Proficiência média dos aviadores recém-saídos de instituições de ensino brasileiras atinge níveis alarmantes
Depois de 20 anos de sucateamento de seu sistema de formação de pilotos, o Brasil vive um momento em que os empregadores deixaram de selecionar os melhores para aproveitar os aceitáveis. Uma situação incompatível com a superlativa infraestrutura de educação aeronáutica do país, a segunda maior do mundo, construída com investimentos do Ministério da Aeronáutica ao longo de 64 anos. O acervo nacional possui mais de 200 instituições de ensino, entre aeroclubes, escolas particulares e universidades, e pelo menos 600 aeronaves de instrução, a maioria em condições de voo ou necessitando apenas de motores, revisões ou componentes. São cerca de 500 salas de aula específicas para instrução, além de simuladores e pistas de pouso. A questão é que, diante da atual demanda, uma plataforma como essa poderia - e deveria - ser capacitada e aparelhada em curto espaço de tempo. Mas não está sendo. Nas palavras de executivos do setor, "estamos morrendo de sede ao lado do poço".
Definitivamente, o sistema de aviação civil brasileiro experimenta uma severa apreensão, sobretudo em relação à manutenção do seu nível de crescimento e ao padrão de segurança operacional. Três razões, dentre outras, que começaram a constituir-se há duas décadas, estão no cerne dos problemas que o país enfrenta e que deverão exacerbar-se nos próximos anos, caso as providências necessárias não sejam tomadas imediatamente. Primeiro, a decisão do extinto DAC (Departamento de Aviação Civil) de entregar a formação dos pilotos brasileiros à sua própria sorte, depois a incapacidade da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) de identificar a "bomba-relógio" que havia sido armada e, finalmente, o boom econômico do país associados ao advento dos glass cockpits.
A urgência para o enfrentamento do problema tem uma razão sistêmica. Qualquer ação principiada agora terá um tempo de reação de quatro ou cinco anos, prazo em que os problemas já terão se agravado. Isso porque, sabe-se, apesar de viajarmos próximos à velocidade do som, o sistema aeroespacial reage com lentidão e demanda tempo e recursos financeiros para entrar em regime de cruzeiro. E esse é também o caso da formação de um piloto. Até atingir o posto de comandante de linha aérea, ele precisa de anos de treinamento e acúmulo de experiência, além de alguns milhares de dólares para reunir as condições necessárias para assumir o assento esquerdo de um jato comercial. O mesmo se aplica à construção, ampliação ou modernização de um aeroporto, à formação de um mecânico ou qualquer outro especialista para o setor, ao desenvolvimento de uma nova aeronave, à ampliação da frota de uma empresa aérea ou à ampliação de sua malha de cidades atendidas.
Os problemas de formação aeronáutica no Brasil tiveram início na década de 1990, quando o antigo DAC resolveu, de forma abrupta, "despaternalizar" o sistema de ensino para pilotos. A administração daquele órgão entendeu que não fazia mais sentido o Ministério da Aeronáutica de então continuar subsidiando a formação de pilotos, como fazia havia pelos menos 40 anos - fornecendo aviões, motores, simuladores de voo e bolsas de estudos ocasionais, financiando reforma e construção de hangares e salas de aula e socorrendo entidades que entravam em crise financeira. Havia também forte apoio às atividades aerodesportivas, como o aeromodelismo, paraquedismo e o voo a vela por meio da compra de planadores, aviões acrobáticos, paraquedas e patrocínios de campeonatos, além do envio de equipes aerodesportivas para competirem no exterior.
Para dar uma ideia do tamanho desse incentivo, o governo criou mais de 300 aeroclubes e doou cerca de 2.000 aviões de instrução, sendo que os últimos 500 Aero Boeros, adquiridos na Argentina, foram entregues para essas entidades dois anos antes do início da "despaternalização". Até aquele momento, o Departamento de Aviação Civil exercia fiscalização na administração financeira, na formação de pilotos e nos padrões de manutenção. Em resumo, os aeroclubes, além de prestar contas de suas atividades, sofriam rotineiras fiscalizações no padrão dos seus serviços. Apesar de eventuais falhas, excesso de burocracia e falta de pessoal qualificado para essas fiscalizações, além do próprio favorecimento do lazer em detrimento da formação, o rigor exercido pelos militares e o poder das verbas públicas faziam com que o padrão de formação do aviador brasileiro fosse bastante elevado.
Nesse cenário, o Brasil teve escolas de aviação civis comparadas às melhores do mundo, embora tenha se tornado defasado no decorrer dos anos, com o advento de novas tecnologias e a manutenção de procedimentos anacrônicos. Acrescente-se que as aeronaves comerciais que os formandos de então iriam voar nas empresas aéreas guardavam diferenças não tão severas de sistemas frente a suas antigas aeronaves de instrução. O grande "step" era o que se convencionou chamar de "transição para o jato".
Mas, de forma totalmente intempestiva, "do dia para a noite", as autoridades do então Departamento Técnico do antigo DAC cortaram o fornecimento de verbas ao sistema, fizeram a doação das suas aeronaves aos aeroclubes e relaxaram desastrosamente na fiscalização. Começava ali o desmonte de um sistema que, mesmo com seus problemas, havia consumido 54 anos para ser montado e que iria apresentar as suas graves consequências 10 anos depois. O processo só não aconteceu mais rápido porque foi providencialmente retardado pela sobra de excelentes profissionais disponibilizados pelas quebras das empresas Transbrasil, Interbrasil Star, Vasp e, posteriormente, Varig, Nordeste e Rio-Sul.
Outra razão que levou ao sucateamento do ensino aeronáutico no Brasil começou a ocorrer junto com a agonia do DAC, e a criação da nova Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), executada de forma atabalhoada. Em meio a uma transição desastrosa, sem mão de obra qualificada (que já faltava ao DAC), tentando sobreviver ao caos ali instalado, as novas diretorias que se sucederam buscaram manter a "cabeça fora da água" e passaram longe do problema "formação de pilotos".
BRASIL POSSUI MAIS DE 200 INSTITUIÇÕES DE ENSINO E PELO MENOS 600 AERONAVES DE INSTRUÇÃO
Certos de que o sistema teria condições de ser substituído pela iniciativa privada, e influenciados pelo surgimento de universidades que passaram a oferecer o curso de Ciências Aeronáuticas - com qualidade superior à dos programáticos do extinto DAC e o da Anac, segundo o que se comenta entre os alunos de hoje em dia -, os gestores entenderam que a antiga estrutura e os novos recursos em faculdades seriam suficientes para cobrir toda a demanda.
O tempo mostrou que estavam errados. A estabilização econômica brasileira e o forte crescimento do setor determinaram índices jamais alcançados. Além da expansão das empresas de linhas aéreas regulares, também cresceram em escalas significativas os taxis-aéreos e a aviação corporativa, demandando pilotos e mecânicos altamente qualificados. Acrescente-se que, enquanto o nível básico da formação de pilotos (e mecânicos) caía drasticamente - com alunos recebendo instrução em instituições desqualificadas, em aeronaves ultrapassadas e em péssimo estado de manutenção, por instrutores mal pagos, despreparados e desmotivados, apenas acumulando horas no currículo para disputar uma vaga na aviação comercial, e com o sistema totalmente "à deriva", sem pessoal qualificado para fiscalizar uma estrutura que caminhava para a falência -, outro ingrediente perverso passou a fazer parte desse quadro: a inovação tecnológica na indústria aeronáutica. O nível de sofisticação dos sistemas de bordo passou a demandar pessoal cada vez mais qualificado em sua base de formação. Na medida em que os profissionais qualificados provenientes de empresas que faliram, como a Transbrasil, Vasp e Varig, começaram a se aposentar compulsoriamente, a demanda por pilotos se tornou dramática.
Começava, dentro do setor, uma disputa por gente qualificada sem precedentes. Paralelamente, também crescia a demanda por profissionais de voo vindas de países em desenvolvimento de Ásia, Oriente Médio, Índia, África e América Latina. Como previsto, os empregadores, depois de absorverem a "raspa do tacho", começaram a baixar os seus níveis de exigência e repensarem os investimentos em qualificação complementar de seus contratados (algo impensável há alguns anos, quando as mesas dos diretores de operações estavam atulhadas de currículos de candidatos altamente qualificados). Em uma conversa informal, o diretor de operações de uma empresa aérea brasileira dimensionou o problema. Segundo ele, há na companhia para a qual trabalha um percentual alarmante de candidatos a piloto, já selecionados e iniciando os treinamentos de Ground School (treinamento de solo antes da fase de instrução de voo), que precisam ser desligados por não possuírem conhecimentos mínimos para acompanhar o início de treinamento básico da empresa. "É mais ou menos como mandar para a universidade alguém que não possui o segundo grau", comparou o executivo.
O mais preocupante, na opinião desse mesmo dirigente, é que o grupo de pilotos barrados pelos filtros da companhia é numeroso demais. Tão alarmante quanto é que, com raríssimas exceções, os contratados traziam deficiências ou vícios de formação que teriam de ser corrigidos posteriormente. Esse tipo de problema, no passado, bem mais ameno e menos delicado, era corrigido nas escolas da Panair, da Real Aerovias, da Vasp e na Evaer (Escola Varig de Aeronáutica), na qual se obtinha o famoso "Padrão Varig" de segurança e serviços - modelo inviável nos tempos atuais, principalmente por custos, de acordo com as próprias companhias.
COMPANHIAS DISPENSAM MUITOS CANDIDATOS A PILOTO, JÁ SELECIONADOS E INICIANDO GROUND SCHOOL, POR FALTA DE CONHECIMENTOS MÍNIMOS
Na conversa, diante da dimensão do problema, algumas perguntas ficaram sem resposta: "Para onde vão esses profissionais refugados por falta de proficiência mínima? Quem os estará contratando? Que treinamento eles irão receber dos novos empregadores? Isso tem a ver com o crescente número de acidentes no país?". Outros diretores de operação confirmam a situação. Um deles, aliás, profissional extremamente respeitado no meio, admite: "Estamos nos virando com o que temos, e como podemos. Apesar de tentar suprir essas deficiências com um treinamento intensivo, em muitos casos, somos forçados a desistir. Chegamos a cogitar várias alternativas, como contratar profissionais com a carteira de piloto privado e complementar o treinamento, ou até recriar uma nova Evaer. O problema é que, basta formarmos um profissional de bom nível, para a concorrência fazer uma oferta melhor e carregar todo o investimento. Em tese, o mais rápido e econômico é atrair os profissionais da concorrência".
Ao que tudo indica, as companhias, que não estão dispostas a elevar o patamar salarial de seus tripulantes, estão se virando com o que têm. E muitos profissionais aviadores, admitidos nessas circunstâncias, estão sendo promovidos para comando por "tempo de serviço" sem possuírem alicerce cultural e técnico que sustente tanta responsabilidade. A violenta automação das novas aeronaves, aliada a uma fraca formação básica e a um deficiente treinamento de skill (habilidade e destreza na pilotagem), além de fatores como fadiga, pode colocar o voo em risco, numa situação de emergência em que "o aviador não dá conta de voar a aeronave".
Apesar da gravidade da situação, existem caminhos a serem seguidos. Devem participar da solução não apenas a Secretaria de Aviação Civil (SAC) e a Anac, mas também o Comando da Aeronáutica, as empresas aéreas e as entidades de aviação civil. A ideia é que, juntando forças e expertise, todos possam trabalhar em algo como um Plano Nacional de Formação Aeronáutica e, rapidamente, começar a capacitar os aeroclubes ou escolas melhor aparelhadas para a formação das primeiras turmas de instrutores de voo. Sim, já faltam instrutores de voo para formar pilotos. Assim como fez o governo Getúlio Vargas, apoiado pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand, que lançou as campanhas "Deem asas à juventude" e "Campanha Nacional de Aviação", decisivas para a formação de milhares de pilotos, o país precisará fornecer bolsas para a formação de instrutores de voo e, depois, partir para a formação de pilotos. Várias são as ferramentas que poderão ser utilizadas, acreditam os especialistas, embora a mais eficiente delas fosse reduzir a carga tributária e a burocracia do sistema, barateando os custos.
BRASIL CONVIVE COM PADRÕES DE FORMAÇÃO EXCESSIVAMENTE DIFERENCIADOS
Uma primeira ideia seria lançar um programa do tipo "Adote um Aeroclube", como fez Chateaubriand, que levou à doação de mais de mil aviões por empresas privadas. Essas empresas, incluindo as aéreas, investiriam recursos nos aeroclubes, via benefícios fiscais. É claro que não podemos cair em um modelo assistencialista, que minou a capacidade dos aeroclubes de se desenvolver e de ser competitivos no que tange a formação. E também precisaríamos considerar a dificuldade econômica de as companhias, que poderiam inviabilizar essa ideia.
Mais que formar os instrutores, o país também precisaria criar ferramentas para retê-los em seus aeroclubes ou escolas de origem, pelo menos até ressarcirem todo ou parte dos investimentos que receberam em forma de bolsa de estudos. Isso já foi praticado com muito sucesso em vários aeroclubes e ainda existem hoje profissionais de formação disponíveis no mercado que aceitariam de bom grado voltar à ativa e emprestar sua experiência. Outra medida seria criar condições para pagar melhor um instrutor de voo e atrair pilotos experientes e não apenas recém-checados precisando acumular hora de voo.
Existe know-how disponível para implementar um programa dessa natureza em pouco tempo. Para atender a uma primeira investida, frente à urgência, as autoridades poderiam utilizar verbas do Profaa (Programa Federal de Auxílio a Aeroportos) ou até do Ataero (Adicional de Tarifas Aeronáuticas) ou, ainda, buscar outros recursos. Futuramente, haveria necessidade de estabelecer outras fontes, como fazia o antigo DAC. Ademais, para que um programa como esse não venha a se tornar uma "farra do boi", seria preciso criar sistemas permanentes de avaliação, como o IGC (Índice Geral de Cursos), utilizado pelo Ministério da Educação para avaliar o nível dos cursos oferecidos, ou até algo parecido com o Ideb (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico). Também seria preciso tomar cuidado com a dinâmica perversa do subsídio, que leva à necessidade de aumento de arrecadação, ou seja, mais impostos. Na prática, o importante é que haja um funil através do qual os pilotos teriam de passar. Não é mais possível conviver com padrões de formação tão diferenciados. Em aviação, convencionou-se chamar de "padrão aeronáutico" tudo o que carrega excelência em sua produção ou execução. Lamentavelmente, o Brasil começa a deixar de lado essa excelência quando se fala da peça mais importante dessa indústria: o piloto (e o mecânico).
Décio Corrêa | | Fotos Edmundo Ubiratan
Publicado em 28/02/2012, às 13h34 - Atualizado em 04/05/2015, às 10h45
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