Entenda o programa que fabricantes brasileiros terão de aderir para garantir a continuidade da produção de aviões acima de 600 kg de peso máximo de decolagem
Uma decisão técnica tomada pela Agência Nacional de Aviação Civil promete preservar um segmento estratégico da indústria aeroespacial brasileira e transformar o ano de 2014 em um marco para a aviação leve do país. Com o fim do prazo de isenção para o cumprimento das novas regras de produção de aviões experimentais acima de 600 kg de peso máximo de decolagem, ou fora dos padrões ALE (Aeronave Leve Esportiva), expirado em junho último, várias empresas do setor, que entregam pelo menos 100 aeronaves novas anualmente e empregam dezenas de pessoas, poderiam deixar de existir se não houvesse uma preocupação antecipada, tanto das empresas envolvidas quanto da própria agência reguladora, em encontrar alternativas viáveis para a permanência e o aperfeiçoamento da atividade de fabricação de “experimentais pesados”.
O Brasil iniciou a produção sistemática de aeronaves ultraleves no fim da década de 1980 enquanto a produção (ou montagem) de aviões experimentais mais pesados ganhou força no país no início da década de 2000, quando fabricantes nacionais, respaldados por uma flexibilidade dada pelo então DAC (Departamento de Aviação Civil), colocaram no mercado modelos maiores e mais velozes, que caíram no gosto do brasileiro, atraído por menores preços de aquisição, operação e manutenção. Houve, assim, um repentino crescimento da aviação leve nacional, com aeronaves modernas e bem construídas por mão de obra especializada com material e equipamentos aeronáuticos. Mas, apesar do avanço tecnológico, tais aeronaves permaneciam operando na condição de “não certificadas”, o que criou uma situação insustentável no longo prazo, uma vez que modelos com essas características poderiam ser construídos somente a partir de kits, projeto próprio ou plantas, por um construtor amador – ou serem certificados (homologados), conforme o RBHA 23.
No fim de 2011, com o lançamento do RBAC 21, que regulamenta a certificação de produtos aeronáuticos no Brasil, a Anac iniciou o programa de implantação do LSA/ALE (Light Sport Aircraft ou Aeronaves Leves Esportivas) e concedeu a algumas empresas isenções de cumprimento de requisitos da nova norma, o que lhes permitiu continuar produzindo e entregando aeronaves não LSA/ALE dentro de um prazo que terminou em junho último, quando precisariam se tonar obrigatoriamente homologadas. Ocorre que a regulamentação brasileira para produção de aeronaves da categoria LSA/ALE acompanhou uma tendência mundial incorporada por outros países signatários da ICAO, onde inexiste legislação que respalde a produção em série de aeronaves não certificadas com peso máximo de decolagem acima de 600 kg, e mais de dois ocupantes incluindo piloto, dentre outras características. Essa situação colocou os fabricantes de aeronaves leves e a agência diante de um impasse: o que aconteceria com o segmento quando o prazo concedido chegasse ao fim?
As empresas que aderirem ao programa deverão cumprir o prazo de implantação de dois anos
Em dezembro de 2013, as empresas solicitaram à Anac uma solução definitiva para evitar o desmanche de parte da indústria aeronáutica leve brasileira. A solução veio na forma do projeto IBR 2020, uma proposta elaborada pelo setor técnico da Anac com colaboração das empresas beneficiadas pela isenção, que consiste, basicamente, em organizar as atividades dos fabricantes na certificação de uma aeronave de projeto próprio, concomitante à implantação de um “sistema de qualidade” nos moldes da ISO 9001. Pelo projeto, as empresas podem continuar produzindo as aeronaves que já integram seus respectivos portfólios desde que adotem o programa proposto pela Anac e cumpram as metas estabelecidas, dentro dos prazos estipulados.
As empresas que aderirem ao programa deverão cumprir as etapas de implantação do sistema de qualidade em um intervalo de tempo de dois anos a partir de dezembro de 2014. Os fabricantes terão de demonstrar à Anac proficiência em processos como controle de materiais, gestão organizacional e gestão da produção. A perspectiva é que recebam a certificação ISO 9001 até dezembro de 2016. Para a certificação da aeronave, foram estabelecidas várias tarefas relativas a:
As tarefas de homologação deverão ter seu cumprimento comprovado em prazos que vão de junho de 2015 a dezembro de 2020, prazo final para que a aeronave receba a certificação de tipo. Segundo Superintendência de Aeronavegabilidade da Anac, a proposta do programa é que o fabricante passe por duas fases: “Na primeira, um período inicial, trabalhe no desenvolvimento e amadurecimento do projeto da aeronave, realize alguns ensaios, qualifique sua linha de produção, estabeleça um pensamento crítico voltado à certificação de aeronaves, conheça as normas e os meios de cumprimento. Na segunda fase é que a empresa inicia o processo de certificação. Todas as aeronaves produzidas pela empresa durante o programa serão experimentais”.
Com capacidade para quatro lugares e motor Lycoming de 190 hp, o Inpaer Explorer alcança 1.370 km
A aeronave a ser desenvolvida pode ser certificada nas categorias “primária” ou “normal”. A SAR/Anac esclarece que a categoria “primária” já existe e é definida no RBAC 21 vigente para aviões monomotores com motor a pistão e aspiração natural, velocidade de estol igual ou inferior a 113 km/h (61 kt), peso menor do que 1.225 kg (2.700 lb) – ou, no caso de hidroaviões, não mais do que 1.531 kg (3.375 lb) –, capacidade máxima de assentos para quatro ocupantes, incluindo o piloto, e cabine não pressurizada. “A norma permite que, após a certificação da aeronave na categoria ‘primária’, o fabricante escolha se quer entregar a aeronave pronta para voo com um certificado de aeronavegabilidade especial, similar ao do SLSA (Aeronave Leve Esportiva Especial) ou entregar a aeronave como experimental. Se escolher a certificação na categoria ‘normal’, tem como vantagem o reconhecimento internacional, já que segue a Convenção de Chicago, e a possibilidade de exportar as aeronaves produzidas”. A Anac estuda modificações da categoria “primária”. Até o momento, o envelope proposto para as aeronaves do programa é:
O sucesso do programa leva em conta também a remodelação do FAR 23 nos Estados Unidos (e o consequente acompanhamento do RBAC 23 no Brasil), o que deve ocorrer até meados de 2016, se todos os procedimentos correrem de forma normal – e tudo leva a crer que isso acontecerá, pois a comunidade aeronáutica, incluindo fabricantes, FAA e outras agências, apoia a mudança, com força de lei. Nos EUA, espera-se que a novidade seja bem-vinda, considerando que, nos últimos anos, houve uma retração significativa no mercado de aeronaves leves certificadas.
Na prática, o que acontece é que, com os inúmeros requisitos presentes no FAR 23, os fabricantes de um monomotor de quatro lugares precisam submeter sua aeronave ao mesmo processo de certificação de tipo de um bimotor turbo-hélice pressurizado para utilização comercial. O que se diz é que, além de obsoletos, os métodos de certificação e cumprimento dos requisitos, altamente rígidos, não são condizentes com tecnologias atuais, tornando extremamente custosa e morosa a adoção das novas tecnologias de eletrônica e motorização em aeronaves leves – fabricantes de aeronaves de maior porte conseguem diluir esses custos de certificação no preço final da máquina. Como nos EUA não é permitido fabricar aeronaves experimentais em série acima da categoria LSA, a indústria aeronáutica leve daquele país deixou de desenvolver aeronaves modernas e o mercado passou a utilizar tecnologias novas em aeronaves experimentais, principalmente os LSA. No novo FAR 23, com a categorização dos requisitos por características de aeronave (levando-se em conta peso máximo de decolagem, número de ocupantes, tipo de operação e assim por diante) e a redefinição de métodos de cumprimento, além da adoção da metodologia regulatória similar à do LSA (determinada pela ASTM), acredita-se que a certificação de uma aeronave será mais fácil e consumirá menos recursos dos fabricantes.
O Volato 400, quadriplace fabricado em materiais compostos, com motor Lycoming de 260 hp
Para a indústria brasileira, essa nova fase representa uma grande oportunidade de crescimento e desenvolvimento. Luis Claudio Gonçalves, diretor da Flyer Indústria Aeronáutica, que pretende desenvolver um novo avião dentro do programa, está otimista com o projeto: “O IBR 2020 foi uma iniciativa do pessoal da experimental e de certificação da Anac. Eles perceberam que as empresas que hoje produzem os experimentais sob a isenção de regra teriam grande dificuldade em migrar para a produção de aeronaves certificadas pelo RBAC 23. Para não perder todo esse conhecimento e o investimento feito ao longo de muitos anos de trabalho, e acreditando nas empresas que estão nesse mercado, começaram a planejar esse programa, que tem como objetivo principal direcionar as empresas para certificar suas aeronaves”, diz Luis Claudio. Para ele, mais do que um programa para certificação, o IBR 2020 é um programa para que as empresas brasileiras interessadas em aprender o processo de certificação de uma aeronave tenham tempo e condições de fazê-lo. “Acreditamos que o mercado continuará da mesma maneira que está hoje, procurando aeronaves com boa relação custo-benefício, mas com a certificação proposta pelo programa. As empresas que conseguirem certificar suas aeronaves poderão atingir o mercado internacional, o que aumenta a possibilidade de vendas”.
Os avanços tecnológicos em motores, eletrônica e materiais estarão presentes na maioria das aeronaves desenvolvidas por essas empresas. É o que demonstra a Aerocentro, de Barreiras, no interior da Bahia, que iniciou o projeto do Kronos 315, avião em material composto para 4/5 lugares, com motor Lycoming de 315 hp. Thiago Rangel, sócio-diretor da empresa, explica que as atuais aeronaves montadas pela Aerocentro com uso de kits não serão as que receberão certificação. “A aeronave para certificação será de um projeto novo, 100% brasileiro. O que esperamos é apresentar uma aeronave que possa competir de igual para igual com modelos como o Cirrus e o TTx. Esse é o nosso foco. Sabemos dessa possibilidade e, sendo um produto brasileiro, sairemos na frente ao se considerar incentivos fiscais e financeiros para aquisição”, explica Rangel.
A Inpaer, de São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, também desenvolve projetos próprios, como é o caso do Excel, de três lugares, construído em materiais compostos, e do Explorer, de quatro lugares, em alumínio. Ambas as aeronaves contam com um bom número de exemplares já em operação, com possibilidade de financiamento pelo BNDES. Tiago Jordão, superintendente de engenharia da Inpaer, defende a iniciativa da Anac: “A certificação de tipo, dentro ou fora do Brasil, é composta por um longo e oneroso processo que segue uma legislação antiga e de difícil adaptação. O projeto IBR 2020 viabilizará a aplicação de uma base de certificação moderna que está em elaboração pelo comitê ASTM F44, do qual a Inpaer faz parte e participa ativamente nas votações”. Mas ele reconhece as dificuldades que as empresas terão pela frente. “O processo de certificação de uma aeronave é um grande desafio. Para implantar uma fábrica para produzir um modelo LSA, avançamos muito nesse processo, incorporando um sistema de garantia da qualidade e de aeronavegabilidade continuada para as aeronaves LSA. Mas precisamos melhorar ainda mais para atender a esse novo desafio. Um sistema ISO 9001 ampliará a qualidade industrial do segmento em geral, pois trabalha com a excelência em todos os processos”, sustenta Jordão.
Durante a certificação, os custos dos processos, segundo as empresas consultadas, serão absorvidos como um investimento de longo prazo. Após a certificação, tais valores deverão ser repassados ao preço final da aeronave, mas de maneira a manter a competitividade com as aeronaves importadas. Na avaliação deles, com o enquadramento legal para produção desse tipo de aeronave, várias instituições, públicas ou privadas, poderão financiar as empresas participantes do programa. Além disso, a partir da implantação do IBR 2020, qualquer empresa brasileira que pretenda produzir uma aeronave diferente das LSA/ALE poderá aderir ao programa.
Maquete do Kronos 315, da Aerocentro, aeronave para quatro ou cinco lugares, em materiais compostos
Neste período de junho de 2014 até a implantação do IBR 2020, prevista para o fim do ano, as empresas beneficiadas estão propondo uma prorrogação do prazo de isenção do cumprimento das novas normas, para não cessarem suas atividades, o que está sendo avaliado “positivamente” pela Anac, segundo Luis Cláudio Gonçalves, da Flyer. A Anac, por sua vez, está trabalhando para que o programa esteja ativo até o fim do ano, depois de passar pelos procedimentos normais de consulta pública e da diretoria da agência. Também não há a intenção, inicialmente, de se alterar qualquer regulamento operacional ou de licenças. Ou seja, aeronaves enquadradas na definição de LSA/ALE podem ser operadas por pilotos com CPL e as demais aeronaves do programa, por pilotos privados.
A manutenção não deverá sofrer mudanças, o que significa que as aeronaves certificadas serão cuidadas por oficinas homologadas de manutenção com mecânicos habilitados e as experimentais poderão ser mantidas pelos seus proprietários. Os fabricantes provavelmente irão incentivar seus clientes a executarem a manutenção de suas aeronaves, no mínimo, em oficinas e mecânicos credenciados.
Como resultado dessa nova fase da indústria aeronáutica leve brasileira, espera-se que os já altos níveis de profissionalização e qualidade cresçam ainda mais, tese corroborada pela SAR/Anac: “O programa IBR 2020 objetiva amadurecer o conhecimento em certificação de projeto de aeronave e busca tirar proveito de uma demanda nacional por aviões de pequeno porte, de um parque industrial já estruturado, da existência de uma iniciativa regulatória internacional que deve reduzir os custos de certificação, além de mecanismos governamentais de fomento à cadeia produtiva nacional”.
Ao final do processo, a Anac acredita que o aprendizado gerado pelas tarefas intermediárias do programa seja absorvido pelos vários profissionais das diversas empresas envolvidas. Mais importante e estratégico, os técnicos da agência esperam que as empresas envolvam universidades e órgãos de fomento à pesquisa nesse processo. Provavelmente, todos esses profissionais acabarão disseminando os novos conhecimentos, voluntaria ou involuntariamente. Isso, evidentemente, contribuirá para o amadurecimento da cultura no meio da aviação, que causará impacto positivo nos níveis de segurança de voo. Além disso, o aprendizado trará amadurecimento técnico aos engenheiros envolvidos, e isso pode se traduzir em inovação tecnológica no futuro. Gerando inovações e patentes, haverá grande benefício ao país. Esse é o raciocínio.
Por Maurício Lanza
Publicado em 14/07/2014, às 00h00
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