Os dez principais problemas do Galeão independem da concorrência com o Santos Dumont
O debate em torno do Galeão ganhou contornos que ofuscam os reais problemas associados ao aeroporto internacional do Rio de Janeiro e ganhou um novo capítulo com a futura restrição de voos do aeroporto Santos Dumont, que terá operações apenas para Congonhas, em São Paulo, e Brasília.
O Santos Dumont, pelas características físicas e urbanas do entorno e pelas dimensões dos seus principais componentes de infraestrutura (sistema de pistas, pátios, terminais de embarque/desembarque, despacho/restituição de bagagens, meio fio de embarque e desembarque de passageiros etc.), já é um aeroporto limitado em vários aspectos.
Contudo, tanto à luz dos fatos ocorridos como por ideias aventadas pelos mais diversos entes e executivos dos setores público e privado, existe um movimento significativo – que não é de hoje – para restringir e limitar cada vez mais o Santos Dumont.
Ora, qual o motivo desta “perseguição” ao aeroporto central carioca? A resposta é simples: a miopia de muitos quanto aos principais motivos das grandes oscilações (para baixo) do número de voos, de empresas aéreas e do volume de passageiros e cargas no aeroporto internacional do Galeão. Sim, se o Galeão tivesse pelo menos a metade da movimentação de São Paulo/Guarulhos, ninguém estaria querendo restringir voos no já naturalmente limitado Santos Dumont.
Nesse ponto, cabe ressaltar que nenhum aeroporto, em qualquer lugar do mundo, é a origem real e tampouco um destino final em si; todo aeroporto é um elo de infraestrutura (sim, existem outros!) em um vasto e complexo sistema de transporte multidisciplinar e multimodal. Aeroportos não transportam pessoas nem cargas, eles movimentam pessoas e cargas; quem aproxima localidades, transporta bens e une pessoas são as transportadoras; no caso em questão, as empresas aéreas, os táxis-aéreos, as frotas corporativas e as aeronaves de uso privado/particular. A relação entre transportadores e infraestrutura em qualquer setor de transporte é que os primeiros dependem dos outros para existirem e vice-versa.
Ressalte-se, também, que os papéis de cada um são bastante distintos e facilmente distinguíveis. Por fim, o grupo mais importante de qualquer equação: a sociedade. É ela que anseia, necessita, faz uso e sustenta (direta e indiretamente, em todos os aspectos) este sistema de transporte. E é para a sociedade, por ela e com ela que devemos estudar, analisar, ponderar e decidir qualquer interferência sobre um ou vários elos e entes deste sistema.
Nesse sentido, pergunta-se: o que é melhor, mais eficiente e eficaz para o Galeão é sempre o melhor, o mais eficiente e eficaz para a sociedade carioca, fluminense e brasileira? A resposta é “não”. E a explicação é simples. O Galeão é tão somente um componente de um sistema; ele não é o início e muito menos o fim, ele é um meio.
Um meio importante? Certamente! Mas igualmente importantes são outros elos e componentes desse complexo sistema de transporte que serve a região metropolitana no Rio de Janeiro, o estado do Rio de Janeiro e o Brasil.
Neste ponto cabe recordar os ensinamentos do professor Vicente Falconi, um dos maiores expoentes da Administração no Brasil, quando ele aponta a fundamental importância de se identificar correta e precisamente o que são problemas de fato para, só assim, buscarmos estudar soluções possíveis.
Ora, se os verdadeiros problemas são confundidos com suas consequências, os esforços passam a ser em vão. Afinal, não se buscam soluções para consequências! E há evidências substanciais (tanto quantitativas como qualitativas) de que a redução na movimentação do Galeão é uma consequência, e não um problema.
No lado quantitativo, um estudo elaborado pela FGV Transportes, intitulado Análise Científica da Situação dos Aeroportos Galeão e Santos Dumont, empregando correlação e regressão linear múltipla aponta de forma inequívoca que a redução no Galeão não guarda relação direta com o aumento do Santos Dumont. No lado qualitativo, as evidências apontam ainda mais para outros fatores, a maioria exógena ao transporte aéreo em si.
Se considerarmos os fatores qualitativos acima e os somarmos com as análises numéricas do estudo da FGV Transportes, fica claro que o Galeão sofre muito mais por fatores exógenos ao transporte aéreo (oito dos dez itens anteriores) do que relativos à aviação comercial em si, apenas dois, sendo um destes a consequência direta de uma externalidade.
Isso posto, o que acontece hoje com o Galeão e que vimos aqui que são consequências, e não problemas, não será “resolvido” canibalizando e restringindo o Santos Dumont. Aliás, reduzir artificialmente o número de passageiros movimentados, impondo um limite de seis ou sete milhões de passageiros por ano e/ou permitindo apenas voos da Ponte Aérea Rio-São Paulo e Rio-Brasília, como sugerem autoridades estaduais e da cidade do Rio – só vai prejudicar a sociedade carioca. Todos os que atualmente usam o Santos Dumont para outros destinos além dos três citados, terão de se deslocar para o Galeão, aumentando a duração das suas viagens (assim encarecendo-as), queimando mais combustíveis fósseis (e assim poluindo mais o meio ambiente) e sujeitando-se ao baixo nível de serviço e insegurança da Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela.
Para os que defendem limitar o SDU com base em aeroportos centrais que foram ou são limitados nos Estados Unidos e Europa (Reino Unido e França, em especial), cabe lembrar que, além destes países terem regulações e ambientes socioeconômicos bastante distintos do brasileiro, estas limitações ou já foram eliminadas (exemplo: aeroporto central de Washington DC Reagan/National) ou foram facilmente contornadas pelas empresas aéreas, em especial as de baixo custo (exemplo: como a Southwest contornou, dentro da lei, as restrições impostas ao aeroporto central de Dallas Love Field).
Como se não bastasse tudo que foi aqui anotado, há em andamento um projeto para um terceiro aeroporto na região metropolitana do Rio: é o ArcoRio (Aeroporto Brigadeiro Cantidio, no município de Duque de Caxias), um aeroporto internacional privado, primeiramente voltado à carga e aviação executiva, que está em fase de projeto básico e apresentação para investidores.
Este novo aeroporto – se sair do papel e iniciar operações nos próximos anos – será um concorrente direto para o Galeão, pelo menos nos segmentos da aviação de negócios e carga internacional.
Então, quer dizer que daqui a alguns anos as autoridades do estado e da cidade do Rio, assim como entidades e executivos do trade de Turismo do Rio/RJ, buscarão restringir a movimentação deste novo aeroporto, caso a movimentação do Galeão esteja em queda?
Por fim, cabe também ressaltar que a lei de criação da Anac e todos os regramentos posteriores estipulam que o mercado de transporte aéreo no Brasil, aí incluindo tanto as transportadoras aéreas como os aeroportos, está sob o manto da livre concorrência, do livre mercado e da não interferência do poder público sobre o funcionamento desse mercado. E até que o Congresso Nacional decida que é necessário alterar esses dispositivos, é assim – na livre concorrência, no livre mercado e na não interferência do poder público – que devemos operar e manter o transporte aéreo comercial no Brasil.
* Respicio A. Espirito Santo Jr. é professor de transporte aéreo
na Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Por Respicio Espirito Santo*, especial para AERO Magazine
Publicado em 15/06/2023, às 15h00
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