O alerta de Santa Maria para que questões conhecidas pela comunidade aeronáutica não se convertam em catástrofes e as lições da aviação para prevenir tragédias como a da boate Kiss
Depois do Andraus, que matou dezesseis pessoas em fevereiro de 1972, verificou-se o que era óbvio naqueles tempos, São Paulo estava despreparada para uma grande tragédia. Embaladas pela comoção, as promessas das autoridades incluíam adequação às normas de construção civil, fiscalização reforçada e corpo de bombeiros melhor treinado e mais bem equipado. Precisou acontecer um acidente de proporções ainda mais avassaladoras, o incêndio do Joelma, que ceifou 189 vidas em fevereiro de 1974, para que as promessas saíssem do campo das ideias para serem efetivadas. Paralelamente, alguns novos edifícios ganharam áreas de pouso de emergência, que foi o grande diferencial entre a facilidade de resgatar pessoas por helicópteros do alto do Andraus e a dificuldade de fazer o mesmo no alto do Joelma. Essa infraestrutura foi uma das molas para a expansão da frota de helicópteros na capital paulista, além do trânsito cada dia mais caótico e dos níveis alarmantes de criminalidade. As coisas parecem acontecer assim mesmo: a comprovação do óbvio é o que motiva as mudanças e, em muitas ocasiões, o óbvio tem que ser comprovado mais de uma vez.
Elevada concentração de pessoas num espaço reduzido em meio a material altamente combustível e que gera fumaça tóxica ao ser queimado, com saídas mal sinalizadas e inadequadas para o caso de emergência, é algo superado há anos na aviação, especialmente em se tratando de normas e diretrizes envolvendo autoridades internacionais, em que o evidente já foi tristemente comprovado e medidas mitigadoras testadas e colocadas em prática. Mas deve ter sido a descrição de um ambiente assim e o trágico resultado de vítimas fatais que tenha motivado a imprensa a definir a casa noturna que incendiou em Santa Maria como "armadilha mortal". Pela quantidade de pessoas falecidas e internadas, a casa noturna era uma "armadilha" antes mesmo do momento em que abriu suas portas para receber os clientes naquela noite de janeiro. O estopim para ser adjetivada como "mortal", teria sido o acendimento de um sinalizador no palco.
FOGO NO VOO SR11
Em 02 de setembro de 1998, a armadilha estava montada há bastante tempo para os ocupantes do voo SR111 da Swissair, mas todos, incluindo passageiros, tripulação, operador e autoridades, tinham certeza de que ela não existia. O MD11 se espatifou no mar e as 229 pessoas que estavam a bordo pereceram. Um esforço hercúleo que consumiu quase US$ 50 milhões permitiu içar peça por peça e reconstruir 98% da aeronave dentro de um hangar. A conclusão para explicar por que o avião não teria conseguido alternar o aeroporto de Halifax, no Canadá, depois de ter declarado emergência, teve origem num curto-circuito nos cabos do sistema de entretenimento.
Os investigadores concluíram que o material usado como isolante termoacústico de toda a cabine do avião, o MPET (Metallized Polyethylene Terephthalate), suportava o calor, mas não o fogo direto, e foi assim que o incêndio se propagou por toda a cabine. Quando resolveram alternar, os tripulantes perceberam que ainda teriam de alijar algum combustível para que pousassem com segurança. Talvez o tempo perdido com esse procedimento tenha selado o destino de todos a bordo. Entre as recomendações que as autoridades expediram em função desse acidente estavam tanto a substituição do MPET em todos os aviões quanto as melhorias nos sistemas de detecção de fumaça e fogo.
Num caso mais recente, no dia 16 de janeiro, pouco mais de uma semana antes do incêndio em Santa Maria, um moderníssimo Boeing 787 Dreamliner da All Nippon Airways (ANA), realizou um pouso de emergência no aeroporto de Takamatsu depois que sensores transmitiram à tripulação a informação de que havia fumaça num compartimento elétrico. A causa, aparentemente, foi o superaquecimento de uma das oito células de bateria de íon-lítio. A consequência foi a suspensão, já no dia seguinte, dos voos do modelo do avião pela FAA norte-americana (Administração Federal de Aviação, em inglês), que foi seguido pelas demais agências reguladoras pelo mundo, até que o fabricante possa provar que esse tipo de bateria pode ser utilizado com segurança nos voos do Dreamliner.
ANAC INTENSIFICA FISCALIZAÇÃO Polícia Federal, Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) realizaram no início deste ano uma ação inédita. Uniram suas competências para encampar uma grande operação de fiscalização que envolveu sete aeródromos na área do Rio de Janeiro. A Anac realizou 195 abordagens, que resultou em 25 não conformidades. O Decea, que colocou em operação uma estação transportável de radar, justamente para aferir a eficiência desse sistema que será utilizado em ações futuras onde não houver cobertura radar, acompanhou em tempo real o desenvolvimento de 1.048 voos, dos quais 17 apresentaram alguma irregularidade. A Polícia Federal foi requerida para garantir a segurança dos inspetores e para ser acionada no caso de ocorrência de algum ato ilícito. Um total de 220 pessoas esteve diretamente envolvido em toda a operação. Embora somente 3,5% das aeronaves fiscalizadas tenham apresentado algum tipo de irregularidade, esse tipo de ação há muito não acontecia e pegou os pilotos de surpresa. A maior parte das irregularidades referiu-se a documentação obrigatória a bordo, preenchimento de livro de bordo e planos de voo. De onde surgiu a necessidade de realizar essa operação e por que eventos semelhantes passarão a ser rotina em todo o território nacional? A resposta está na preocupante estatística de acidentes, que não para de crescer. O gráfico abaixo mostra bem o cerne do problema. Não há quem fique impassível diante de números que incomodam tanto. O comandante Rodrigo Duarte, presidente da Abraphe (Associação Brasileira de Pilotos de Helicóptero), apoia ações como as que aconteceram no Rio de Janeiro e diz que é importante que o usuário perceba a presença do Estado. Ele defende um entendimento entre as partes. Seguindo a mesma linha de discurso, o diretor de Segurança Operacional da Anac, Carlos Eduardo Pellegrino, diz que o grau de conscientização de cada piloto em adotar práticas absolutamente seguras de voo se reflete diretamente nos índices de segurança de voo como um todo. "Um voo disciplinado é o principal fator para mudança dos índices atuais de acidentes", avalia o dirigente da Anac. Para que esse quadro seja revertido, Pellegrino ressalta a importância do proprietário de uma aeronave como um personagem que tem sido pouco demandado em ações semelhantes do passado, mas que é fundamental para que os voos aconteçam dentro de padrões aceitáveis de segurança. Wagner Moraes, superintendente de Segurança Operacional da Anac, comemora os resultados atingidos nessa primeira operação conjunta e garante que essas ações vão acontecer regularmente em todo o território nacional. Ele acrescenta que a idéia não é simplesmente punir. "O principal objetivo é mudarmos a cultura de pilotos, operadores e proprietários de aeronaves". O chefe do subdepartamento de Operações do Decea, brigadeiro-do-ar José Alves Candez Neto, frisa a importância desse tipo de ação conjunta e sabe que o Decea exerce um papel vital na busca por níveis de segurança de voo de excelência na aviação geral brasileira. "Para que o número de acidentes seja revertido, os usuários devem perceber que estão sendo cobrados no cumprimento das regras de tráfego aéreo", diz o brigadeiro Candez. Talvez tenha mesmo que acontecer uma ação mais efetiva do Estado de forma a garantir que nossos voos sejam cada vez mais seguros. Trocas de informações como palestras e seminários vão acontecer ao longo do ano. |
EVACUAÇÃO NO 787
É muito provável que a possibilidade de superaquecimento dessa bateria fosse bastante remota e, apesar de todas as precauções tomadas no desenvolvimento do projeto, o problema ocorreu. Assim como os projetistas podem substituir uma bateria de níquel-cádmio por uma de íon-lítio para garantir um melhor desempenho, a tendência é que equipamentos, componentes e materiais mais modernos sempre sejam empregados. Por outro lado, as tragédias do passado sempre vão ditar os requisitos e procedimentos de segurança do futuro. O comandante da B787 da ANA fez exatamente o que tinha de ter sido feito. Declarou emergência, pousou em um aeroporto alternativo e evacuou todos os 137 ocupantes.
Afora algumas poucas escoriações, a maioria absoluta dos passageiros não teve problemas consideráveis para abandonar o avião, porque, entre os requisitos para certificar uma aeronave destinada ao transporte público, está a necessidade de demonstrar que todos podem deixá-la em 90 segundos. Um conjunto integrado de diversos elementos garante esse requisito. As inúmeras saídas de emergência possuem escorregadores infláveis que permitem aos passageiros chegarem ao solo de forma rápida e segura. O trabalho habilidoso e coordenado de um grupo especial de profissionais bem treinados passa a ter a oportunidade de mostrar a todos um detalhe importante da diferença entre um garçom e um comissário. O pronto atendimento e a preparação do pessoal de solo para receber a aeronave em emergência e garantir a sobrevivência de todos a bordo é elemento fundamental para o sucesso da evacuação em emergência.
A EVACUAÇÃO COMPLETA DE UM AVIÃO PRECISA ACONTECER EM ATÉ 90 SEGUNDOS PARA QUE O FABRICANTE OBTENHA SUA CERTIFICAÇÃO
Claro que são realidades completamente distintas, mesmo porque um avião que tenha capacidade para 400 pessoas não decola com 800, mas se trouxéssemos algumas lições da aviação para o agrupamento de pessoas em terra, talvez tivéssemos que lamentar uma menor quantidade de mortes.
BALÕES E RÁDIOS PIRATAS
O outro lado dessa mesma história é que, em se tratando de providências a serem tomadas domesticamente na aviação do Brasil, parece que temos algumas armadilhas esperando o estopim adequado para que se transformem em tragédias. A armadilha já estava montada, por exemplo, muito tempo antes do ATR-42 sair da pista molhada de Congonhas em julho de 2007, mas o "sinalizador" só foi aceso quando, no dia seguinte, quase duzentas pessoas perderam suas vidas no momento em que o TAM 3054 varou a pista - e só então mudanças importantes foram implementadas.
Será preciso que um avião de passageiros colida com um botijão de gás em pleno voo para entendermos que não cabe mais a atividade de baloeiro próxima aos grandes aeroportos brasileiros? Deverá uma rádio pirata influir desastrosamente na frequência entre pilotos e controladores para que essas atividades sejam definitivamente banidas e os responsáveis punidos exemplarmente? Será que precisamos da comprovação do óbvio para que tenhamos descidas por instrumentos nos destinos mais comuns de aviões e helicópteros da aviação geral?
É impressionante a quantidade de aeroportos que passaram a receber um número significativo de aeronaves cada vez mais modernas e, mesmo assim, ainda não possuem qualquer tipo de facilidade que permita a operação que não seja visual. Os prometidos PinS (Point in Space) não saíram do papel em locais onde precisamos deles. Para quem não está familiarizado com o termo, PinS é uma descida por instrumentos publicada pelo Decea e que não necessita de antenas do tipo VOR e ADF, basta o GPS. É um procedimento de descida que já existe nas plataformas de exploração de petróleo e em um ou outro aeroporto brasileiro, mas ainda não foi publicado em nenhum aeródromo no eixo Rio-São Paulo, por exemplo, embora associações de pilotos, como a Abraphe (Associação Brasileira de Pilotos de Helicópteros), estejam trabalhando no assunto há mais de uma década. Não seria óbvio que tivéssemos publicações oficiais de forma a ordenar e fazer fluir o tráfego aéreo com segurança?
Será que o prenúncio de uma armadilha mortal não é uma lição em si? Não seria mais inteligente simplesmente desarmá-la? Por que temos que esperar alguém acender o sinalizador?
PRONTIDÃO DA FAB EM SANTA MARIA A Força Aérea Brasileira (FAB) agiu rápido no socorro às vítimas do incêndio na boate Kiss em Santa Maria (RS), ocorrido na fatídica madrugada do dia 27 de janeiro último. A tragédia aconteceu na mesma cidade em que a FAB mantém uma de suas bases, e essa proximidade permitiu aos militares atender aos pacientes em estado grave com agilidade máxima. Ali foi montada uma verdadeira operação de guerra. Só no domingo a FAB fez 92 voos. No total, mais de mil militares da Força Aérea participaram da missão, incluindo 64 médicos e enfermeiros e quatro psicólogos. Pelo menos 39 feridos foram transportados em voos de UTI aérea de Santa Maria para Porto Alegre. Aeronaves de todos os portes foram disponibilizadas para ajudar nas operações de resgate. Helicópteros H-60 Blackhawk atuaram nos trabalhos de apoio às vítimas. Aeronaves C-97 Brasília, C-95 Bandeirante, C-98 Caravan e SC-105 Amazonas transportaram os pacientes de UTI para hospitais da região. Um avião C-130 Hércules ficou responsável por transportar equipes médicas e suprimentos para o atendimento de feridos. Além disso, equipes de cirurgia, médicos e enfermeiros do Hospital de Força Aérea do Galeão (HFAG) e do Hospital de Aeronáutica de Canoas (HACO) foram mobilizadas para auxiliar na operação. Um jato Legacy do Grupo de Transporte Especial da FAB, baseado em Brasília (DF), transportou medicamentos doados pelo governo dos Estados Unidos para o tratamento das vítimas do incêndio na boate Kiss. Foram 140 kits de remédio próprio para o tratamento de pacientes intoxicados. Outro jato da FAB levou para Porto Alegre doação de 3 mil cm² (três mil peças) de pele humana vinda do Chile, material usado em pacientes vítimas de queimaduras graves.
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Ruy Flemming
Publicado em 26/02/2013, às 07h12 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
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