Entenda a evolução do processo de certificação e a expansão dos ultraleves nas últimas décadas
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, as forças aéreas do mundo todo passaram a desmobilizar enormes contingentes de pessoas e máquinas. Milhares de pilotos, mecânicos, aviões e peças sobressalentes inundaram o mercado da aviação civil, ainda incipiente naquela época. Ao mesmo tempo, a Organização de Aviação Civil Internacional (ICAO) já começava a colocar em prática os anexos escritos por ocasião da Convenção de Chicago, que a criou em 1944. Essa convenção aconteceu por provocação dos Estados Unidos e pretendia criar padrões de aviação no que tange à construção de aeroportos e aeronaves, preparo de pessoal técnico e assim por diante. Nos primeiros anos da ICAO, seus técnicos tinham muito trabalho para dar acabamento aos 18 anexos que seriam a base do conhecimento aeronáutico civil, em todo o planeta. Um resumo do conteúdo desses anexos está publicado na internet*. Dentre eles, o anexo 8, editado em 1949, pretendia estabelecer padrões para a construção de aeronaves. O documento cita a necessidade de todos os países adotarem os mesmos padrões, uma vez que aeronaves são, por essência, máquinas que cruzam fronteiras políticas e comerciais. A ICAO não impunha nenhuma regra, como ainda hoje não o faz, mas sugere que os Estados membros sigam as bases da regulação desse órgão. No entanto, deixa a liberdade de cada um produzir sua própria regulação ou copiar a de outro país contratante. A expectativa era que a liberdade, combinada com a simbiose entre regulações, produzisse um manancial de informações cada vez mais rico.
Ao longo da segunda metade do século 20, porém, os Estados Unidos se tornaram o maior produtor de veículos aéreos e espaciais. Acumularam conhecimento valioso como fruto de suas experiências civis, de guerra e dos países ocupados por eles. É de conhecimento geral o grande impulso que os americanos obtiveram com o conhecimento trazido da Alemanha, após 1945. Desde os projetos do motor a jato, obtidos da extinta Luftwaffe pelas tropas norte-americanas, até o desenvolvimento do foguete Saturno 5, que levou os primeiros astronautas à Lua, empreendido pela equipe do cientista alemão Wernher Von Braun. Atualmente, os EUA são um dos maiores mercados de aviação do mundo, senão o maior. Enquanto o Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB) registra cerca de 16.000 aeronaves civis e a EASA europeia contabiliza aproximadamente 30.000 aeronaves, os EUA somam cerca de 300.000 somente em aviação geral. Além disso, o FAA estabelece um dos mais rigorosos padrões de certificação para construção de aeronaves e componentes aeronáuticos. Então, sendo um grande mercado consumidor, vários países se interessam em fabricar produtos aeronáuticos que possam ser comercializados lá. Um exemplo óbvio é a Embraer. Toda a sua linha de jatos foi desenvolvida tomando como referência a regulação norte-americana, uma vez que é lá que a empresa pretende vender sua maior quantidade de aviões. Mas, a liberdade que o Brasil tem de produzir sua própria regulação permite à mesma Embraer se concentrar também no interesse nacional. Quando se trata de aviação agrícola, por exemplo ela produz aeronaves Ipanema com motores Lycoming movidos a etanol. Combustível aprovado pela Anac, mas não reconhecido pelo próprio fabricante.
A certificação usa o conhecimento aeronáutico acumulado para garantir segurança, como acontece com o Piper Meridian |
CONHECIMENTO ACUMULADO
Segundo a ICAO, a certificação aeronáutica é o melhor processo que a humanidade já desenvolveu para garantir a segurança de operação de um componente, uma célula de aeronave, uma hélice ou um motor. Isso porque se baseia no conhecimento acumulado por décadas, em várias instituições de diversos países, que pode ser utilizado segmentado para o cenário em que se pretende voar. No processo de certificação, há uma extensa rotina de testes, que visam obter a aprovação do governo do país em que se pretende registrar o produto. O país de registro pode também reconhecer os testes realizados em outro país, desde que atenda às normas da ICAO. Seja como for, ao ser aprovado, o governo endossa a segurança do produto, emitindo um certificado de "Aeronavegabilidade". O termo significa que, no momento dos ensaios, o produto ou aeronave atendiam aos padrões de aeronevagabilidade, estabelecidos nas normas de aviação. Mas, a ICAO condiciona a aeronavegabilidade a um processo de continuidade. Ou seja, deve haver uma "aeronavegabilidade continuada", que significa manter o produto aeronáutico nas mesmas condições do momento da certificação. Para facilitar a aeronavegabilidade continuada, a ICAO sugere que os países membros produzam documentos que contenham os padrões de aeronavegabilidade mínimos.
Para exemplificar, temos os Regulamentos Brasileiros de Aviação Civil que desempenham essa função. O RBAC 21 (Certificação de Produto Aeronáutico) estabelece como a pessoa interessada (física ou jurídica) deve proceder para obter aprovação de produtos aeronáuticos. O documento estabelece que se o produto for uma aeronave, hélice ou motor, deve haver um projeto a ser analisado, chamado Projeto de Tipo, onde estão descritas todas as informações do produto, suas limitações, diagramas, componentes etc. A célula da aeronave passa a ser analisada por técnicos, engenheiros e pilotos de ensaio. Todos vão inspecionar as condições de aeronavegabilidade em desempenho estático e dinâmico. Nesses ensaios, é comum a aplicação de processos durante os quais partes da célula, hélice ou motor são submetidas a esforços superiores àqueles previstos no uso diário e que, eventualmente, destroem a parte testada. Longarinas de asa são flexionadas para provarem resistência ou se partirem. Fuselagens são atiradas ao chão para simular impactos verticais e avaliadas quanto à sobrevida de passageiros.
Os testes podem levar meses ou anos e tem um custo elevado. No Brasil, a tentativa de se obter a aprovação de um Projeto de Tipo para uma pequena aeronave (avião com Peso Máximo de Decolagem, ou PMD, menor que 5.700 kg ou helicóptero até 2.730 kg de PMD) gera uma taxa a ser recolhida em favor da Anac de R$ 891.310,61. Essa taxa pode chegar a R$ 4.466.989,09 para as aeronaves maiores (aviões com PMD maior que 30.000 kg e helicópteros acima de 4.500 kg de PMD). Ou seja, a pessoa interessada deve considerar se o volume de vendas do produto será suficiente para cobrir as despesas de aprovação.
COMPONENTES HOMOLOGADOS
Os requisitos de aeronavegabilidade para aeronaves categoria Normal, Utilidade, Acrobática e Transporte Regional estão previstas na RBAC 23. Para as de Transporte, o documento é o RBHA 25. Ambas são réplicas dos documentos do FAA, dos EUA, e escritas em inglês. Dessa forma, o produto aprovado no Brasil tem todas as condições de também ser aprovado naquele país.
Para componentes como instrumentos, equipamentos eletrônicos, sistemas a bordo que não façam parte da célula, motor ou hélice, aplica-se outra documentação que a Anac chama de Ordem Técnica Padrão (OTP), em referência às Technical Standard Order (TSO) dos EUA. Então, alguém que desejar a aprovação de um altímetro produzido no Brasil, deve seguir a TSO-C10b, um novo navegador GPS para voo IFR, a TSO-C146, e assim por diante, já que para esses itens a Anac não possui uma OTP específica.
Para a aeronavegabilidade continuada, o fabricante do componente ou da aeronave, hélice ou motor deve produzir uma série de documentos que orientem os operadores. Assim, o processo de certificação inclui a análise e aprovação de manuais de manutenção, de treinamento de pessoal para pilotagem ou manutenção, de sistemas de produção, de controle de qualidade, dentre outros. Quem opera uma aeronave homologada, ou seja, detentora de um Projeto de Tipo aprovado pelo governo, não pode alterar esse projeto sem a aprovação do mesmo governo. O processo de aprovação de modificação de Projeto de Tipo segue o que prevê a RBAC 21, analisando as técnicas pelas quais a modificação será realizada e se, ao final, os requisitos de aeronavegabilidade, previstos na RBAC 23, continuarão atendidos.
Teste de quebra de asa do Boeing 787 Dreamliner |
Mas, já se vão muitas décadas desde que a Segunda Guerra Mundial acabou e a ICAO foi criada. Nesse período, os critérios de certificação se tornaram muito complexos e onerosos. Eles também limitam demais a criatividades da engenharia aeronáutica. Há uma piada no ambiente de engenharia da Embraer que diz que lá se pode produzir qualquer aeronave de transporte, desde se pareça com um Boeing 737.
Experiências com aeronaves sempre existiram, como caminho em direção à certificação, e o Código Brasileiro de Aeronáutica ampara o voo experimental, desde que em aeronaves construídas por amadores. Atualmente, a RBAC 21 permite o voo experimental para algumas situações específicas, tais como a pesquisa e desenvolvimento, demonstração de cumprimento de requisitos, treinamento de tripulações, exibição e competição aérea, além de voos para pesquisa de mercado (RBAC 21 item 21.191, Certificados de autorização de voo experimental). A aeronave experimental não está obrigada a atender a todos os critérios de aeronavegabilidade. Ainda assim, a autorização está condicionada a adoção de regras de segurança básicas, que devem ser demonstradas à Anac. Mas, supondo que o invento tenha sido construído pelo seu operador, não há como a Anac exigir manual de operação e de manutenção rigorosos. Afinal, o produto ainda estaria em desenvolvimento. Também não tem como cobrar que a manutenção seja realizada em empresa homologada para o modelo, uma vez que muitos experimentais são únicos. Se houver um acidente, em teoria, não haveria necessidade de o Estado o investigar, já que a conclusão não seria de interesse público, mas apenas do operador.
MÁQUINAS PRÓPRIAS
Nos anos de 1980, no entanto, ocorreu um fenômeno interessante. Pessoas físicas em todo o mundo capitalista, interessadas em aerodesporto, passaram a construir suas próprias máquinas voadoras. Inicialmente restritas a sítios de voo, com o tempo se desenvolveram e passaram a ser usadas em viagens de longa distância. Girocópteros, trikes, ultraleves, motoplanadores, parapentes, balões de ar quente e balões dirigíveis passaram a serem vistos com frequência. Cresceram em quantidade de forma acelerada, como também os acidentes que vitimavam seus ocupantes. No Brasil já houve cerca de 450 girocópteros, registrados no RAB. Hoje, restam poucas dezenas, já que a grande maioria pereceu em acidentes.
Porém, por iniciativa de diretores de clubes, os ultraleves receberam maior atenção das autoridades aeronáuticas e, em 2001, o antigo DAC publicou a RBHA103A, que regula até hoje a construção e operação desses veículos aéreos. São consideradas aeronaves experimentais, cuja utilização deve estar voltada apenas ao aerodesporto. A publicação tenta orientar a atividade, mas contraria a filosofia da ICAO, porque permite perenizar uma condição transitória e precária. Operar um veículo aéreo não certificado, de forma permanente, pode trazer riscos maiores do que aqueles já conhecidos em aeronaves homologadas. Isso deixa algumas vulnerabilidades legais, tanto para o ocupante, como para o Estado que, afinal, tolera o voo de um veículo, cuja segurança ele não endossa.
A lei que criou a Anac estabeleceu que a nova agência deveria reeditar toda a regulação aeronáutica civil brasileira. Assim, aos poucos, as RBHA estão sendo substituídas pelas RBAC, com uma redação mais adequada aos nossos tempos. A RBAC 21, já citada anteriormente, autoriza o voo experimental da aeronave construída por uma pessoa, para fins de educação e desporto, desde que ela tenha arcado com a porção maior da mão de obra, podendo, no entanto, contar com a ajuda de terceiros em até 49%. Também emitirá autorização de voo experimental para os ultraleves que atendam o previsto na RBHA103A, com data de construção até 01/12/2014. O item deixa clara a intenção da Anac em não mais aceitar voo experimental em aeronaves ultraleves, como é feito hoje. No Brasil, há uma frota de experimentais de aproximadamente 4.000 aeronaves, sendo cerca de 2.300 ultraleves. Uma grande comunidade organizada, que pratica o aerodesporto sob a orientação e a fiscalização de várias associações de construtores e operadores. E algumas fábricas de ultraleves adotam voluntariamente critérios construtivos baseados nos padrões ASTM (American Society for Testing and Materials -http://www.astm.org), mundialmente reconhecidos.
FABRICANTES DE ULTRALEVES VÊM OFERECENDO AERONAVES COM CERTIFICAÇÃO LSA, OBTIDAS CONFORME PADRÕES ASTM
Mas, o parágrafo seguinte da RBAC 21 atenua essa preocupação. Ele permite o voo experimental para aeronaves de categoria leve esportiva. Analisando-se a combinação de legislações, nota-se que a RBAC 01 já define a aeronave "leve esportiva" e a RBAC 61, que trata das licenças e habilitações técnicas, prevê a existência de um certificado de pilotagem específico para elas. Ao mesmo tempo, as empresas que tradicionalmente produziam ultraleves, vêm oferecendo ao mercado aeronaves com certificação Light Sport Aircraft (LSA), obtidas na Europa e Estados Unidos, cujo seguimento de padrões ASTM é obrigatório. Ainda que por aqui não haja oficialmente ainda um RBAC prevendo requisitos de aeronavegabilidade para aeronaves leve esportivas, isso deve acontecer em breve.
*http://legacy.icao.int/eshop/pub/anxinfo/annexesbookleten.pdf
Jorge Filipe Almeida Barros
Publicado em 03/10/2012, às 07h12 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
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