Debates à parte, a criminalização de acidentes aeronáuticos revela-se uma tendência irreversível enquanto tripulantes e demais profissionais envolvidos na atividade aérea correm cada vez mais risco de se tornar réus por falta de consciência jurídica
Os processos judiciais se tornaram realidade na aviação. Há um inegável aumento da incidência de pilotos e demais profissionais envolvidos na atividade aérea colocados na condição de réus nos tribunais mundo afora. Em alguns casos, incluindo os recentes desastres ocorridos no Brasil, houve criminalização. A lista de incidentes e acidentes aéreos com condenação de aviadores não só é longa como cresce globalmente. Em poucas palavras, a criminalização em caso de acidentes e incidentes aeronáuticos é real, crescente, inevitável e irreversível. Trata-se de um fenômeno que ocorre há décadas, em países democráticos e autoritários, subdesenvolvidos, em desenvolvimento e desenvolvidos, e que têm a aviação avançada ou nem tanto. Sim, a criminalização perfaz todos os continentes e culturas.
Os diversos segmentos da sociedade e da indústria passam por mudanças importantes no que se refere à responsabilidade jurídica de seus agentes. Com a atividade aérea, não é diferente. Por isso, cada vez mais, há necessidade de juristas que não apenas entendam de aviação como, também, tenham vivência prática nesta complexa e dinâmica atividade. O problema é que a comunidade aeronáutica, principalmente a brasileira, nada ou pouco tem feito para lidar com essa realidade e caminha em um rumo desastroso na preparação de seus profissionais, sem destino nem alternativa senão a criminalização.
A comunidade aeronáutica prefere se apoiar nos argumentos oriundos da cultura de segurança de voo para evitar ou eliminar as ações de criminalização. Ocorre que descriminalização se obtém com argumentos jurídicos ao passo que argumentos de segurança de voo servem tão somente – o que não é pouco, evidentemente – para evitar e prevenir acidentes. Se houve um acidente, é porque faltou prevenção. Após o acidente consumado, não há mais o que se falar sobre prevenção. Ainda que se possa aprender algo para prevenir futuros desastres, o acidente consumado abre as portas para que os interesses legitimados sejam concretizados, desembocando em responsabilidade jurídica.
Outro grande equívoco da comunidade aeronáutica é utilizar o “Anexo 13”, que regulamenta os procedimentos de investigação técnica de acidentes aéreos, para desqualificar a criminalização. Sim, segundo esse anexo, a investigação não deve apontar culpa nem responsabilidades. Porém, em nenhum ponto o “Anexo 13”, ou a própria Convenção de Chicago, que regulamenta a aviação Civil Internacional, sugerem que não se deva realizar uma investigação pelas autoridades judiciárias com a finalidade de se apurar responsabilidade jurídica. Pelo contrário, o próprio “Anexo 13” admite a coordenação entre as autoridades investigativas e as autoridades judiciárias.
Uma fraca e inconsistente teoria tem sido alastrada no seio da comunidade aeronáutica. A tese é a de que um acidente aéreo somente poderia ser criminalizado em casos de dolo ou de falta grave. O problema é que os defensores dessa teoria ignoram ou desconsideram o “Attachment E”, que é um importante dispositivo do “Anexo 13” e prevê as condutas dolosa e culposa. Desconsideram, também, o artigo 261 do Código Penal Brasileiro, que prevê a conduta dolosa e culposa em caso de acidentes aéreos. Discutem descriminalização sem fazer valer as leis penais. Ao agirem dessa forma, atuam desconsiderando preceitos elementares do Direito e chegam a conclusões totalmente equivocadas e desprovidas da essência jurídica.
Profissionais da aviação mudariam condutas, comportamentos e procedimentos ao adquirirem consciência jurídica
É raríssimo ver um profissional da aviação em condições de discutir e debater a “Convenção de Chicago” e o “Anexo 13” e realizar uma interpretação jurídica eficaz e eficiente. Muitos profissionais, principalmente pilotos e controladores de tráfego aéreo, têm dúvidas das consequências jurídicas de muitas condutas no exercício de suas funções.
A resposta está nesta expressão: “consciência jurídica”, que traduz uma necessidade reconhecida pelos mais renomados aerojuristas do mundo. Pilotos, controladores de voo e demais profissionais da atividade aérea devem se unir no sentido de adquirir um conhecimento jurídico (consciência jurídica) que satisfaça tanto a realidade atual quanto a futura e possam evitar dissabores nos tribunais. O Direito Aeronáutico ensinado para os profissionais da atividade aérea, da maneira como tem sido ministrado até os dias de hoje, revela-se ineficiente e ineficaz para que esses profissionais possam adequar suas condutas diante do momento jurídico atual. Temos plena certeza de que muitos profissionais da aviação mudariam suas condutas, comportamentos e procedimentos ao adquirirem consciência jurídica.
É bem provável que a comunidade aeronáutica insista em permanecer inerte diante de tão importante tema, mas esse desconhecimento trará muito mais males do que benefícios. E pagaremos muito caro por essa pretensa ignorância. Os apelos feitos em prol da descriminalização pelas associações de classe têm sido inúteis pela inconsistência de conteúdo. A tais argumentos falta o elemento principal, ou seja, a difusão da consciência jurídica.
Talvez o profissional da aviação esteja se questionando como evitar esta realidade jurídica que assola a atividade aérea e até que ponto no exercício da atividade aérea possa ser responsabilizado juridicamente. Não cabe aqui debater o mérito da questão nem apresentar argumentos contra ou a favor da criminalização em acidentes aeronáuticos, mas, sim, constatar que a criminalização é uma tendência irrefreável e, principalmente, orientar os profissionais da atividade aérea no sentido de evitarem implicações jurídicas em suas carreiras. Para isso, ficam estas considerações, que podem mudar a conduta de profissionais da aviação e estimular uma busca por mais consciência jurídica:
Advogados, promotores, delegados e juízes
estão cada vez mais independentes para realizar investigações para fins de responsabilidade jurídica
* Daniel Calazans (Professor Kalazans) é piloto comercial, controlador de tráfego aéreo, autor de livros sobre Direito Aeronáutico e Acidentes Aéreos, investigador aeronáutico e especialista em Direito Aeronáutico.
Episódios em que pilotos ou controladores reponderam penalmente por sua conduta durante desastres ou incidentes aéreos
Gol x Legacy – Brasil (2006)
O Boeing 737-800 da empresa Gol fazia o percurso de Manaus (AM) a Brasília (DF) quando se chocou com um jato executivo Embraer Legacy 600. O fatídico voo 1907 ocorreu em 29 de setembro de 2006. Com o choque, o avião da companhia aérea brasileira desapareceu dos radares aéreos. O julgamento levou à condenação penal de pilotos e controladores envolvidos no acidente por atentado contra a segurança de transporte aéreo.
TAM A320 – São Paulo (2007)
No dia 17 de julho de 2007, por volta das 18h48min, uma aeronave Airbus A320, operada pela empresa aérea brasileira TAM, voo 3054, procedente de Porto Alegre, acidentou-se após pousar na pista principal, cabeceira 35L (35 esquerda) do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A aeronave percorreu toda a extensão da pista na velocidade aproximada de 170 km/h, derivou à esquerda, ultrapassou o canteiro e sobrevoou a Avenida Washington Luís até se chocar contra um prédio, seguindo-se incêndio de grandes proporções que destruiu completamente a aeronave e a edificação. A tragédia causou a morte de 187 ocupantes da aeronave e outras 12 pessoas que estavam no edifício. Em julho de 2011, o Ministério Público Federal brasileiro ofereceu denúncia contra a diretora da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e executivos da TAM, incluindo o diretor de Segurança de Voo e o vice-presidente de Operações.
Varig 737-200 – Brasil (1989)
Voo VRG 254, Brasil, 1989. O acidente ocorreu depois de um pouso forçado por falta de combustível. O voo, que ia de Marabá para Belém, não chegou ao seu destino. Após cometer um erro de navegação em seguida à decolagem, o comandante voou durante mais de três horas sem saber onde estava. Ao acabar o combustível, o piloto teve de realizar um pouso forçado às 21h06min (hora local) em plena floresta amazônica, próximo a São José do Xingu, no Mato Grosso. Na aterrissagem, o impacto do Boeing 737-200 contra as árvores causou a morte de 12 ocupantes e ferimentos em outros 42. Piloto e copiloto sobreviveram e foram processados e condenados por homicídio culposo e lesão corporal culposa.
Tuninter ATR 72 – Itália (2005)
Um piloto acusado de ter começado a rezar no lugar de tomar medidas de emergência para evitar que seu avião caísse foi condenado a dez anos de prisão por homicídio culposo por um tribunal italiano em março de 2009. O piloto tunisiano estava no comando de um avião da companhia aérea Tuninter quando a aeronave teve problemas e acabou caindo no mar na costa da Sicília, em agosto de 2005, matando 16 das 39 pessoas a bordo.
Concorde – França (2000)
Engenheiros, mecânicos e diretores foram processados penalmente pelo acidente ocorrido com a aeronave Concorde. O jato supersônico da Air France pegou fogo logo após decolar do aeroporto Charles de Gaulle, na capital francesa, no dia 25 de julho de 2000. O acidente deixou 113 mortos.
Helios – Grécia (2005)
Em agosto de 2005, um Boeing 737-300 apresentou problemas de pressurização, resultando na morte de 120 passageiros e tripulantes por falta de oxigênio quando sobrevoava Atenas. Esgotado o combustível, a aeronave colidiu fortemente com o solo grego. Foi uma falha humana que causou a despressurizarão da aeronave. Os engenheiros de manutenção, durante uma inspeção no solo, deixaram o sistema de pressurização (botão) na posição manual, quando o correto seria deixá-lo na posição automático. Isso levou o avião a despressurizar lentamente à medida que ia subindo e, a cerca de 3.000 metros, a tripulação e a maioria dos passageiros já sofriam anóxia total – coma profundo em função da falta de oxigênio. Em 23 de dezembro de 2008, os profissionais responsáveis pela manutenção da aeronave foram acusados em Chipre, por homicídio culposo e por causar morte por imprudência e negligência.
Air France DC-6 – Cairo, Egito (1956)
No dia 20 de fevereiro de 1956, uma aeronave do tipo DC-6, operada por uma empresa francesa, acidentou-se no aeroporto internacional do Cairo. Com a aeronave mal estabilizada na aproximação final, a tripulação decidiu prosseguir para o pouso ao invés de arremeter. Durante o pouso, a aeronave chocou-se violentamente com o solo, resultando na morte de 49 passageiros. O comandante foi condenado por homicídio culposo.
Boeing 727 – Taipei, China (1968)
No dia 16 de fevereiro de 1968, um Boeing 727 se acidentou no aeroporto de Taipei durante a aproximação de precisão. Nesse acidente 12 pessoas morreram, incluindo a esposa do comandante. O comandante foi impedido de sair da China, o que o impossibilitou de acompanhar o funeral de sua mulher nos Estados Unidos. Ele foi processado por homicídio culposo, sendo absolvido pela Corte Criminal de Taipei em 1969.
Caso Zagreb – Croácia, Iugoslávia (1976)
No dia 10 de setembro de 1976, uma aeronave do tipo Trident 3B, da empresa aérea inglesa British Airway, colidiu com outra aeronave do tipo DC-9 da empresa Inex-Adria, nos ares de Zagreb, capital da Croácia. Todos os 176 ocupantes das duas aeronaves morreram no acidente. No dia 11 de abril de 1977, um dos controladores envolvidos no acidente foi condenado a sete anos de prisão. Após um recurso, ele foi libertado após ter cumprido 27 meses na cadeia.
Avensa DC-9 – Venezuela (1983)
No dia 11 de novembro de 1983, um DC-9 da empresa aérea Avensa perdeu o controle durante o pouso, resultando em incêndio e morte de 21 passageiros e um tripulante. Piloto e copiloto foram processados e condenados a oitos anos de prisão. No entanto, ambos receberam perdão do presidente da República da Venezuela.
British Airways Boeing 747 – Londres, Inglaterra (1989)
Em novembro de 1989, um Boeing 747 da British Airway realizou um procedimento de arremetida incorreto, passando a três metros e meio de altura de um prédio. Não houve acidente, mas o comandante perdeu sua licença para voar e foi condenado a uma multa de 2.000 libras por ter colocado a vida dos passageiros em risco. No dia 30 de novembro de 1992, cometeu suicídio.
Inter Austral Airlines – Argentina (1995)
A porta de uma aeronave se abriu em pleno voo, levando à morte um membro da tripulação. Três engenheiros e um técnico em manutenção foram processados por negligência.
Skyguide – Suiça (2002)
É um dos acidentes mais bizarros da história da aviação, envolvendo uma aeronave russa do tipo Tupolev Tu-154 M, levando 60 passageiros (a maioria crianças) e nove tripulantes, e outra aeronave da empresa DHL do tipo Boeing 757 (23APF). Todos os ocupantes das duas aeronaves morreram. Um dos pilotos recebeu duas instruções contraditórias: a instrução de descer, do controlador de tráfego aéreo, e outra para subir, do TCAS. A quem obedecer? O piloto russo no Tupolev ignorou a instrução do TCAS para subir e começou a descer, como instruído pelo controle de tráfego áereo, resultando na colisão entre as duas aeronaves sobre as cidades de Überlingen e Owingen, no sul da Alemanha. Uma investigação criminal começou em maio de 2004. Em 2006, um promotor suíço apresentou acusações de homicídio culposo contra oito funcionários da Skyguide (empresa de controle de tráfego aéreo). O promotor pediu penas de prisão de 6 a 15 meses, alegando “homicídio por negligência”.
Quase colisão JAL – Japão (2001)
Uma quase colisão entre o JAL Boeing 747 e o JAL DC-10 ocorreu minutos antes de o Boeing realizar o pouso em Tóquio. Para evitar a colisão, o piloto do 747 realizou uma manobra evasiva muito violenta, resultando em lesão corporal em 42 passageiros. O incidente se deu em razão das mensagens conflitantes entre as instruções do controlador de tráfego aéreo e as orientações do TCAS. Se a colisão ocorresse, morreriam 677 pessoas e o episódio se tronaria o maior acidente da história da aviação. Dois controladores e o piloto que obedeceu às instruções do controlador foram processados penalmente. Em 2006, todos foram absolvidos. Mas uma apelação em 2008 mudou a sentença anterior, resultando na condenação dos controladores.
Teterboro – Nova Jersey, EUA (2005)
Em fevereiro de 2005, uma aeronave do tipo Challenger CL-600-1 A11 ultrapassou os limites da pista durante a manobra de decolagem, atingindo uma avenida e colidindo com veículos e um prédio. Os dois pilotos e dois ocupantes dos carros atingidos ficaram gravemente feridos. Uma das causas do acidente, segundo apurou o NTSB, foi o descumprimento das normas de peso e balanceamento por parte da tripulação, que colocou uma quantidade de combustível que comprometeu o peso de decolagem. Dentre as várias acusações criminais, profissionais da aviação foram processados por terem mentido aos órgãos federais durante a investigação e por terem colocado a segurança da aeronave em risco ao desobedecer às normas de segurança referente ao peso e balanceamento.
Por Daniel Calazans (Professor KALAZANS)*, especial para AERO Magazine
Publicado em 16/12/2013, às 00h00 - Atualizado às 08h41
+lidas