Embora raro, eventos de vazamento de combustível requer conhecimento e treinamento por parte da tripulação durante os voos
Vazamento de combustível em voo é um dos eventos mais raros de acontecer, especialmente na aviação comercial. Todavia, na aviação leve, devido às suas características operacionais, esses eventos ocorrem com uma frequência ligeiramente maior do que na aviação de transporte aéreo. Mesmo assim, são raros os relatos desse tipo de ocorrência — o que não nos exime de estarmos preparados para essas eventualidades.
No caso da aviação leve, lidar com situações de vazamento de combustível em voo (fuel leak) é relativamente simples de contornar, uma vez que, diferentemente do que ocorre na aviação de grande porte, encontrar um aeroporto adequado é mais fácil do que na aviação comercial.
Porém, em ambos os casos, o uso do checklist para situações anormais (abnormal checklist) é fundamental para a realização de um pouso de precaução seguro, evitando uma tragédia, como a perda do(s) motor(es) por falta de combustível (run out of fuel).
Um dos grandes desafios neste tipo de ocorrência é justamente identificar que o problema está acontecendo naquele momento. Em aeronaves mais modernas, como em jatos e turboélices, há alarmes e avisos que mostram claramente ao piloto que a pane está ocorrendo, pelas indicações de fluxo de combustível no(s) motor(es) (fuel flow indicator) ou pela indicação de baixa pressão de combustível (low fuel pressure).
Já em pequenos monomotores mais antigos e simples, a atenção ao gerenciamento do voo é fundamental para que a situação seja diagnosticada e as medidas ideais sejam tomadas para evitar algo pior. Além disso, administrar a situação com o risco de incêndio torna o desafio consideravelmente maior.
Durante meus vinte anos de experiência de voo, experimentei duas vezes a situação de vazamento de combustível em voo. No caso mais marcante, a bordo de um Cirrus SR22 mais antigo, de segunda geração (G2), pouco após nivelar no FL100, saindo do Campo de Marte (SBMT) já na proa de Uberlândia (SBUR), sentimos um forte cheiro de Avgas invadindo a cabine — algo extremamente incomum em um avião "selado" como um SR22.
Cheguei a cogitar que o cheiro tivesse começado após a troca do tanque pela seletora, no momento do acionamento da bomba de combustível (fuel boost), procedimento recomendado no Manual de Operações do avião. Mas não. O forte odor de gasolina persistiu durante todo o retorno até o Campo de Marte, que foi a nossa melhor opção, dadas as condições meteorológicas dos aeródromos mais próximos.
O diagnóstico do mecânico, no dia seguinte, revelou uma ruptura em uma junção de uma das tubulações que leva combustível da asa esquerda para o motor, iniciada justamente pelo acionamento da fuel boost no momento da troca de tanques, contrariando minha análise inicial em voo, quando o cheiro aparentava vir da parte inferior da carenagem do motor.
Naturalmente, os procedimentos adotados em eventos de fuel leak variam de aeronave para aeronave e de operação para operação. No entanto, daremos algumas dicas de como identificar e agir em situações como essas.
A fim de facilitar o entendimento, dada a maior complexidade de operação, consideraremos um avião bimotor executivo a jato, com capacidade acima de dez passageiros, como exemplo.
O planejamento do voo, incluindo o consumo horário e o estimado em determinados trechos, é fundamental para a identificação de anomalias relacionadas a perdas de combustível por vazamento.
Ter em mente o combustível previsto para a totalidade do voo ajudará a identificar se os parâmetros mostrados nos instrumentos estão de acordo com o que foi calculado. Desvios por ATC, condições meteorológicas, ventos em rota e combustível para alternativa (alternate fuel) devem estar devidamente calculados para que possam ser checados durante a viagem.
Em voo, principalmente em cruzeiro, uma das tarefas da tripulação (especialmente do piloto monitor) é verificar se o consumo real de combustível está próximo do previsto.
Discrepâncias acentuadas entre o total de combustível a bordo (fuel on board) e o planejado devem ser investigadas, considerando ventos, desvios ou um peso diferente do planejado. Caso esses não sejam os motivos, a tripulação deve iniciar uma análise para entender a causa das diferenças, consultando o Quick Reference Handbook (QRH) nas seções "In-Flight Fuel Unbalance" ou "In-Flight Fuel Leak", conforme o modelo da aeronave.
Se houver diferença entre os tanques ou no combustível previsto para a chegada, é necessário agir para corrigir a situação, pois pode haver uma justificativa para essa discrepância.
Entre as possíveis causas estão: um motor mais antigo que consome mais combustível, uma APU funcionando durante o voo ou até mesmo falha de indicação dos instrumentos. Essas são situações que o piloto monitor deverá considerar durante a análise.
Independentemente da causa, é essencial compreender a origem da discrepância e tomar as medidas adequadas para garantir a segurança da aeronave e dos ocupantes, o que pode incluir desviar para o aeródromo alternativo enquanto a causa não é identificada.
Normalmente, um dos primeiros sinais de vazamento de combustível é o desequilíbrio entre os dois tanques principais das asas. Em aviões que possuam tanque central, este será usado primeiro antes que os tanques principais sejam usados para alimentar seus respectivos motores. Caso o valor estipulado pelo fabricante seja ultrapassado, uma mensagem de alerta FUEL IMBALANCE será exibida.
O sistema de balanceamento de combustível em aviões modernos é projetado para bombear o combustível do tanque com a maior quantidade para o de menor quantidade. Todavia, antes de fazer isso, precisamos estar seguros de que tal desequilíbrio não seja por um vazamento. Em geral, o QRH das aeronaves para essas situações alerta-nos de que um evento de fuel leak deve ser considerado em casos como:
Embora muito raros, é fundamental que a tripulação esteja ciente do que fazer em um evento de vazamento de combustível. Uma vez no ar, temos uma quantidade finita de combustível, que deve ser bem gerenciada para garantir a segurança do voo, manter reservas suficientes e permitir, se necessário, a arremetida no destino e o desvio para uma alternativa, por qualquer que seja o motivo.
Por Micael Rocha
Publicado em 30/09/2024, às 18h00