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Os riscos da fadiga

Nova lei do aeronauta pretende melhorar a qualidade do sono de pilotos para prevenir acidentes e incidentes


Desde a primeira visita a um aeroclube, o aspirante a piloto privado recebe a recomendação de dormir bem na noite anterior à aula prática de pilotagem e, assim, chegar descansado para o voo de instrução. Essa é uma orientação que deveria ser seguida pelo piloto em toda a sua vida profissional. A realidade, no entanto, mostra que nem sempre os aeronautas estão em plenas condições físicas para exercer uma atividade que exige atenção extrema e decisões rápidas.

O problema da fadiga humana tem recebido atenção especial das autoridades aeronáuticas em todo o mundo. A OACI (Organização de Aviação Civil Internacional, ICAO na sigla em inglês) já publicou diversas recomendações para que se implemente um Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga com a intenção de diminuir o cansaço dos pilotos e, consequentemente, a ocorrência de acidentes e incidentes aeronáuticos que tenham a fadiga como um fator contribuinte.

FRMS

Diversas empresas ao redor do mundo já adotam o FRMS (Fatigue Risk Management System). No Brasil, nenhuma companhia aérea ainda colocou em prática o sistema que promete reduzir o cansaço e aumentar a qualidade de vida dos pilotos. E o problema não é uma possível falta de vontade das empresas. A questão é a rigidez da lei que regulamenta a profissão dos aeronautas no Brasil.

Essa realidade deve mudar após a aprovação de um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional para alterar a regulamentação da profissão de aeronautas. O primeiro passo foi dado no começo de julho com a aprovação do projeto na Comissão de Viação e Transporte da Câmara dos Deputados e, até o fechamento desta edição, estava em análise pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, sem data para ser apreciado. Entre as principais mudanças está, justamente, a criação de um Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga, a ser posto em prática e regulamentado pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil). “Todo o escopo do projeto gira em torno do Sistema de Controle de Risco de Fadiga. A aviação brasileira tem características próprias e, portanto, deveria desenvolver sua própria tabela e seu próprio sistema. Por isso, foi determinado na lei um prazo para que a ANAC possa apresentar esse sistema às companhias aéreas, que, depois, terão um prazo para fazer com que seja, de fato, posto em prática”, afirma a presidente da Comissão e relatora do projeto, deputada Clarissa Garotinho.

Questionada sobre se já há estudos preliminares para a criação do sistema, a agência respondeu, em nota, que “se a reforma na referida Lei do Aeronauta contemplar o que é recomendado pela OACI, a ANAC poderá adotar tais recomendações, por meio de um Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) específico sobre o assunto do risco da fadiga humana na aviação. Este regulamento específico sobre o gerenciamento da fadiga humana não pode e não poderá sobrepujar-se à Lei, que está em processo de alteração no Congresso, pois temos que estar harmonizados com a Lei do Aeronauta”.

Consenso entre partes

Apesar de não haver ainda uma previsão para a entrada em vigor do sistema, pilotos e representantes das companhias aéreas se mostram otimistas com as mudanças e afirmam que elas devem melhorar a qualidade de vida dos profissionais da aviação e aumentar a segurança de voo. O presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, comandante Adriano Castanho, considera que o processo foi pensado para contemplar as duas partes. “O projeto não traz redução de jornada e nenhum ganho financeiro, mas resolve muitos problemas”, diz. A avaliação é compartilhada pelo presidente da Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas), Eduardo Sanovicz. “Estamos preocupados em melhorar continuamente para manter esses padrões de segurança. O sistema de gerenciamento de risco de fadiga é mais um e precisa ser implementado com nível de excelência para manter a segurança”, afirma Sanovicz.

O novo projeto de lei prevê ainda diversos outros pontos que devem melhorar a qualidade de vida dos pilotos. É o caso, por exemplo, do trabalho em madrugadas consecutivas. Pela lei atual, um piloto pode estar no comando de uma aeronave por até seis madrugadas seguidas. A nova lei pretende restringir esse limite para apenas duas noites de trabalho. “Está absolutamente correto. Na nossa avaliação, ficou muito mais adequado”, afirma Sanovicz. “Limitar a duas madrugadas é o que o mundo utiliza e é o recomendado”, comemora Castanho.

Os aeronautas também devem ganhar mais folgas mensais e descanso de melhor qualidade. O projeto de lei prevê aumentar o número mínimo de folgas para 10 dias por mês, sendo que apenas duas delas poderiam ser folgas simples. Para o presidente do SNA, isso é de extrema importância para tripulantes que têm base operacional distante do local de residência da família. “O problema é que aeronautas do Brasil inteiro acabam baseados em São Paulo e com um dia de folga perdem muito tempo de descanso para visitar a família”, diz Adriano Castanho.

O presidente do SNA acredita que, apesar de ser reconhecidamente um risco para a segurança de voo, a fadiga ainda é um tema que não recebe a devida atenção das autoridades aeronáuticas, especialmente na investigação de acidentes ou incidentes. “É preciso investigar a fadiga. Hoje, só se coloca no relatório o fator humano, mas não se diz por que o piloto errou. Por isso não temos estatísticas no Brasil. Quando o Cenipa constata fadiga de material, é feita uma recomendação ao fabricante. Mas e quando é a fadiga do piloto?”, questiona o aeronauta.

Pesquisa brasileira

Para avaliar a real situação dos pilotos brasileiros em relação à fadiga durante as operações de voo, um recente estudo conduzido pelo comandante Paulo Licati, da Abrapac (Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil), avaliou a fadiga de pilotos de acordo com a jornada de trabalho. No total, 301 comandantes e copilotos responderam a um questionário sobre as sensações de fadiga durante as operações aéreas. Os dados foram, então, comparados com uma análise biomatemática utilizada com o software FAST (Fatigue Avoidance Scheduling Tool), que analisa a efetividade de reação dos pilotos de acordo com a duração e o tempo de sono.

O estudo mostra que a falta de um descanso apropriado pode causar sérios prejuízos à operação aérea. Segundo Licati, 79% dos eventos FOQA (Flight Operations Quality Assurance) estão relacionados com pilotos com menos de 77% de efetividade. Quando uma pessoa atinge 75% de efetividade, é o equivalente a ela ter 0,05 mg/l de álcool no sangue, o limite máximo permitido pelo Conselho Nacional de Trânsito, por exemplo. Ao atingir 70% de efetividade, esse valor sobe para o equivalente a 0,08 mg/l. Uma das principais causas para aumento da fadiga entre os pilotos está justamente na mudança do ciclo do sono. A pesquisa aponta um aumento de quase 50% do risco nas operações entre meia-noite e 6 horas da manhã. Segundo os dados da pesquisa, 70% dos pilotos relataram ocorrência de fadiga entre 2 horas e 4 horas da madrugada.

Entre os principais sintomas fisiológicos reportados pelos pilotos como sinal da fadiga estão o bocejo, a dificuldade de manter os olhos abertos, a vontade de esfregar os olhos e a cabeça balançando ou caindo. Como consequências que podem prejudicar a segurança de voo estão sintomas cognitivos, como atenção prejudicada (mais de 80%), comunicação reduzida (mais de 60%), consciência situacional prejudicada (mais de 50%), memória prejudicada, mau humor e tomada de decisão prejudicada (os últimos acima de 30%).

O estudo mostra que o sono é um fator fundamental para prevenir a fadiga dos pilotos e aumentar a segurança das operações aéreas. Cerca de 50% dos pilotos manifestaram fadiga com tempo médio de vigília de 7 horas. Esse resultado foi decorrente muito provavelmente do sono deficitário nas últimas 24 horas (média de 5 horas) ou do débito crônico de sono nas últimas 72 horas (média de 7,4 horas). Eis a evidência de que aquela orientação que o aspirante a piloto privado recebe ainda no aeroclube não deve nunca ser ignorada nunca em toda sua vida de aviador.

Principais mudanças na Lei do Aeronauta

O projeto de lei aprovado na Comissão de Viação e Transporte da Câmara dos Deputados traz diversas alterações na regulamentação da profissão. No entanto, alguns pontos ainda podem ser modificados na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, onde tramitava até o fechamento desta edição, e na Comissão de Constituição de Justiça, que seria o passo seguinte do processo. Confira as principais mudanças propostas pelos parlamentares:

  • Criação do Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga;
  • Aumento de oito para dez folgas mensais, podendo haver redução para nove em convenção coletiva de trabalho;
  • Apenas duas folgas por mês poderão ser simples;
  • Limite máximo de trabalho em duas madrugadas consecutivas e, no máximo, quatro madrugadas semanais;
  • Limites mais rígidos de jornada de trabalho para empresas que não adotarem o Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga;
  • Divulgação de escala mensal com cinco dias de antecedência;
  • Base contratual por aeroporto de operação e não mais por cidade;
  • Quando a operação começar ou terminar em um aeroporto diferente daquele da base contratual, serão acrescidas duas horas de descanso para o aeronauta;
  • Regulamentação da remuneração em treinamento e horas em solo entre etapas;
  • Obrigatoriedade da remuneração por hora de voo. Os casos nos quais os pagamentos são feitos por quilômetro voado ficam proibidos.

Como fica a aviação geral?

Pouco mais de um ano após o acidente fatal que tirou a vida do então presidenciável Eduardo Campos, o Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga, um dos principais pontos da nova Lei do Aeronauta, ainda é uma incógnita para os profissionais da aviação geral. Com escalas de trabalho bastante diversas, a implementação do sistema se torna uma tarefa bastante complexa. O representante do Sindicato Nacional dos Aeronautas Raul Marinho afirma que estudos nesse sentido ainda estão em andamento e que novas propostas podem ser apresentadas durante a tramitação do projeto de lei na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público. “A dificuldade técnica é o grande leque de operações, desde o helicóptero que voa em São Paulo, o táxi-aéreo em Macaé ou na Amazônia e o fazendeiro. Para cada caso, é necessário um estudo técnico e isso é muito complicado”, afirma. Os operadores que não adotarem o Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga, pelo projeto de lei, passam a ter limites mais restritivos de horas de voo. Para aviões convencionais, esse limite passa a ser de 100 horas por mês e 960 horas por ano. No caso de turbo-hélices será de 85 horas mensais e 850 horas anuais, enquanto os pilotos de aviões a jato ficam limitado a 80 horas por mês e 800 horas por ano. Por fim, os pilotos de helicóptero ficarão restritos a 90 horas por mês e 935 horas por ano.

Por Vinícius Casagrande
Publicado em 03/09/2015, às 00h00


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