Melhorias aerodinâmicas incluem hélice pentapá e novos winglets
Daher-Socata TBM 900 representa a evolução de um conceito implantado no começo dos anos 1990
A centenária Daher-Socata preserva a tradição de fabricação de aeronaves dos pioneiros franceses da aviação. Com sede em Toulouse, a empresa surgiu em 1911 como Morane-Saulnier (que fabricou os MS760 Paris e o jato Fouga Magister) e passou a ser chamada Socata, acrônimo de Societé de Construction d´Avions de Tourisme et d´Affaires (em tradução livre, Sociedade de Construção de Aviões de Turismo e Negócios), em 1966, ao ser adquirida pela Sud Aviation (fabricante do clássico Caravelle), depois EADS e hoje Airbus Group. Ao longo do século 20, a companhia fundada por Raymond Saulnier e Léon Morane desenvolveu 94 modelos e produziu mais de 17.000 aeronaves, além de participar de momentos históricos da aviação, como a primeira corrida aérea do mundo, a travessia aérea inaugural do Mediterrâneo e a construção da primeira metralhadora capaz de disparar tiros através do sistema de hélice. Mais recentemente, em 2008, a então EADS transferiu o controle acionário para a Daher, dando origem à Daher-Socata.
O asa baixa Daher-Socata TBM 900 representa a evolução de um conceito implantado no começo dos anos 1990, com o lançamento do TBM 700. O projeto permanece atual ao incorporar melhorias contínuas, atingindo nesta nova versão, que tem preço FOB de US$ 3,8 milhões, um elevado padrão de eficiência - e excelência - para um avião monomotor turbo-hélice. Em poucas palavras, a máquina que voaremos tem pedigree.
Desembarcamos no aeroporto de Uberlândia, em Minas Gerais, onde fica a sede da Algar Aviation, representante da Daher-Socata no Brasil. Sou recebido pelo Rodrigo Cendon, gerente comercial da empresa, que me conduz à base de manutenção da frota do grupo Algar, no Hangar Walter Garcia, e me apresenta ao comandante Emiliano Rodrigues, piloto do PP-OKK, o primeiro TBM 900 a receber matrícula nacional. A aeronave fica baseada em Uberaba, também no Triângulo Mineiro, e cumpre missões por todo o Brasil. De Uberaba, o TBM 900 alcança qualquer ponto do território nacional sem necessidade de parada para reabastecimento.
A mais visível diferença do 900 para as demais versões da família é a bela hélice pentapá Hartzell, responsável por absorver os 850 shp da confiável Pratt&Whitney PT-6A-66D. Este motor oferece um total de 1.360 kW (1.825 shp) de potência termodinâmica (original), embora sua potência nominal limite-se a 635 kW no eixo (850 shp), disponíveis full time, o que não acontecia em outros TBM. Prosseguindo a inspeção externa do OKK, observo as novas carenagens do trem de pouso, encobrindo um pouco mais as rodas, o que permitiu um ganho de 3,7 km/h (2 kt) – além de ocultar quase totalmente o trem principal ao ser recolhidos. Também saltam aos olhos os belos winglets, que aumentaram a envergadura do pássaro francês em mais de 60 cm, contribuindo bastante para a qualidade de voo, conforme pretendemos constatar em breve. O mesmo se aplica às duas quilhas ventrais posicionadas na parte inferior traseira da fuselagem. O cone de cauda ficou um pouco maior e o leme sofreu um recuo de 15 cm (6 polegadas). O aumento de potência e a mudança de hélice pediram esse “reajuste” de tamanho que constato no “Kilo-Kilo”.
Mais detalhes se revelam conforme caminhamos, principalmente porque, ao lado do exemplar que voaremos, existem outras versões do TBM, em frente ao hangar Walter Garcia, o que nos permite um fácil comparativo entre os aviões - segundo a Algar, existem hoje em operação no Brasil quase 20 unidades da família TBM. Verifico que o bocal de entrada de ar do PT-6 recebeu modificações em relação aos antigos modelos. Ele é maior em área frontal e fica muito mais próximo da Hartzell, permitindo uma melhor eficiência da passagem do ar a ser admitido pelo motor. Os tubos de escapamento também foram modificados, assumindo ângulos e formatos diferentes dos anteriores, o que representa um ganho de empuxo perceptível, segundo o fabricante. Esse trabalho de refinamento aerodinâmico foi feito com uso de um programa chamado CFD (Computational Fluid Design).
O CFD efetuou uma “renderização” (ou modelagem) em 3D do modelo 850 para avaliar os pontos onde havia maior impacto do ar e analisar o que poderia ser melhorado em termos aerodinâmicos. Os dados de desempenho mostram que a Socata incrementou a performance do 900 em relação aos outros membros da família, sem gastar um litro de combustível a mais, elevando sua competitividade no mercado de turbo-hélices.
Trabalho de refinamento aerodinâmico foi feito com uso de um programa chamado CFD
Faremos dois voos no PP-OKK, um para avaliação da aeronave e suas qualidades de voo e outro para fotos aéreas. Antes, observando dados e gráficos do 900, constato o aumento da eficiência desta nova versão, resultado da combinação entre o motor PT-6, a hélice pentapá Hartzell e o primoroso refinamento aerodinâmico. A designação técnica do avião ainda é aeronave tipo “TBM 7”, mas, apesar das semelhanças, não estamos falando do mesmo avião. Uma curiosidade, aliás, é que o TBM foi um projeto de avião a pistão da Mooney, o Modelo 301, do início da década de 1980, comprado pela Socata, que o transformou em turbo-hélice, daí o “TB”. A Mooney saiu do projeto, mas o nome do avião tem o “M” de Mooney. A Armée de l’Air (Força Aérea Francesa) chegou a utilizar 20 destes modelos, em substituição do jato MS760 Paris.
Chega o momento do primeiro voo. Antes de embarcar, verifico o sistema de abertura e fechamento da porta traseira. Muito simples, e com área extremamente ampla, o que garante um fácil ingresso à cabine de passageiros, com o auxílio de uma prestimosa escadinha retrátil, acoplada ao sistema de abertura da porta. Acabamento interno muito bom, esmerado, fazendo valer a inscrição da plaquinha fixada na fábrica: “Manufacturing with care”.
Os novos assentos, em configuração club-seat, acomodam com conforto até pessoas com estatura um pouco maior, como é o meu caso, com 1,84 m. As janelas laterais estão muito bem posicionadas em altura. Rodrigo esclarece que, como opcionais, existem os sistemas SMS, que envia mensagens via satélite, e AirCell, que suporta ligações telefônicas a partir do painel de controle da suíte de aviônicos Garmin G1000, além de internet a bordo.
Ingresso pela parte dianteira da aeronave, através da porta lateral ao cockpit, que antes era opcional e agora se tornou item de série. O movimento exige um ligeiro contorcionismo, para alcançar a escada retrátil e posteriormente ficar em pé sobre a asa. Desse ponto em diante, é fácil adentrar ao assento do piloto. Acomodado no cockpit, percebo um avião perfeitamente ergonômico.
O manche redesenhado apresenta ótima empunhadura. Compõe o conjunto um compensador duplo, localizado do lado esquerdo, próximo do conceito “chapéu-chinês”. No mesmo atuador, no sentido vertical, comandamos o compensador dos profundores (confirmando antes seu uso pelo botão no topo) e, no sentido lateral, fica o compensador de leme direcional. Este último é absolutamente necessário para se voar o 900 “centradinho”, considerando suas cinco pás e seus 850 shp disponíveis em qualquer fase do voo. Um útil botão “timer” também compõe o conjunto.
A suíte Garmin é extremamente “clean”, e de fácil assimilação. Quem já tem contato com a lógica utilizada pelos sistemas deste fabricante norte-americano, rapidamente se ambienta, bastando reconhecer na moldura inferior os respectivos botões para as diferentes funções. À frente do piloto há um PFD (Primary Flight Display) e um MFD (Multi-Function Display) bem destacado na porção central do painel. Pelo MFD, o Emiliano mostra como podemos fazer os cálculos de peso e balanceamento, considerando tanto dados inseridos (quantidade de passageiros e carga) quanto dados importados (quantidade de combustível de acordo com a leitura por liquidômetros, pressão do ar, temperatura, entre outros).
Temos neste primeiro voo cinco a bordo, meio tanque (150 galões, aproximadamente 600 litros), configurando uma operação executiva clássica, sem bagagens. O fechamento da porta se dá sem dificuldade, estamos prontos para acionar a máquina. O TBM 900 possui um overhead panel fácil de ser operado e o Emiliano, muito profissionalmente, auxilia na operação de verificação dos itens com um intuitivo scan-flow da direita para a esquerda, de cima para baixo. Finalizada a tarefa, iniciamos o acionamento pelo switch starter, que permanece acoplado até a rotação do NG atingir 51%. Daí em diante, o ciclo do PT-6 é contínuo, após a abertura do combustível. Não há a necessidade de voltar o switch para a posição “OFF”, pois esse processo é automático. Fico positivamente surpreso ao observar que o pedestal do manete é exatamente igual ao do T-27 Tucano, com apenas um manete para o controle de potência, passo de hélice e condição (abertura e corte de combustível).
O comando para sair de feather (embandeirado) para a posição táxi mostra-se um pouco “duro”, exigindo uma boa adaptação à movimentação do manete de potência, mais precisamente ao trilho sobre o qual ele deve correr. Suponho que esse manuseio mais firme tenha como finalidade evitar acionamentos acidentais. No Tucano, esse comando exige menos esforço. Ali no cockpit cumpro esse ciclo algumas vezes antes de me adaptar.
Uma vez na posição táxi, com a Hartzell rapidamente desembandeirada, pronta para o início da rolagem, fazemos as verificações de praxe (temperatura, pressão, aquecimento dos pitots, ar condicionado e assim por diante) e solicitamos à Torre Uberlândia autorização para taxiar até a pista 04. Detalhe importante: o compensador de leme direcional tem sua faixa verde deslocada do centro (meio curso à direita) de forma a neutralizar o torque durante a decolagem. Em outras palavras, o TBM já decola compensado. Só não podemos ficar muito tempo na parte inferior da faixa de táxi para evitar o uso dos freios, pois a temperatura do óleo sobe e logo vem o aviso no painel.
Freio de estacionamento (escondido atrás do manche) solto e iniciamos o táxi. O controle direcional feito pelos pedais possui boa atuação no trem dianteiro. Entretanto, seu sistema de amortecimento faz com que, ao comandar a curva, o avião não execute imediatamente manobras de raio mais fechado em solo. Sem problemas, utilizamos suavemente o freio do lado para o qual comandamos a curva e facilmente saímos da frente do hangar Walter Garcia.
No táxi até a pista 04, vejo publicações e manuais do PP-OKK em formato eletrônico, no iPad. Aguardamos o pouso de um ATR – conterrâneo do 900 - e já alinhamos. O vento é de 090 graus, com 15 nós, e rajadas de 25, ou seja, temos um ligeiro componente de través. Vejamos como a máquina se comporta. Torque até 20%, freios soltos suavemente, e completamos o resto na corrida. Desde a época em que voei o EMB-120 Brasília, não havia mais pilotado aeronaves em que há a necessidade de controlar a potência na decolagem. No TBM isso é necessário para não exceder o torque máximo. Sem percalços, acompanho o aumento vertiginoso da velocidade (ótima aceleração!) junto com o valor de torque.
Rotate Speed com 85 kt, pressão para trás no manche e o PP-OKK sai firme. Razão positiva, trem em cima e, como em um jato, a velocidade sobe bem. Mantenho 124 kt na subida, ainda com flaps na posição TO. A razão é de 2.200 pés por minuto e, ao passar 1.000 pés, curvamos à esquerda para nos afastarmos na radial 240. Quanto ao vento de través, o avião se comportou muito bem, conforme se espera de uma aeronave com o conjunto de ailerons e spoilers do TBM - será influência da escola francesa? O ATR também desfruta dessa característica... Os winglets e as quilhas ajudam a dar bastante estabilidade longitudinal. Foi só definir uma proa para derivar e o avião ficou, sem muito esforço.
Subimos para o FL100 em menos de 5 minutos. Segundo o manual – e o Emiliano, embasado em seus vários voos – , poderíamos subir, mesmo com peso máximo, para o FL310 em menos de 20 minutos e, ainda assim, ao atingir esse nível, cobriríamos qualquer ponto do território nacional, colocando a aeronave em regime “long range”, com consumo de 120 litros de querosene por hora. É importante lembrar que voos acima do FL200, FL220, são muito mais confortáveis, pois as formações meteorológicas, mesmo as mais fortes, tornam-se menos frequentes. Subindo para 31.000 pés, o conforto é de jato, com alta rentabilidade.
As etapas médias feitas por este TBM 900 normalmente cobrem trechos como Uberaba-Porto Alegre, Uberaba-Belém e Uberaba-Santarém, sem escalas, voando a uma média de 315 kt. Se quiser apertar um pouco mais, para resolver um negócio urgente, o 900 chega aos 330 kt, cobrindo 2.800 km, sem a necessidade de parar.
No interior, suíte Garmin G1000 e espaço para até cinco passageiros
Efetuo curvas variando inclinações e velocidades. Chama minha atenção o trabalho de refinamento dos comandos. A pressão para comandar curvas, subidas e descidas é sempre a mesma, seja a 80 kt ou a 280 kt. Um pouco pesado, mas necessário para o comportamento sólido da aeronave, principalmente voando em IFR. Induzo estóis e soa um aviso aural “airspeed” por uma voz feminina, agradável de ouvir. Com a aeronave lisa, anoto 82 kt. Configurado full flaps e com trem embaixo, o avião voa a impressionantes 62 kt. O estol é clássico, sem nenhuma tendência de queda de asa, ou alteração de proa, mesmo com o efeito giroscópico das 5 pás. Apresenta buffeting didático, mostrando ao aviador que é melhor ceder o manche. Tributo ao trabalho dos engenheiros de Tarbes, que fizeram uma asa lisa, sem rebites, e bem comportada a altas e baixas velocidades.
Afastados 45 km de Uberlândia, chega a hora de voltar. Verifico se podemos fazer dois pousos, um liso, sem flaps, e outro completamente configurado. Com o assentimento do comandante, trago a aeronave para uma final de 5 milhas náuticas, mantenho 90 kt. O comportamento do avião é muito bom no ar turbulento desta hora associado ao vento inclemente. Ao cruzar a cabeceira, basta trazer o motor para idle e segurar o nariz. Flutuo um pouco, com cuidado para não fazer um pouso mais duro. O PP-OKK se entrega e toca o chão com os pneus do trem principal. Segurando ainda o nariz no ar, colocamos o trem dianteiro suavemente. Arremetemos com 95% de torque, e um ligeiro pé direito para compensar, e já entramos novamente na perna do vento.
Repito o procedimento, só que agora usando os flaps na posição LDG (Landing), vindo a 85 kt. Motor em idle ao cruzar a cabeceira novamente, arredondamento mais caprichado, e o toque. Não uso freios, apenas trago o manete para a faixa táxi. Paramos em aproximadamente 600 m. Caso necessitássemos de máxima aplicação de freios e passo reverso, dificilmente ultrapassaríamos os 500 m.
Essa versatilidade de aliar alto desempenho em voo com pousos em baixas velocidades fazem do TBM um produto competitivo na sua categoria, incomodando até alguns concorrentes de categoria superior. O pessoal da Algar tem planilhas comparativas bem detalhadas. Segundo o representante da Daher-Socata, numa etapa de 580 km, a diferença do TBM para um jato da categoria entry-level é de apenas 1 minuto. Já numa etapa de 1.800 km, o novo turbo-hélice da Daher-Socata chegaria 7 minutos à frente! Em uma perna maior, de 2.300 km, o jato precisaria parar enquanto o TBM prosseguiria o voo, dando uma diferença de tempo de quase 1 hora, considerando o tempo de pouso, abastecimento e cumprimento do trâmite necessário para reiniciar o voo na escala.
Corte do motor e acertamos uma segunda etapa, para produção das fotos aéreas. O avião paquera é um Cessna 152 conduzido pelo comandante Leonan. Temos a oportunidade de avaliar a manobrabilidade do PP-OKK voar a baixa velocidade. Leonan decola antes e sobe para 6.500 pés, para encontrarmos uma atmosfera um pouco mais calma às 13h com muito vento em Uberlândia. Decolamos em seguida e reunimos pela lateral direita - posição #2. O OKK não gosta muito de voar a baixa velocidade, preciso pedir flap TO (takeoff). Perfazemos sempre curvas, de forma que o TBM permaneça no raio externo, mais veloz. Neste momento, a larga coluna lateral me obriga a curvar o corpo à frente, para visualizar o Cessna e manter a separação.
Por várias vezes ouço atento o agradável aviso aural “airspeed”, que nos alerta da proximidade da velocidade de estol. Peço flap LDG (Landing) ao Emiliano enquanto me preocupo em manter a ala do Cessninha. O PP-OKK melhora o comportamento, mas o alarme de “trem em cima” é impiedoso e contínuo. Optamos por não cancelar o aviso, para manter a consciência situacional alta.
Evoluímos entre 85 e 95 kt. Sempre que houve a necessidade de potência, não hesitei em solicitá-la ao PT-6. O avião “salta à frente” sempre que solicitado, e com pouco torque (não ultrapassamos 40%, mesmo em momentos de menor velocidade). O casamento do PT-6A-66D com a Hartzell pentapá mostra-se bem dimensionado, certamente um dos destaques desta nova versão da máquina.
Mais algumas fotos e regressamos para o pouso final em Uberlândia. Desta vez, tentaremos pousar mais curto, full flaps, com 80 kt no cruzamento da cabeceira. No arredondamento, seguro o nariz o máximo possível e o pouso sai o melhor dos três. Utilizo o freio de leve - melhor poupar o PP-OKK, já vi que ele pousa curto - com um pouco de reverso. Consumimos algo próximo dos 550 metros, sem muito esforço.
Venho para a parada e o corte, deslizando o manete para a posição feather (embandeirado), livrando a trava do manete e cortando o motor. O TBM 900 mostrou a que veio em voo. No solo, entre os diferenciais estão a garantia de cinco anos, que contribui para reduzir o custo operacional da aeronave durante esse período e, também, uma modalidade de pagamento um tanto peculiar na aquisição de aeronaves: produtores rurais, público potencial do TBM, podem efetuar o pagamento da aeronave com soja.
* Publicado originalmente na AERO Magazine 246 · Novembro/2014
TBM 900 | |
Fabricante Daher-Socata Dimensões Pesos Performance |
Por Thiago Sabino, de Uberlândia
Publicado em 06/10/2019, às 00h00 - Atualizado às 17h10
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