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Transporte aéreo polar

Brasil adota aviões para levar tanto cientistas como o módulo de pesquisa para acessar o interior da Antártica


Foto: Arquivo pessoal / Marcelo Sampaio
Twin Otter C-GXXB com esqui, da Kenn Borek Air, usado no transporte dos pesquisadores ao continente geladodezembro

O uso de transporte aéreo representou um marco histórico para o Programa Antártico Nacional, mais conhecido como Proantar. A implantação do módulo Criosfera 1 sobre o gelo do planalto polar, a 84º de latitude sul e 1.270 metros de elevação, e a contratação de aviões para o traslado mudou a vida dos cientistas brasileiros, antes limitados em grande parte a trabalhar numa ilha a 130 km da costa mais próxima do continente. Agora, eles podem atuar na verdadeira Antártica e pesquisar as relações entre o seu vasto manto glacial com a atmosfera terrestre.

Desde 1984, o Proantar contava com uma base permanente, a Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), instalada na ilha do Rei George (latitude 62º S), e mantida com o apoio da Marinha e da Força Aérea Brasileira. Atualmente, este apoio concentra-se na demolição e reconstrução da EACF, destruída por incêndio em fevereiro de 2012, e que custou a vida de dois militares. O novo projeto, completado com a reocupação do Criosfera 1 entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano de 2013, além de expandir a área de atuação geográfica do Proantar, representa significativa inovação tecnológica. Trata-se de um módulo, nas medidas padrão de um contêiner, construído pela empresa sueca Belco, que funciona como uma plataforma autônoma e automática, alimentada por geradores eólicos e painéis solares, para coleta de dados e amostras de ar, emitindo as medições pelo satélite Argos. Os sistemas de instrumentação eletrônica e programas de computador foram criados por pesquisadores brasileiros.

As dimensões do módulo permitiram seu transporte primeiro por aeronave cargueira Ilyushin-76 de Punta Arenas, no Chile, até o campo turístico de Union Glacier (latitude 80º Sul, em 4,5 horas de voo), nas montanhas Ellsworth, e dali por reboque sobre esquis até a posição pré-determinada (84º Sul, ou seja, 670 km do Polo Sul geográfico). Já o transporte dos pesquisadores no trecho até o módulo é feito em 2,5 horas por aviões Twin Otter providos de esquis.

O Criosfera 1 foi reocupado pela primeira vez entre 13 de geladodezembro de 2012 e 2 de janeiro de 2013, por uma equipe de quatro pesquisadores brasileiros: Heitor Evangelista da Silva, físico e coordenador do projeto, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro); Marcelo Sampaio e Heber Reis Passos, do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais); e Franco Nadal Junqueira Villela, do INMET (Instituto Nacional de Meteorologia).

Acostumados a desembarcar de bote inflável, empurrando blocos de gelo flutuantes e enfrentando ondas para alcançar terra, na Estação Ferraz, os pesquisadores desta vez tiveram mais conforto. O Twin Otter deixou-os praticamente na porta de casa, próximo ao módulo, juntamente com 900 kg de bagagem, incluindo as barracas em que viveriam durante aqueles 21 dias.

GELO AZUL
A logística antártica, sempre um grande desafio operacional por conta das grandes distâncias, das adversidades naturais do meio ambiente e da falta de aeródromos permanentes, sofreu verdadeira reviravolta com a descoberta das áreas de gelo azul no interior do continente e sua utilização como pistas de pouso praticáveis para aeronaves com trem de pouso convencional, de rodas. Embora a descoberta original se deva a pilotos da marinha dos EUA e técnicos do laboratório de regiões frias do exército norte-americano, na década de 1970, sua utilização pela aviação deve-se ao arrojo e empreendorismo de aviadores privados, principalmente canadenses, com assessoria de glaciologistas britânicos. Até a década de 1980, os Hércules C-130 providos de esquis dominavam as operações sobre o gelo no interior do continente, mantidas pelos programas governamentais de pesquisa dos Estados Unidos e de outros países. Aeronaves menores, como Twin Otter (DHC-6) e Dornier 228, e até DC-3 ou IL-12, tinham um papel auxiliar. Em novembro de 1961, vivi uma parte da história do emprego pioneiro dos C-130 com esquis na Antártica, voando a convite da marinha dos EUA, com pousos nas bases de McMurdo, Byrd e Amundsen-Scott, esta no Polo Sul geográfico (veja AERO nº 34, de mar/99).


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Gelo azul é uma forma pura de gelo, sem camadas de neve por cima. É gelo do manto antártico profundo, formado a baixas temperaturas e forte pressão, que aflora na superfície em movimento ascendente, junto a barreiras de 227montanha. Nele ventos constantes varrem a pouca neve que cai. É também nas áreas de gelo azul que afloram, junto com o gelo, os famosos meteoritos antárticos, alguns de origem lunar ou marciana.

Em 1984, um pequeno grupo de pilotos e veteranos de expedições antárticas criou no Canadá a Adventure Network International (ANI), empresa comercial tendo como objetivo levar qualquer pessoa, turista ou cientista, ao interior da Antártica, em segurança e a um preço acessível. Foram três anos de luta, enfrentando descrédito geral, incluindo o de governos dos países com programas antárticos oficiais, até a ANI colocar o empreendimento em bases comercialmente viáveis. Inicialmente, foi utilizado um Twin Otter com rodas e esquis alugado da Kenn Borek, transportando grupos de alpinistas de Punta Arenas ao monte Vinson, o mais alto da Antártica (4.897 m), situado na cordilheira Sentinel, parte das Montanhas Ellsworth. Depósitos de combustível foram estabelecidos ao longo da rota dos Twin Otter (onde faziam escalas intermediárias), e um C-130 da Força Aérea Chilena alugado para lançar barris de combustível por paraquedas ao lado das montanhas Ellsworth, onde foi estabelecido um acampamento de apoio. Mas logo ficou comprovado que a operação com Twin Otters, de curto alcance e limitados a oito passageiros por vez, só se pagaria caso fosse possível um voo direto de Punta Arenas a este acampamento, denominado Patriot Hills (80ºS 81ºW, altitude 882 m). Isso em grande parte devido ao custo do combustível colocado em Patriot Hills - 50 vezes maior do que em Punta Arenas.

NAS PISTAS DE GELO OU NEVE, É ESSENCIAL A INFORMAÇÃO SOBRE A DEFINIÇÃO E CONTRASTE DO HORIZONTE

Foi então que surgiu a idéia de utilizar o gelo azul como pista para aviões de grande porte com rodas. O piloto chefe da ANI, Giles Kershaw (veterano de trabalhos com o programa antártico britânico), e seu amigo Charles Swithinbank, famoso glaciologista do Reino Unido, após um estudo de imagens de satélite, fizeram em dezembro de 1986 um extenso levantamento aéreo com Twin Otter, em busca de locais adequados a pistas em áreas de gelo azul. Identificados os locais, pousaram e fizeram levantamentos topográficos, medindo pistas, declividades longitudinais e transversais etc. Pousando com rodas, comprovaram excelentes propriedades de frenagem.

JATOS DESCARTADOS
Apesar dos resultados encorajadores do levantamento, logo ficou claro que nenhum governo estaria disposto a colocar em prática o pouso de aviões de grande porte em pistas de gelo azul, até que o conceito fosse provado na prática; a própria U.S. Navy havia desistido da idéia, depois de experiências malsucedidas. A ANI procurou a Kenn Borek, que topou o desafio. Jatos foram descartados. Em vez deles, um DC-4 foi comprado, com seguro de 25 milhões de dólares, para um voo comercial entre Punta Arenas e Patriot Hills. Entre novembro de 1987 e janeiro de 1988, o DC-4 fez 12 voos entre Punta Arenas e o campo de Patriot Hills, transportando passageiros, tambores de combustível e outros materiais.

O primeiro voo enfrentou tempo desfavorável na ida e durou 11 horas e 43 minutos. Ao mesmo tempo, os 32 turistas foram levados de Twin Otter (apoiado por um Cessna 185!) em cinco voos de ida e volta até a base americana no polo sul geográfico, distante 1.080 km. Abria-se, assim, definitivamente, uma nova era na logística antártica. O campo de Patriot Hills foi substituído pelo de Union Glacier, cerca de 70 km a oeste, e a linha aérea aberta pela ANI, atualmente uma subsidiária da Antarctic Logistics & Expeditions (ALE), com sede em Salt Lake City, nos EUA, continua prosperando. Nem por isso voar na Antártica deixa de ter seus riscos. Dia 23 de janeiro último, um Twin Otter da Borek, com três tripulantes, bateu num pico das Montanhas Transantárticas a 3.900 m de altura, em voo da base Amundsen-Scott para a base italiana da baía Terra Nova, onde iria recolher pesquisadores. Foi provavelmente um erro de navegação em condições por instrumento, e não houve sobreviventes. Nesta temporada 2012-13, a Borek estava operando uma frota de 14 Twin Otter na Antártica, e este foi seu primeiro acidente grave em 28 anos de operação no continente.

Foto: Arquivo pessoal / Marcelo Sampaio
Pouso do IL-76 na pista de gelo azul de Union Glacier

Foto: Arquivo pessoal / Marcelo Sampaio
Pesquisadores brasileiros no módulo Criosfera 1

As dúvidas e temores quanto à operação em pistas de gelo azul, que alguns críticos desqualificavam, tinham lá sua justificativa. Gelo costuma ser escorregadio e houve um acidente com turista, que caiu e quebrou a perna ao desembarcar em Patriot Hills. Por isso, para evitar esse tipo de ocorrência, é obrigatório adaptar pinos nas solas das botas, como as usadas pelos quatro brasileiros na missão de reocupar a Criosfera I. Curiosamente, para as rodas do trem de pouso, não acontece deslizamento, ao contrário, gelo azul parece superfície ideal, talvez por ser corrugada. Já os Twin Otter apresentam tendência a sair da reta e alinhar-se com o vento, quando cruzado, e dependendo da posição do centro de gravidade.

Naturalmente, condições meteorológicas adversas e instáveis exigem atenção constante, em qualquer tipo de voo na Antártica. Nas pistas de gelo ou neve, é essencial a informação sobre a definição e contraste do horizonte. O primeiro voo do DC-4 da ANI a Patriot Hills não teve condições ideais: o pouso foi ameaçado por ventos de 35 nós e temperatura de - 25ºC. Mesmo assim, foi feito um teste de táxi com vento de cauda e full flap, sendo a tração suficiente para frenagem com parada total sem deslizamento.

Hoje, o interior da Antártica e até o próprio polo está ao alcance de qualquer pessoa disposta a pagar o preço, um tanto alto, de cerca de R$ 80.000,00, para visitar o Polo Sul. Como atração extra para os amantes da aviação, o voo de Union Glacier é feito de Basler 67 dotado de esquis - a versão do DC-3 com motores turbo-hélice fabricada em Oshkosh, onde fica a sede da Basler.

| Rubens J. Villela, Especial Para Aero Magazine / | Fotos | Arquivo Pessoal / Marcelo Sampaio
Publicado em 18/04/2013, às 13h49 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45


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