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Segurança em Voo

Rasante sobre o perigo

Os riscos e as consequências de se voar visual sobre áreas habitadas ou grupos de pessoas ao ar livre em altura inferior a 300 m ou a menos de 150 m acima do solo ou da água


Era para ser só mais um domingo de sol no litoral paraibano, com belas praias repletas de gente em busca de mar e lazer. Seria um bom 12 de janeiro, não fosse um Piper, modelo PA 28R201, matrícula PR-RRP, executando sucessivos e temerários rasantes, em alguns momentos sobrevoando a orla a menos de três metros da água, quase sobre a faixa de areia. Enquanto alguns cidadãos indignados alertavam o aeroclube de João Pessoa e as autoridades no aeroporto Presidente Castro Pinto, outros filmavam os rasantes e avisavam a imprensa. Antes de o caso chegar aos noticiários nacionais, no dia seguinte, a população já esbravejava em redes sociais contra a imprudência do piloto. Um erro nos comandos, uma pequena desorientação espacial ou uma falha no motor provocariam uma tragédia. Não se tratou de um caso isolado, os registros estão repletos de atitudes imprudentes em voo. A diferença é que, desta vez, havia milhares de testemunhas.

Em 2010, o piloto proprietário de um bimotor Beechcraft Baron foi multado após receber sucessivos alertas da torre do Campo de Marte, em São Paulo. Em várias decolagens ele subia em ângulo acentuado, ultrapassando o nível de voo determinado e criando risco de colisão no ar com aviões comerciais pousando e decolando no aeroporto de Guarulhos. Em outro episódio, piloto e copiloto tiveram suas licenças retidas por um coronel furioso ao descobrir que eles haviam informado a torre de Marte que transportavam passageiros enfermos só para furar a fila do circuito de pouso. Em setembro de 2010, em São Félix do Xingu, no Pará, um Robinson 44 atingiu uma árvore em um voo noturno para o qual o piloto não estava habilitado. Três pessoas morreram. Em fevereiro de 2013, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, um monomotor experimental Quasar Lite perdeu o controle e se espatifou no solo após uma série de rasantes e curvas fechadas, afirmaram testemunhas. Com cinco anos de experiência, o piloto morreu.

Falhas do piloto são componentes de inúmeros acidentes e incidentes aéreos, daí a necessidade de evitar riscos desnecessários. De acordo com o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aéreos (Cenipa) da Aeronáutica, erros de julgamento foram fatores contribuintes para 62,6% de todos os acidentes e incidentes com aeronaves civis ocorridos no Brasil, entre 2003 e 2012. Foram 642 registros. Em segundo lugar, estavam as aplicações de comandos incorretas, que perfizeram 27,9% dos casos, com 286 registros, seguidas de indisciplina em voo (25,2%), com 258 registros. Não é pouca coisa, apesar da redução do número de acidentes em 2013.

Falhas do piloto foram fatores contribuintes para 62,6% de todos os acidentes e incidentes com aeronaves civis ocorridos no Brasil entre 2003 e 2012

Tudo errado

Em João Pessoa, assim que pousou no aeroclube, por volta das 14h, o piloto do Piper, Fabrício Lima de Souza, foi procurado pelo presidente da entidade, Rogério Iazaby Lubambo, que exigiu explicações. Não que a entidade ou seu presidente tenham algum poder de sanção, mas a situação criada exigia alguma atitude, nem que fosse uma reprimenda informal. Habilitado como piloto privado e funcionário de uma empresa de advocacia sediada em Palmas, Tocantins, Lima de Souza havia chegado a João Pessoa dois dias antes do ocorrido com seu patrão, Juvenal Klayber. No dia dos rasantes, Klayber estaria de férias na praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, sem saber de nada. Os passageiros do voo rasante do Piper seriam um empresário e duas jovens, uma estudante e uma funcionária pública. Ambas postaram fotos do passeio em uma rede social e, aparentemente, não perceberam o risco a que estiveram submetidas.

Diante do presidente do aeroclube, o piloto negou tudo de início, afirmando que jamais desceu abaixo de 150 m (500 pés) e que fazia um voo aerofotográfico, atividade para a qual não é habilitado. A explicação não colou. A aeronave foi avistada em várias passagens baixas entre as praias de Tambaba, ao sul, e Lucena, ao norte, ao longo de 50 km do litoral paraibano. O Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) define que, exceto para pousos e decolagens, voos visuais não podem ocorrer sobre áreas habitadas ou sobre grupos de pessoas ao ar livre em altura inferior a 300 m (1.000 pés), com centro na aeronave e raio de 600 m (2.000 pés) ou a menos de 150 m (500 pés) acima do solo ou água, com afastamento lateral de pelo menos 150 m (500 pés). Na sala AIS do aeroporto, um praticante de parapente reportou que o Piper havia feito mais de uma passagem abaixo dele, o que também não é permitido. Sobre o porto de Cabedelo não foi respeitado o limite mínimo vertical permanente de 450 m (1.500 pés). Quase imediatamente as autoridades aeronáuticas encaminharam o caso à Polícia Federal (PF). Na porta do aeroclube, um capitão PM aguardava o piloto, que foi levado à PF onde prestou depoimento e foi liberado. O conteúdo da conversa não foi divulgado. “Esse rapaz fez tudo errado nesse dia”, afirmou o presidente do aeroclube, Rogério Iazaby Lubambo.


Piloto faz sucessivas passagens baixas sobre praias paraibanas e assusta banhistas

Como não houve acidente aéreo, a investigação aberta não é conduzida pelo Cenipa, mas pela Junta de Julgamento da Aeronáutica (JJAer). Não foi divulgado quando o processo será encerrado. Baseada no Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) e nas regras de tráfego aéreo do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), a JJAer deve definir que infrações foram cometidas e quem deve ser responsabilizado, se o piloto, o proprietário da aeronave ou ambos. As penalizações podem ir de uma simples multa até a perda da licença de piloto, apreensão da aeronave e suspensão da licença da empresa. Aos réus é cabível recurso na Justiça. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) também apura responsabilidades no caso.

Acidentes aéreos caem 8,4% no Brasil

Entre os 163 desastres contabilizados em 2013, a aviação geral respondeu por 145 ocorrências e as empresas de táxi-aéreo por 17, enquanto a aviação regular teve apenas um caso

Divulgado no último dia de janeiro, o levantamento de acidentes aéreos no Brasil aponta uma redução de 8,43% em relação a 2012. Em 2013, foram registrados 163 casos, envolvendo 140 aviões e 23 helicópteros, enquanto o ano de 2012 somou 178 registros, sendo 154 com aviões e 24 com helicópteros. O levantamento é do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa).

Outro dado alentador foi a redução das vítimas em acidentes aéreos fatais. Foram 72 mortes em 2013, contra 78 em 2012 e 96 em 2011. O número de acidentes para cada milhão de horas voadas na aviação regular também caiu. Em 2013, foi de 0,36, contra 0,72 em 2012 e 1,13 em 2011.

A preocupação da Aeronáutica e da Anac era com a manutenção da alta dos acidentes. Em 2012, foi registrada uma elevação de 5,6%, em relação a 2011, com 168 registros contra 159. O período anterior foi pior, com um aumento de 45% em relação a 2010. Esses dados alarmantes forçaram as autoridades a reforçar a aplicação de medidas de prevenção junto a pilotos e companhias aéreas. O foco, todavia, sempre foi a aviação geral.

Entre os 163 acidentes contabilizados no ano passado, 145 envolveram a aviação geral e 17, empresas de táxi-aéreo, com apenas um caso na aviação regular. A queda nos acidentes em 2013 foi registrada em todos os segmentos. Na aviação geral a redução foi de 4,6%, no táxi-aéreo, 29%, e na aviação regular, 50%.

Para complicar, o Piper não pertence ao advogado Juvenal Klayber, o empregador do piloto, mas ao também advogado e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil em Tocantins (OAB-TO), Gedeon Pitaluga, que emprestou a aeronave ao colega. Todavia, no Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB) consta o nome de uma terceira pessoa, Fábio Bezerra de Melo Pereira. O Piper teria sido vendido para Pitaluga no início de novembro, mas as alterações nos registros não foram feitas. De férias em Buenos Aires, Pitaluga chegou a afirmar à imprensa que não sabia que seu avião estava na Paraíba.

“Já me desculpei publicamente com o povo de João Pessoa”, afirmou, constrangido, Juvenal Klayber, que contratou o piloto Fabrício Lima de Souza há cerca de três anos. “Ele sempre foi correto, pontual, mantendo os aviões revisados, com a comissaria em dia. Ele só me disse que levaria um empresário para um voo panorâmico e eu autorizei, já que iria para Pipa e ele ficaria em João Pessoa”, disse. Klayber, que só ficou sabendo do episódio no dia seguinte, afirmou que manterá o piloto no emprego sem voar até a investigação ser concluída. Lima de Souza foi instruído a não dar entrevistas. Dois dias após o episódio, o Piper foi autorizado a decolar de volta para Palmas com o piloto nos comandos.

O que poderia acontecer?

Sob a condição de anonimato, dois checadores de voo da Anac analisaram as imagens e um vídeo a pedido da reportagem. Eles foram unânimes em afirmar que, além dos rasantes, que contrariam as regras de voo visual, efetuar curvas nessas condições pode acarretar repentina perda de sustentação, o que não daria oportunidade de recuperação ao piloto. Outro ponto a ser considerado é o risco de desorientação espacial provocado durante o sobrevoo de uma massa de água uniforme e sem pontos de referência. Nesses casos, sem a observação dos instrumentos, o piloto pode não perceber que está perdendo altura rapidamente. Estas observações, assim como os relatos dos episódios, só reforçam a necessidade do constante respeito às normas de segurança, acrescentam os especialistas. Para eles, nessas situações é recomendado lembrar-se da máxima dos instrutores das escolas de voo, que garantem aos alunos que não existem pilotos experientes e ousados, apenas jovens e ousados. A razão é simples. Os ousados (entenda-se “descuidados”) dificilmente conseguem voar tempo suficiente sem acidentes graves para se tornarem veteranos experientes.

Por André Vargas
Publicado em 26/02/2014, às 00h00


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