, elas devem passar pelo processo descrito na IS 21.191-001A. Já aquelas aeronaves que são construídas por seus proprietários, em todo ou em parte, ou por meio de kits, é que se enquadrariam na presente polêmica, com a exclusão das demais.

Pela atual regra do RBAC 91, os balões tripulados também estão proibidos de sobrevoar locais “densamente povoados”, o que os exclui de operar sobre qualquer cidade ou aglomerações rurais que assim se autodeterminem, o que vem trazendo grande apreensão ao balonismo e a todo a comunidade do aerodesporto.

Percebendo a necessidade de se discutir melhor toda a situação, a Anac lançou a Consulta Setorial Nº 01/2020 – IS 91.319-001A, que recebeu 326 contribuições. Agora, as considerações estão sendo analisadas e processadas pela agência.

Voo simples...

O lançamento do Programa Voo Simples pelo governo federal trouxe a esperança de que a aviação brasileira, dentro dos padrões aceitáveis de segurança, seja ao máximo desburocratizada. E que seja implementado em relação à aviação experimental o que foi determinado ainda em 2009, pelo Decreto nº 6.780/2009 ou Política Nacional de Aviação Civil: “Reconhecer a especificidade e promover o desenvolvimento das atividades de aviação agrícola, experimental e aerodesportiva, desenvolvendo regulamentação específica para os setores e estimulando a difusão de seu uso”.

Segundo o Cenipa, nos últimos 10 anos, não se constatou nenhum óbito a terceiros em solo em decorrência de acidentes com aeronaves da categoria experimental, que respondeu entre 2010 a 2019 por cerca de cinco por cento do total de acidentes, categorizados pelo segmento da aviação da aeronave.

O debate sobre áreas densamente povoadas se revela importante e vem reafirmando a necessidade da elaboração e consequente aplicação de uma política inclusiva em relação às aeronaves experimentais e esportivas. Uma política que busque primar por sua segurança. Os operadores devem participar ativamente de todo o processo, não apenas como ouvintes, mas também como atores, o que, aliás, promete ser o mote do Programa Voo Simples, pois as autoridades fiscalizam e regulamentam a atividade, mas são os particulares que a desenvolvem e fazem as coisas acontecerem.

* Georges Ferreira é advogado, consultor e professor de Direito Aeronáutico Nacional e Internacional e Marina Posch Kalousdian é presidente do Instituto do Aerodesporto Brasileiro (ADB).

Por Georges Ferreira e Marina Posch Kalousdian*, especial para AERO Magazine
Publicado em 12/02/2021, às 12h00 - Atualizado às 13h59


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