Mercado debate questões como limite de velocidade e fim da produção em série de experimentais para aliar a segurança de voo às necessidades tanto de fabricantes e importadores como de donos de aviões leves
Até o final dos anos 1970, a aviação geral brasileira se resumia a alguns pequenos jatos executivos e muitos monomotores que operavam em região de garimpo. O clube aéreo era tido como a única maneira viável de se praticar o aerodesporto, já que a aquisição de uma aeronave própria estava longe das possibilidades da maioria dos entusiastas de aviação. O antigo DAC (Departamento de Aviação Civil) mantinha uma política de fomento à atividade de ensino aeronáutico, fornecendo aeronaves e combustível com preços subsidiados. Como as escolas de pilotagem, em sua maioria, funcionavam dentro dos aeroclubes, os custos dos voos de aerodesporto eram "suportáveis". Mas, na medida em que o DAC sofria redução em seu orçamento federal, deixava de apoiar os aeroclubes e levava os entusiastas de voo a procurar outras opções. Nessa época, surgia o ultraleve. No princípio, eram máquinas toscas e minimalistas, com estrutura feita de tubos e lonas de nylon, equipadas com motores adaptados. Mas a perseverança de alguns empresários pioneiros e oficiais da FAB (Força Aérea Brasileira) fez a atividade de voo em ultraleves sobreviver. No início dos anos 1990, já havia clubes e associações tentando organizar o segmento.
Com preço de aquisição e manutenção acessíveis, os ultraleves arrebanharam multidões de amantes da aviação, arredios aos custos mais elevados das aeronaves homologadas. Esse público buscava produtos de alta qualidade e absorveria muito bem novos projetos que fizessem sua máquina parecer cada vez mais um avião "de verdade". Ao longo dos anos 90, muitos já eram totalmente carenados e voavam acima dos 10 mil pés e além dos 100 kt. Conforme a operação de ultraleves se intensificava, as autoridades de aviação passaram a se perguntar como preservar a segurança, sem impedir o desenvolvimento da atividade. Surgiu, então, a RBHA 103, que impunha regras aos voos, às associações de pilotos e aos fabricantes. Dali em diante, os desafios para preservar a segurança seriam basicamente dois. O primeiro era, e ainda é, preparar pessoas que pratiquem o voo com bom conhecimento científico aeronáutico, já que as leis da gravidade e da inércia continuam implacáveis. E o segundo, construir máquinas que garantissem bom nível de segurança. Já naquele tempo, o usuário de ultraleves se deu conta de que estas aeronaves poderiam ser úteis como ferramentas de transporte pessoal, porque nem sempre os meios convencionais atendiam seus interesses em um país tão grande.
A indústria percebeu a oportunidade e passou a fabricar veículos aéreos mais rápidos e de maior alcance. Para isso, precisou lançar mão de motores potentes e pesados. Mas as novas máquinas, com maior capacidade de combustível, iriam ultrapassar o peso máximo de decolagem de 750 kg, não podendo se enquadrar mais como veículos ultraleves. Para viabilizar a produção, a indústria brasileira se amparou na extinta RBHA 37, que previa regras para produção de aeronaves experimentais com montagem a partir de kits. Assim, projetos de alto desempenho passaram a ser importados e montados nas fábricas de ultraleves, em linhas de produção paralelas. Para pilotá-las, era (e ainda é) necessário deter a licença de piloto privado. Mas, diante do maior rigor dos exames médicos, provas teóricas e práticas, parte da comunidade aeronáutica passou a procurar por modelos rápidos, que mantivessem os 750 kg de PMD. Um exemplo é o Vans RV9, que ainda hoje é muito procurado no mercado. Equipado com motor de 160 hp e voando a 150 kt, se mantém como ultraleve, bastando ao piloto deter o CPL (Certificado de Piloto de Aeronave Leve) válido.
Algo parecido aconteceu nos Estados Unidos. Lá também eram produzidos ultraleves, porém, a legislação norte-americana limitava o peso máximo de decolagem em apenas 125 kg. Acima disso, seriam consideradas aeronaves experimentais, que se tornavam cada vez mais velozes e pesadas. No entanto, ao longo da década passada, o FAA criou uma nova legislação, voltada a regular a construção em série de aeronaves leves. A partir de então, os fabricantes deveriam seguir novos padrões, desenvolvidos por representantes da sociedade civil norte-americana e publicados pela American Society for Testing and Materials (ASTM). Menos rigorosos do que os requisitos de aeronavegabilidade exigidos na FAR 23, permitiriam que o consumidor pudesse ter uma aeronave bem construída, de concepção simples e custos menores. As aeronaves produzidas sob essa nova regra passaram a se chamar Light Sport Aircraft (LSA). Parecia uma boa ideia, mas o tempo se encarregou de mostrar que os LSA não atendiam a todas as expectativas.
NO BRASIL, JÁ É PROIBIDA A PRODUÇÃO EM SÉRIE DE EXPERIMENTAIS E AS FÁBRICAS ATUALMENTE EM OPERAÇÃO RECEBERAM UM PRAZO ADICIONAL PARA SE ENQUADRAR, QUE EXPIRA NO FINAL DE 2014
Naquele país, há uma parcela significativa de pilotos profissionais aposentados ou entusiastas especializados em aviação, que procuram aeronaves de maior desempenho, para uso pessoal. Desejam vencer a barreira dos 370 km/h (200 kt), mas a legislação que ampara a produção dos LSA prevê que a velocidade máxima de cruzeiro seja 220 km/h (120 kt). E com essa categoria em vigor, o FAA manteve a proibição de produção seriada de experimentais. Portanto, a opção para quem quisesse uma aeronave rápida, não certificada, seria comprar o kit e construí-la em pelo menos 51%, já que a legislação permite obter a ajuda de alguma empresa especializada em até 49% dos serviços. Lá é comum pessoas construírem aeronaves em suas casas, a partir de kits ou até baseadas em projetos próprios. Os construtores amadores, geralmente ligados a alguma atividade profissional de aviação, têm por hábito conhecer e acatar a regulação específica de construção amadora de aeronaves.
A Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), tradicionalmente inspirada na legislação do FAA, passou a tratar o assunto dos ultraleves e experimentais de forma semelhante. Aqui já é proibida a produção em série de experimentais. E as fábricas atualmente em operação receberam um prazo adicional que expira no final de 2014. A mudança pegou o mercado aeronáutico brasileiro na sua melhor fase de produção. Mesmo porque, alguns modelos de aeronaves experimentais são muito procurados, pois chegam a 315 km/h (170 kt) em cruzeiro. E várias indústrias aeronáuticas empregam profissionais altamente especializados, cujos postos de trabalho poderão se perder.
No Brasil, viajar rápido viabiliza negócios. Mas o mercado consumidor de aviões é muito segmentado. Há os que preferem aeronaves certificadas de maior alcance e capacidade. E há também um grande número de usuários de aviões pessoais que só o fazem porque as condições de aquisição e operação de experimentais são adequadas aos seus orçamentos. Ademais, o entusiasta de aviação no Brasil não tem o hábito de construir aviões. Salvo raras exceções, muitos operadores nem sequer executam manutenção em suas aeronaves, preferindo deixar isso a cargo de oficinas especializadas. Portanto, o encerramento da produção em série de experimentais vai deixar uma lacuna importante.
Na prática, o mercado já conta com algumas soluções em vista. Uma delas é a simples importação de aeronaves experimentais já prontas dos EUA, onde há uma grande quantidade dos modelos mais cobiçados pelos brasileiros. Alguns empresários do segmento industrial argumentam que isso iria transferir parte dos nossos empregos para lá. Paralelamente, a extinção da indústria de experimentais poderia deixar sem apoio as atuais aeronaves em operação, já que o desmonte de estoques, demissão de técnicos de manutenção e desativação de produção de componentes prejudicaria a qualidade dos serviços de manutenção.
A restrição pode, ainda, empurrar a indústria para a produção clandestina de experimentais. Por aqui, os fabricantes também são autorizados a apoiar qualquer cliente que resolva construir seu próprio avião a partir de um kit. A legislação ampara as empresas a participar com até 49% da construção, deixando os outros 51% nas mãos dos próprios clientes. Entretanto, nos EUA e aqui há uma discussão intensa sobre o significado disso. Afinal, como medir a proporção de cada um? Como formalizar isso em documentos? Há a possibilidade de que os processos de construção amadora sejam adulterados, de forma a tentar convencer a Anac que a proporção foi respeitada. Esse cenário obrigará a agência a despender mais esforço na fiscalização, hoje já tão debilitada.
Uma opção considerada boa por empresários do setor seria a revisão de protocolos de certificação, tornando-os mais simples. Nos EUA, o FAA criou um grupo de estudos, que tem prazo até 2016 para reescrever a FAR 23, tornando menos rigorosos os requisitos de aeronavegabiliade para aeronaves com peso máximo de decolagem de 8.600 kg. Uma legislação "light" permitirá certificar a maior parte dos modelos de aeronaves, hoje produzidos como experimentais, e sua produção em série.
Jorge Filipe Almeida Barros
Publicado em 11/06/2013, às 06h25 - Atualizado em 27/08/2013, às 22h41
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