Considerado um dos aviões mais belos de todos os tempos, o histórico modelo perdeu três motores antes de executar a manobra
No final dos anos 1950, a companhia aérea brasileira Varig concorria com sucesso com a norte-americana Pan American Airways na rota Rio de Janeiro-Nova York, apesar da utilização do seu novo avião comercial, o Lockheed L-1049G Super Constellation e seus complicados e pouco confiáveis motores turbo compound. O avião protagonizou um dos mais espetaculares episódios da aviação regular brasileira, justamente por conta de falhas na motorização desta clássica aeronave.
Tudo começou em 16 de agosto de 1957. O voo 850 decolou do Rio de Janeiro com destino a Nova York, com escalas em Belém (PA) e Ciudad Trujillo (mais tarde, Santo Domingo), capital da República Dominicana. Horas depois, a aeronave, sob o comando do comandante Geraldo W. Knippling, voava sem intercorrências sobre a selva brasileira rumo a Belém e seu fraco Automatic Direction Finder (ADF). A fim de fornecer uma ajuda àquele meio de navegação, a companhia aérea pagava uma estação de rádio local para ficar no ar a noite toda fornecendo um sinal a ser seguido.
Havia neblina em torno do aeroporto de Belém, o que obrigou os pilotos a realizarem uma aproximação por instrumentos com um mínimo de visibilidade. Não havia luzes de aproximação, mas, vendo a fraca iluminação da pista, eles fizeram um pouso bem-sucedido. A neblina continuava aumentando em função, principalmente, da umidade tropical de Belém e, por isso, o comandante Geraldo reabasteceu e, sem perder tempo, decolou às 2h00 em meio à neblina com lotação completa de passageiros, preparando-se para o longo voo de sete horas até Ciudad Trujillo.
A uma altitude de aproximadamente 1.525 m (5.000 pés) sobre a Ilha de Marajó, a aeronave perdeu o motor número 2, devido a algum tipo de falha interna. O motor foi desligado e sua hélice, embandeirada, mas a lógica volta para Belém foi impedida pela densa neblina que já cobria a cidade. Nenhum outro aeroporto na rota estava equipado com sistema para pouso por instrumentos, obrigando os tripulantes a prosseguir com três motores até Trinidad ou a capital Dominicana, conforme as condições da rota. O comandante Geraldo mandou desligar as luzes de navegação, pois, segundo ele, “não havia motivo para alarmar os passageiros com a visão de um motor parado”.
No início da manhã, o voo 850 passou sobre Porto Espanha, em Trinidad, e, como o tempo em rota estava bom, foi tomada a decisão de se continuar até Ciudad Trujillo, onde a companhia possuía instalações de manutenção. Após um pouso sem problemas, os mecânicos informaram que o motor nº 2 deveria ser trocado. Um deles era sempre mantido nas oficinas, para essa eventualidade, mas, lamentavelmente, tinha sido utilizado na semana anterior em outro Constellation sem que se repusesse a peça sobressalente.
Diante do impasse, havia duas opções: ficar na República Dominicana durante quatro ou cinco dias até um novo motor chegar, levado por um cargueiro Curtiss C-46, ou, como ficou decidido, de acordo com os procedimentos do Departamento de Operações da companhia, fazer um voo trimotor até Nova York – sem passageiros, evidentemente –, para o qual a tripulação estava treinada, e voltar para pegar os passageiros assim que fosse possível.
A decolagem do Super Constellation com três motores foi realizada às 11h00 com a tripulação de cabine padrão e dois comissários de bordo. “Inicialmente, nós poderíamos usar potência total em apenas dois motores – um de cada lado – e depois, lentamente, aplicar potência no terceiro, enquanto a velocidade aumentava e nos permitia manter o controle direcional. Foi uma corrida para decolagem muito longa”, lembrou mais tarde o comandante Geraldo.
Lentamente, a aeronave atravessou a ilha e voou sobre o oceano até atingir sua altitude de cruzeiro de 3.660 m (12.000 pés). Tudo corria bem, a previsão era de tempo bom até Nova York e a tripulação mostrava-se descontraída. Mas a tranquilidade não duraria muito. Repentinamente, um ruído forte acompanhou a perda de controle da hélice do motor número 4, que continuava a girar perigosamente cada vez mais rápido, independente do motor, chegando a 5.000 rpm e depois a 7.000 rpm. A essa velocidade, a força centrífuga das pás era alta demais para obedecer ao comando de embandeiramento e, mesmo reduzindo a velocidade da aeronave quase até o estol, a hélice não apresentou mudanças. O comandante Geraldo declarou emergência e decidiu dar meia-volta e tentar chegar até Ciudad Trujillo.
As perspectivas eram no mínimo sombrias. A alta velocidade da hélice tornava insuficiente a lubrificação do seu eixo e, mais cedo ou mais tarde, ele quebraria. Parecia uma “roleta russa”. Quando o eixo quebrasse haveria duas possibilidades: com sorte, cair para o oceano ou, no pior dos casos, disparar contra a fuselagem do Super Constellation com as piores perspectivas possíveis. A velocidade da aeronave foi deixada no mínimo para mantê-la voando, a cabine foi despressurizada e a tripulação se preparou para o pior. O barulho da hélice descontrolada era insuportável.
Um estrondo foi seguido por uma forte vibração e o alarme de fogo no motor nº 4, quando a hélice se desprendeu, levando parte do motor, deixando o restante em fogo. Mas isso não foi o pior: ao se desprender, a hélice danificada atingiu a do motor nº 3 deixando-a desbalanceada.
A tripulação ativou o extintor no motor nº 4 e, finalmente, as chamas se extinguiram. Contudo, as tentativas de embandeirar a hélice nº 3 foram infrutíferas. A vibração na aeronave era tão alta que impossibilitava a leitura dos instrumentos e dificultava até segurar os comandos. Temendo que o avião se desintegrasse, o comandante Geraldo diminuiu tanto a sua velocidade que a qualquer momento poderia sofrer um estol.
Finalmente, conseguiram embandeirar a hélice desbalanceada, mas ainda estavam com grandes problemas: voando sobre o oceano e lutando para se manter no ar com o motor nº 1, girando continuamente em potência máxima. Não seria possível chegar à República Dominicana, mas, pelo menos, ainda estavam voando.
O Connie perdia altitude. A tripulação chegou à conclusão de que a aeronave atingiria o oceano em 15 minutos
A situação era crítica quando o comandante Geraldo decidiu aumentar a velocidade, a fim de que os lemes mantivessem a mínima eficiência para que o avião seguisse em voo reto. Mas, enquanto isso, o “Connie” perdia altitude. A tripulação chegou à conclusão de que a aeronave atingiria o oceano em 15 minutos – tempo suficiente para transmitir sua posição em High Frequency (HF). Não havia dispositivos nem tempo para alijar combustível, por isso, foram abertas as portas de emergência sobre as asas e se prepararam para o inevitável: o mergulho no mar.
“Já perto d’água observei ondas em diferentes direções”, declararia o comandante Geraldo. A cabine de comando se encheu de atividade: trem de pouso recolhido, flaps baixos e motor nº 1 em idle. A aeronave atingiu a superfície do oceano desacelerando rapidamente e deslizando de lado, mas ficou nivelado sobre a água. O silencio era total, mas logo a água começou a entrar na fuselagem. Não havia tempo a perder, o Super Constellation estava afundando. Quando o comandante Geraldo já com a água nos joelhos chegou às portas de emergência, percebeu que a cauda havia se separado da fuselagem, provavelmente em razão das intensas forças laterais durante a desaceleração após o pouso, levando consigo um comissário que estava sentado na parte posterior da fuselagem, a única vítima do voo 850 a perder a vida.
O Constellation contava com quatro balsas salva-vidas (uma para cada porta) instaladas dentro das asas. Puxando uma alavanca na porta de emergência, as balsas deveriam ser liberadas e enchidas automaticamente, ficando prontas para embarcar e evacuar os passageiros. Porém, os engenheiros que projetaram o sistema não tinham ideia do que poderia ocorrer durante uma amerissagem. Com o impacto, os flaps foram arrancados, forçando tiras de metal retorcido através dos compartimentos das balsas. Todas estavam furadas.
A tripulação escolheu a que estava em melhor estado, embarcou nela e se afastou da aeronave que afundava. Pouco depois, tudo o que restava do PP-VDA eram manchas de óleo e uma balsa na superfície do oceano. As emoções da tripulação iam da tristeza pelo tripulante perdido ao alívio por estarem ainda vivos.
Alguns dos sobreviventes tentavam tampar os buracos da balsa com as mãos, enquanto outros procuravam retirar a água que não parava de entrar. A sua temperatura era agradável, quase convidativa, mas eles estavam longe da ilha. Felizmente, o forte vento os empurrava no sentido da costa norte da República Dominicana.
Duas horas mais tarde, viram um anfíbio Grumman da Guarda Costeira, vindo ao encontro deles. A aeronave fez um rasante, mas não conseguiu pousar, pois as ondas altas e o vento forte tornavam a manobra muito perigosa. Vendo a precariedade da balsa do Constellation, a tripulação do Grumman jogou um novo bote antes de se afastar, mas caiu longe e o vento o afastava cada vez mais. Mesmo remando desesperadamente com as mãos, não puderam alcançá-lo e, mais uma vez, ficaram sós em uma balsa furada e sem um remo.
O vento os estava empurrando para a costa e logo viram pessoas na praia, provavelmente pescadores. Eles acenaram freneticamente, mas ninguém lhes deu atenção. Finalmente, chegaram à praia e muitas pessoas correram até eles. Irritado e cansado, o comandante Geraldo perguntou: “Por que vocês não foram nos ajudar?”. A resposta dos dominicanos foi simples: “Aqui ninguém entra na água, porque tem muitos tubarões!”. O comandante Geraldo W. Knippling se aposentou após voar durante 40 anos na Varig.
Por Santiago Oliver
Publicado em 04/12/2015, às 17h06 - Atualizado às 17h34
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