Robusto e versátil este turbo-hélice monomotor chega ao Brasil para cumprir missões variadas em pistas curtas e irregulares
Também conhecido como urso-gigante-do-alasca, o urso-de-kodiak (Ursus arctos middendorffi) rivaliza com o urso-polar na briga pelo título de maior carnívoro terrestre do planeta. Como sugerem suas designações, o mamífero, que pertence à família dos ursos-pardos, vive em regiões como a ilha Kodiak, no Alasca. É um exímio caçador, atingindo 56 km/h em corridas curtas e nadando com grande destreza, o que inspirou a Quest Aircraft Company, empresa sediada na cidade de Sandpoint, estado de Idaho, região noroeste dos Estados Unidos, base industrial de fabricantes de enormes jatos, no batismo de seu proeminente Kodiak K-100, um turbo-hélice de cerca de US$ 2 milhões (tabela FOB) concebido para se tornar referência mundial no mercado de utilitários monomotores.
O Quest Kodiak K-100 nasceu para ser uma aeronave utilitária de alto desempenho, com real capacidade STOL (Short Takeoff and Landing ou pousos e decolagens curtas), elevada capacidade de carga útil, longo raio de ação e capaz de operar em pistas curtas e irregulares. Desenvolvido com o auxílio dos sistemas de computadores do final dos anos 1990 e programas CAD (Computer Aided Design – desenho com ajuda de computadores), que substituíram as pranchetas de décadas anteriores, o projeto do K-100 ganhou celeridade em processos de criação, modificação, análise e otimização. O resultado foi o aumento da produtividade dos projetistas, melhoria da qualidade do desenho e da comunicação por meio da documentação, bem como a criação de um banco de dados para a posterior produção da aeronave. Eis o DNA do Kodiak, que começou a ser produzido em 2007.
Certificado conforme a Part 23 da FAA (Federal Aviation Administration) na categoria normal para as operações diurna e noturna, sob as condições visuais e por instrumentos, além de certificado para gelo quando equipado com o sistema TKS de proteção contra gelo (opcional), o Kodiak K-100 é uma aeronave utilitária multimissão de asa alta, trem de pouso fixo, com capacidade para transportar nove passageiros. É impulsionada por um confiável e moderno motor Pratt&Whitney P&W PT6A-34 de 560 kW (750 shp) de potência que, segundo os dados de desempenho fornecidos pelo fabricante, possibilita decolagens em menos de 300 m de pista, carregando o peso máximo de decolagem de 3.290 kg. Com uma razão de subida na faixa de 395 m/min (1.300 pés/min), o Kodiak cruza facilmente beirando os 340 km/h (183 nós).
O Kodiak K-100 é uma aeronave utilitária multimissão de asa alta e trem de pouso fixo, com capacidade para transportar até nove passageiros
À primeira vista, o Kodiak lembra muito um Cessna C-208 Caravan, seu grande concorrente. A Quest, aliás, já tem pronto um documento, em português, com um comparativo entre as aeronaves. Os principais itens desse arquivo dizem respeito aos custos operacionais, que incluem combustível, manutenção, hora-oficina, peças, reserva para overhaul de motor, entre outros. Pelo levantamento, voando a 3.660 m (12.000 pés) com velocidade de cruzeiro (pagando R$ 5 pelo litro de combustível e com dólar a R$ 2,4), o Kodiak apresenta um custo de R$ 1.993,68 por hora de voo ou R$ 5,89 por km, o que significa um custo anual de R$ 653.665 considerando o cumprimento de 8.045 km (5.000 milhas náuticas) de operação por mês. Já o custo da hora de voo do Cessna 208, segundo os dados da Quest Aircraft, seria de R$ 2.074,80 (R$ 6,29 por km) e o do Cessna 208B, de R$ 2.099,00 (R$ 6,55 por km).
Ao me aproximar do avião, porém, já de cara, percebo tratar-se de uma aeronave diferente do Caravan. O Kodiak que testaremos repousa no Hangar Lasas, sede da Quest Aircraft do Brasil, em São José dos Campos, interior de São Paulo. O nariz é mais curto e as asas não apresentam o mesmo desenho, sobretudo no que se refere a formato e perfil. Apesar de rústico, o Kodiak tem estrutura e revestimento bem acabados, com rebites milimetricamente alinhados na fuselagem (certamente fruto da origem computadorizada de seu projeto). Os flaps e os ailerons são gigantescos e o sistema de treliças e guias dos flaps parece ser muito robusto.
Tanto a cabine de pilotos como a de passageiros têm medidas generosas, o que se traduz em excelente espaço interno. Os passageiros podem se movimentar confortavelmente para trocar de assento. O acesso dos passageiros à cabine é tranquilo, garantido por uma eficiente escada que fica na parte interna da porta inferior. Já o piloto precisa fazer um pouco de “ginástica” para entrar na cabine dianteira, por se tratar de uma aeronave alta. Uma alça na coluna dianteira ajuda nessa tarefa.
O painel é muito bonito, com três telas Garmin 1000. Algo que chama minha atenção é o fato de o Kodiak operar com duas baterias, característica bem interessante. Os checks de pré-voo e partida são simples e facilitam a operação do K-100.
Acionado o motor, iniciamos o táxi. Ao meu lado está o comandante Augusto Pagliacci, experiente piloto de acrobacia aérea e por diversas vezes campeão na modalidade. A manobrabilidade no solo mostra-se fácil, permitindo ao piloto minimizar o uso dos freios e poupar as pastilhas ao reduzir o manete para a posição Beta (reverse). Alinhamos na cabeceira 15 de SBSJ para a decolagem. Freios soltos, iniciada a corrida e vem à mente a lembrança da reação do T-27 Tucano, com necessidade de aplicação do pedal para contrariar o torque. Rotação normal, e uma ligeira dificuldade em segurar a queda da asa esquerda resultante de uma diferença na quantidade de combustível nas duas asas – que ocorreu no solo porque as seletoras de tanques permaneceram abertas, fato que possibilita um indesejável desbalanceamanto. A asa esquerda estava realmente bem pesada. Apesar disso, o avião se mostra dócil no controle de rolamento e facilmente neutralizo a tendência de queda com o uso dos dois compensadores elétricos de ailerons. Estamos com meio tanque e quatro a bordo, e o Kodiak já demonstra sua ótima performance, decolando em pouco menos de 400 m. Subimos com uma razão de 426 m/min (1.400 pés/min).
O sistema de ar-condicionado dá conta do recado e é bem dimensionado. Pode-se direcionar o vento refrigerado individualmente para cada passageiro por meio de um moderno painel de controle digital touchscreen. Aceleramos para testar o “urso” na velocidade de cruzeiro, atingindo rapidamente 315 km/h (170 nós) indicados, a 1.390 m (4.000 pés), o que se mostra muito bom diante de nossas condições de altitude, temperatura e peso. Logo em seguida, reduzo potência suficiente para manter a aeronave voando nivelada com a menor velocidade possível. Para minha admiração, o Kodiak mantém efetividade de comando de ailerons a incríveis 92 km/h (50 nós) indicados, com picos de 89 km/h (48 nós), um indício do que devemos ratificar nas operações de pouso, em breve.
Durante o voo na ala para as fotografias, observo o quanto o Kodiak é dócil nos comandos de arfagem e inclinação, em altas e em baixas velocidades. A visibilidade, tanto nas laterais quanto à frente, mostra-se muito boa, o que decorre de sua concepção com asa alta. Isso facilita os trabalhos em missões de busca e salvamento, voos para foto e vídeo e, também, vigilância e reconhecimento aéreo. O nível de ruído é adequado, apesar da possibilidade de cada passageiro usar fones com filtro antirruído, fato que certamente aumenta o conforto em voo.
Prosseguimos para os testes de pousos e decolagens curtos. Executo o primeiro tráfego e, por precaução, mantenho 148 km/h (80 nós) na final. Com fullflaps baixo para 130 km/h (70 nós), prosseguimos na final para o primeiro toque e arremetida. Apesar de operado por mim pela primeira vez, o Kodiak reage sempre de forma amigável, o que resulta em um toque suave na pista. Seguimos na arremetida para novo tráfego. Peço, então, para que o comandante Pagliacci demonstre o pouso curto da “fera”. Desta vez, chegamos a 120 km/h (65 nós) na final, estabilizados apesar da baixíssima velocidade para um avião deste porte. Olho para o bordo de fuga da asa esquerda e compreendo a razão para tamanha segurança proporcionada pelo K-100 ao piloto: o gigantesco flap baixado na posição full aumenta consideravelmente tanto a sustentação quanto o arrasto do “bicho”. Vimos quase no pré-estol já próximos do toque, ainda com excelente manobrabilidade da máquina. Usamos os freios e o reverso e o resultado é um pouso com parada total muito, muito curto.
Observo as faixas da pista e noto que paramos uns 30 m antes da faixa de 180 m (600 pés). Mais tarde, curioso com a performance, projetaria o resultado em um mapa-satélite e confirmaria a surpreendente capacidade do Kodiak de pousar curto: gastamos 275 m para parar totalmente a aeronave!
Finalizamos o voo de teste com uma decolagem curta a partir do ponto de toque anterior e, antes mesmo de atingirmos o través do primeiro hangar, já estamos a mais de 30 m (100 pés). Tal performance seria medida posteriormente por mim, marcando 440 m. Durante o táxi de regresso para o aeroclube, divertimo-nos com a curiosidade da controladora de tráfego da torre que, sem timidez, pergunta na fonia: “Comandante, qual o modelo da sua aeronave? É um ‘mini-Caravan’?”. Logo depois, ouvimos no rádio outro controlador da torre comentando: “Realmente sua aeronave pousa muito curto, senhor”. Educadamente, Pagliacci responde que não se trata de um “mini-Caravan”, mas, sim, de uma aeronave “pioneira” no Brasil, fabricada pela Quest Aircraft, chamada Kodiak K-100. O comandante, empolgado, emenda: “Trata-se de uma aeronave que pousa mais curto, voa mais rápido e carrega mais peso do que aeronaves de sua categoria”.
A Quest oferece o K-100 com duas opções de cores e revestimento interior: Tundra (padrão) e Timberline, tornando o Kodiak um confortável avião executivo ou um eficiente avião de transporte de passageiros. Entre os opcionais estão proteção antiderrapante para o piso, sistema de ar-condicionado e sistema de oxigênio avançado de 8+2 lugares (para o interior); radar meteorológico GWX-68, rádio localizador 406 MHz com GPS, detector de tempestades (Stormscope) WX-500, sistema anticolisão de tráfego GTS 800 TAS e sistema de recepção de dados GDL 69A–XM Infotaiment (para o cockpit); e compartimento externo de carga, sistema TKS antigelo, pneu de 29 polegadas, pintura de três cores, pintura metálica e pintura feita pelo cliente (para o exterior).
Um trem de pouso altamente resistente, montado em uma viga dupla na aeronave, garante a robustez do projeto. Os pneus são de grandes dimensões e usam baixa pressão, o que se traduz em segurança e tranquilidade na operação em pistas não preparadas. Outro fator importante e que proporciona uma boa margem de segurança nos pousos em pistas curtas é a distância livre entre a hélice e o solo, próxima de 50 cm – a do Caravan é de 28,5 cm –, praticamente impedindo o toque da hélice no caso de um descuido do piloto. A versatilidade do Kodiak é maior ainda com a possibilidade da instalação de flutuadores, sem a necessidade de qualquer alteração estrutural. Tanto os flutuadores quanto o próprio avião possuem tratamento anticorrosivo, garantindo segurança e durabilidade nesse tipo de operação, reduzindo os custos de manutenção. Conforme dados do fabricante, o Kodiak é a única aeronave anfíbia no mundo que leva em média 20 segundos para decolar na água. Tudo isso multiplica exponencialmente as possibilidades de operação do “urso pescador”. A origem do nome de batismo faz do K-100 um bravo e eficiente avião anfíbio nessa configuração.
O avião apresenta um diferenciado perfil aerodinâmico de asas, em conjunto com um gigantesco e eficiente conjunto de flaps, que ficam apoiados em resistentes e robustas treliças. Apesar da robustez da máquina, a aerodinâmica foi cuidadosamente preservada no formato dianteiro do bagageiro inferior, que se estreita gradualmente à medida que seu contorno se aproxima da parte dianteira do avião. Enquanto em outros projetos esse equipamento provoca um arrasto que deteriora a velocidade em 18 km/h (10 nós), em média, por terminar abruptamente, no Kodiak esse prejuízo não passa de 1,9 km/h a 3,8 km/h (2 a 3 nós) de queda na velocidade de cruzeiro. Nos dois grandes ailerons existem aletas nas partes interna e externa que direcionam melhor o fluxo do ar sobre essas superfícies, facilitando a pilotagem mesmo em baixíssima velocidade.
Concebido para que o operador também execute os procedimentos de pré e pós-voo quando estiver fora de sede, o avião incorpora inovações que facilitam muito a vida dos pilotos. Um pequeno painel localizado na lateral direita central da fuselagem do Kodiak concentra todos os drenos de combustível. Essa interessante funcionalidade, além de possibilitar o conforto numa operação de praxe, reduz consideravelmente o tempo de preparação da aeronave para o voo após o pernoite. Outra novidade nesse aspecto é a concepção dos assentos de passageiros, que são dobráveis. Desse modo, em poucos minutos podem ser retirados pelo próprio piloto e guardados no bagageiro traseiro. O kit de bagagem inferior, apesar de ser equipamento opcional, aumenta não apenas a capacidade de carga do avião, mas, também, sua versatilidade, já que é possível reconfigurar a máquina com extrema facilidade e rapidez para a próxima missão. Tudo isso transforma o K-100 em um poderoso transportador de cargas.
O sistema de aviônicos é moderno, simples e funcional. O bonito painel possui como equipamento padrão de fábrica três grandes telas de LED Garmin 1000 com tecnologia de visão sintética e TAWS (Terrain Avoidance and Warning System, o sistema de alerta e perigo para proximidade do terreno), duas caixas de controle de áudio (maior segurança), sistema opcional de TCAS (Traffic Collision Advisory System) e um painel digital de controle individual do sistema de ar-condicionado.
A versatilidade do Kodiak o torna um forte candidato a conquistar o mercado para aqueles que desejam uma aeronave tanto para uso particular quanto comercial. O espaço interno proporciona conforto aos passageiros e os três níveis de acabamento oferecidos pelo fabricante devem agradar a diferenciadas opiniões, ao gosto do cliente. A confiabilidade do motor e os modernos aviônicos colocam o Kodiak na vanguarda da aviação atual, fato confirmado pelo sistema digital integrado de controle de voo e navegação.
O Quest Kodiak K-100 está em operação ao redor do mundo enfrentando as mais diversas condições climáticas. Ele é operado nas modalidades de fretamento, empresas, operadores privados, grupos de paraquedismo, governos e organizações humanitárias. O custo operacional direto do Kodiak é menor do que o da maioria das aeronaves a pistão existentes no mercado. Isso faz dele uma nova e interessante opção para potenciais operadores de uma vasta gama de missões. O monoturbo-hélice da Quest é realmente um urso em termos de robustez, transportando sozinho o peso ou a quantidade de passageiros que exigiriam o uso de duas aeronaves com mesmo custo operacional.
A rapidez na operação e manutenção de campo, aliada a uma construção rústica, alta capacidade de carga e desenho simples, credencia o Kodiak para operações de fretamento. Confiável no voo em condições visuais ou por instrumentos, o avião também fica fora de operação por pouco tempo quando precisa passar por revisões mandatórias. Isso graças a um simplificado programa de manutenção e inspeções definido pela fábrica, praticamente eliminando as dores de cabeça e os prejuízos nesses períodos.
Além do uso particular, o Kodiak pode ser uma interessante plataforma aérea para missões de busca e salvamento, evacuação aeromédica, aerofotogrametria e mapeamento e até mesmo operação de lançamento de paraquedistas. Sua capacidade de executar missões de vigilância e reconhecimento é garantida pelo desenvolvimento de um sistema Air Claw em conjunto com a gigante Northrop Grumman Corporation, o que possibilitou a certificação do Kodiak K-100 na FAA como uma aeronave com capacidade multitarefa.
O quesito pós-venda, que inclui manutenção, garantia e fornecimento de peças, talvez represente o principal desafio da Quest Aircraft no Brasil neste momento, justamente por conta de a aeronave ser uma novidade por aqui, embora já esteja operando em outros 15 países. A empresa, que tem capacidade de montar 48 aeronaves por ano, espera entregar quatro a cinco unidades anualmente no país. O fabricante garante que já homologou uma oficina em Tatuí para fazer a manutenção do Kodiak e está em fase de homologação de outras. Já os flutuadores versão Aerocet, fabricados em fibra de carbono, devem receber certificação no segundo semestre de 2014.
* Publicado originalmente na AERO Magazine 240 · Maio/2014
Quest KODIAK K-100 | |
Fabricante: Quest Aircraft Company Preço: US$ 1,975,000.00 Assentos: 10 Portas: 3 Motor: Pratt&Whitney PT-6A – 34 Empuxo máximo: 750 shp Dimensões Comprimento: 10,41 m Envergadura: 13,71 m Altura: 4,64 m Área alar: 22,30 m² Pesos Vazio: 1.710 kg Máximo de decolagem: 3.290 kg Carga paga típica: 1.603 kg Performance Velocidade de estol VSO com flap: 60 ktas Razão de subida a 3.050 m (10.000 pés): 266 m/min (874 pés/min) Velocidade máxima: 340 km/h (183 ktas) Velocidade de cruzeiro (12.000 pés): 138 km/h (174 ktas) Teto de serviço: 7.620 m (25.000 pés) Alcance (com 45 minutos): 2.072 km (1.119 nm) Distância de decolagem: 87 pés (285 m) Distância de pouso (sem reverso): 65 pés (215 m) Capacidade de combustível: 1.211 litros (320 gal) |
Por Ricardo Beltran Crespo | Fotos Maurício Lanza
Publicado em 06/10/2019, às 00h00 - Atualizado às 17h08
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