Sem critério, alteração da lei do aeronauta, que prevê aumento da carga de trabalho de pilotos de 85 para 100 horas mensais, pode reduzir a segurança de voo
O trânsito de automóveis suscita uma preocupação constante no Brasil e no mundo: a perigosa mistura de álcool com direção. Todos sabem que, conforme é ingerida, a bebida drena dos motoristas seus níveis de alerta e atenção, além de reduzir sua capacidade de concentração, de tomar decisões e por aí vai. Se você não aceitaria uma carona de um motorista embriagado, jamais ocuparia seu assento em um avião se, depois de ser cordialmente cumprimentado pelos comissários à porta, desse uma olhada na cabine de comando e visse os pilotos preparando o voo entre goles de cerveja. O exemplo parece esdrúxulo, mas o assunto merece um cuidado especial. Se o problema do álcool é justamente reduzir, muitas vezes a níveis perigosos, a capacidade de reação e julgamento, há um inimigo silencioso que comprovadamente pode interferir negativamente nas mesmas capacidades psicomotoras de um cidadão sem ser detectado por um teste de bafômetro: a fadiga.
Esse tema não poderia ser discutido em melhor hora. Como sabemos, a legislação costuma andar a reboque dos costumes, acontecimentos, tecnologia. Por esse motivo, de tempos em tempos, há de se adequá-la para que produza os efeitos desejados. É o que está acontecendo neste momento com a Lei Nº 7.183, de 5 de abril de 1984, também conhecida por Lei dos Aeronautas, que dentre as alterações, há o desejo do legislador de alterar a jornada de trabalho. Como esse é um assunto que afeta diretamente a vida de alguns milhares de profissionais e pode interferir na segurança das operações aéreas, envolvendo alguns milhões de passageiros, diversas associações ligadas à aviação estão acompanhando atentamente o desenrolar dos acontecimentos.
Afinal, quais são as mudanças que se avizinham e preocupam tanto os profissionais da aviação? Falei com o comandante Carlos Seixas, presidente da recém-criada Abrapac (Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil), que nos explica quais são as modificações que estão na pauta das discussões e que podem interferir nos voos das companhias aéreas. Segundo ele, basicamente, o que está sendo proposto é um incremento das horas trabalhadas. Para que se tenha uma ideia, hoje os pilotos das companhias aéreas podem voar até 85 horas mensais, sem contar aquelas em que ficam à disposição, como sobreaviso ou reserva. Esse número pode passar a 100 horas. Mas o mais preocupante diz respeito à jornada de trabalho. Das atuais 11 horas num dia, há o risco de passar para 14, sem limite de número de operações de pouso, que hoje está restrito a cinco. Para entender o impacto que isso pode causar na aviação, ele me garantiu que existem tripulantes decididos a procurar outra forma de pagar suas contas caso a mudança venha a acontecer: "Muitos consideram a atual jornada já bastante cansativa".
POR MUITO TEMPO CONFUNDIU-SE ESTRESSE, QUE É UM DISTÚRBIO DE ORDEM PSICOLÓGICA, COM FADIGA, QUE É UM ESGOTAMENTO FÍSICO
Para definir o que seja uma "jornada bastante cansativa" conversei com o comandante Paulo Licati, que é graduado em gestão de empresa aérea, pós-graduado no ITA, tem diversos trabalhos publicados sobre o tema e recentemente esteve na sede da OACI (Organização da Aviação Civil Internacional), no Canadá, participando de um fórum sobre FRMS (Sistema de Gerenciamento de Risco de Fatiga, em inglês). Licati esteve, no ano passado, no Senado Federal explicando à seleta audiência as razões pelas quais deve haver um critério cuidadoso para alterar algo tão importante e que pode trazer resultados insatisfatórios para a aviação brasileira.
O estudo da fadiga e seus efeitos na condução de um voo é bastante recente, embora haja relatos de pilotos que simplesmente dormiram por encontrarem-se esgotados ao final de uma jornada longa de voo desde anos antigos. Por muito tempo confundiu-se estresse, que é um distúrbio de ordem psicológica, com fadiga, que é um esgotamento físico. Somente na década de 1990 um acidente foi investigado sob a ótica de um novo fator contribuinte: a fadiga. A saída, concordam os especialistas, é permitir que o ser humano seja utilizado de acordo com suas melhores condições e não adianta apelar para o bom senso, o caminho é prever tudo em lei.
Assim como um motorista, o piloto pode decidir se vai ingerir ou não bebidas alcoólicas no dia anterior ao voo. Vai procurar descansar para estar alerta durante sua jornada de trabalho. Condicionamento físico e cuidados com a saúde são outros pontos que o piloto pode controlar e adequar de forma a suportar melhor a carga de fadiga, mas há outros dois que não depende dele: a genética e, principalmente, a inexorabilidade do tempo. Quer queira, quer não, o minuto passado é história e o passar dos anos vai reduzir gradativamente as diversas capacidades de cada um de nós. Caso mudanças sejam feitas na Lei do Aeronauta sem que se observe pareceres técnicos, principalmente relacionados ao tema desse artigo, muito provavelmente o aviador será um profissional que não se aposenta, simplesmente porque seu envelhecimento será incompatível com a atividade.
Ruy Flemming
Publicado em 28/02/2012, às 13h21 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
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