Chuvas de verão aumentam as chances de ocorrência de aquaplanagem com aviões de todos os portes
Florianópolis, Aeroporto Internacional Hercílio Luz, novembro de 2003. Sob a chuva, os pilotos de um A320 da TAM perdem o controle direcional da aeronave durante a aterrissagem e o jato sai da pista antes de parar no gramado do aeroporto. O avião sofre diversos danos e os 122 passageiros precisam deixar a aeronave pelas saídas de emergência. Um mês depois, outro avião, um Boeing 737 da Gol, com 136 passageiros, também debaixo de chuva, desliza por 120 metros e bate em um muro após pousar no aeroporto de Navegantes. Em 2004, em Natal, Aeroporto Internacional Augusto Severo, um MD-11 da extinta Varig toca o solo molhado pela chuva e não consegue parar antes do fim da pista. Em março de 2006, em seguida a um temporal que atingiu a capital paulista, um Boeing 737 da BRA desliza para a esquerda da pista de Congonhas após pousar, cruza a taxiway e para a poucos metros da pequena contenção que separa o aeroporto da Avenida Washington Luiz. Ainda em Congonhas, um dia antes do acidente com o voo 3054, um ATR 42 da Pantanal derrapa no asfalto antes de parar na vala que separa as duas pistas do aeroporto. As ocorrências dessa sequência de incidentes em aeroportos brasileiros, todas sem vítimas, tiveram como fator contribuinte principal um fenômeno que ganha relevância entre os especialistas de segurança de voo com a chegada das chuvas de verão, a aquaplanagem (ou hidroplanagem).
Os riscos de aquaplanar, especialmente durante um pouso ou após uma decolagem abortada, existem independentemente do modelo ou do porte do avião envolvido na operação, e o piloto deve estar sempre atento a essa possibilidade. Amplamente conhecida por motoristas de veículos automotores terrestres, a hidroplanagem é muito mais comum na aviação do que se imagina, em particular nos meses de novembro a março, quando muitas regiões do Brasil assistem a precipitações que despejam em um curto período de tempo uma grande quantidade de água, contaminando as pistas com lâminas d’água e tornando-as extremamente perigosas.
O perigo da aquaplanagem não se apresenta em uma pista praticamente inundada, mas, sim, nas condições em que há uma fina película de água sobre a pista, impedindo a aderência do pneu com o solo e levando à perda de controle direcional da aeronave. Na década de 1990, a então McDonnell Douglas realizou um estudo sobre o tema que apontou um dado alarmante: as pistas contaminadas por água ou gelo foram a quarta maior causa de acidentes, em especial durante pousos e procedimentos de táxi, entre 1992 e 1996.
A aquaplanagem se apresenta nas condições em que há uma fina película de água sobre a pista
Antes disso, ainda na década de 1960, os riscos e a grande quantidade de casos de acidentes envolvendo a aquaplanagem levaram a NASA (National Agency and Space Administration) a realizar uma série de estudos sobre o fenômeno. As pesquisas da agência espacial mostraram que pneus com pressão abaixo dos parâmetros requeridos correm mais risco de aquaplanar. Isso porque a aquaplanagem acontece, ou não, conforme o equilíbrio entre a força que tende a colocar a aeronave no solo e a força hidrodinâmica que empurra o pneu no sentido oposto ao do pavimento. Existe um valor crítico nesse balanceamento que não pode ser ultrapassado. Ele se dá justamente quando a sustentação hidrodinâmica atuando sobre o pneu equivale à soma do peso do pneu mais a carga vertical descendente agindo sobre ele. Qualquer aumento de velocidade que supere esse limite provocará a elevação do pneu, fazendo com que a borracha perca completamente o contato com o solo e tenha início o processo de aquaplanagem.
No âmbito aeronáutico, o estudo mostrou que, no caso de aeronaves com dois pneus na mesma perna do trem de pouso, ambos devem receber calibragem com mesma pressão. Caso contrário, a aeronave tenderá a puxar no sentido do pneu com menor pressão, aumentando sensivelmente o risco de aquaplanagem e consequente perda de controle.
Os estudos da Nasa levaram à criação de uma fórmula simples para determinar a velocidade mínima para o inicio do fenômeno, batizado de Nasa Critical Speed (leia mais no quadro). Segundo o trabalho, a velocidade em que a aeronave estará durante a aquaplanagem, em uma pista sem grooving e sem cobertura porosa (PFC), dependerá sempre da pressão dos pneus.
Diferentes aquaplanagensExistem três tipos de hidroplanagem, que podem ocorrer simultaneamente, obrigando o piloto a agir de maneira eficiente ao primeiro sinal de perda de atrito com o solo | ||
Dinâmica: camada d’água na pista faz com que o pneu, ao ser suspenso, perca contato com a superfície e passe a deslizar sem girar. Ocorre geralmente durante as fases de pouso ou decolagem, quando a aeronave desenvolve velocidade igual ou superior a Nasa Critical Speed. Os freios mostram-se totalmente incapazes de parar o avião. Nos casos de aviões com reverso, tal recurso se torna a única forma de reduzir a velocidade enquanto a aeronave estiver deslizando sobre a água, o que torna fundamental seu uso logo após o toque. Um décimo de polegada de água sobre a pista é suficiente para gerar a aquaplanagem dinâmica. | Viscosa: fenômeno mais comum em cabeceiras, pistas de táxi e zonas de toque, locais com grande presença de poeira, óleo e borracha, que aumentam a viscosidade do pavimento, fazendo com que a água passe a atuar como uma película lubrificante, reduzindo a aderência do pneu com a pista. A aquaplanagem viscosa ocorre quando o pneu desliza sobre uma fina película de água, geralmente a velocidades reduzidas. É comum com grande acúmulo de borracha e em áreas desprovidas de grooving (fendas transversais para o escoamento de água). Pode acontecer mesmo sob uma garoa, uma vez que apenas um milionésimo de polegada de água sobre a pista é suficiente para gerar a aquaplanagem viscosa. | Em vapor ou borracha revertida: o pneu trava ou gira abaixo da velocidade da aeronave e o atrito gerado aquece a banda de rodagem do pneu, produzindo vapor na área de contato, o que eleva ainda mais a roda e, consequentemente, reduz o contato dela com o solo. O vapor também reverte o processo de vulcanização utilizado na confecção da banda de rodagem do pneu, levando a borracha a um estado “gelatinoso” e tornando sua superfície irregular e de aparência acinzentada. A aderência nesse caso é similar à encontrada em uma pista coberta por gelo. |
Para uma aeronave que encontra uma área alagada ao decolar, a velocidade crítica é igual a 9 vezes a raiz quadrada da pressão de calibragem dos pneus em psi (pounds per square inch). No caso de a aeronave encontrar uma pista contaminada no momento do toque, a velocidade crítica passa a ser 7,7 vezes a raiz quadrada da pressão do pneu, de acordo com a Nasa.
O estudo mostra que, para determinar a velocidade, é aconselhável utilizar nessa equação a pressão menor, ou seja, do trem de nariz. Além disso, ficou comprovado que pneus usados estão mais propensos a aquaplanar do que modelos novos, o que é facilmente explicado pela redução na profundidade dos sulcos. O importante é notar que, nos casos em que um pneu novo está montado no mesmo conjunto que um pneu usado, o efeito é similar ao de pneus com pressões desiguais.
É comum acreditar que o sistema anti-skid (antitravamento) evita a aquaplanagem por não permitir o travamento das rodas. Ao iniciar a aquaplanagem, o anti-skid reconhece a perda de velocidade das rodas afetadas e libera pressão dos freios, mas o pneu só irá recuperar a rotação normal ao sair da área contaminada, seja com água ou gelo.
Do ponto de vista da pista, o risco de aquaplanagem seria drasticamente reduzido caso os pavimentos contassem com aplicação de ¾ de polegada de cobertura PFC (Porous Friction Course) e dispusessem de grooving com ¼ de polegada de largura e profundidade e 1 polegada de separação, além da adição de materiais como areia na tinta utilizada em marcações e faixas, o que aumenta significativamente o coeficiente de atrito das áreas pintadas. Finalmente, um dos pontos importantes é a manutenção periódica da pista, especialmente nas áreas de toque, evitando, assim, o acúmulo de borracha.
É quase impossível pousar ou decolar um avião com velocidades inferiores às críticas, mas os números da Nasa servem de referência para ampliar a margem de segurança na saída ou chegada de um aeroporto
Nasa Critical Speed para decolagens em meio a área alagada (9 x √psi) | Nasa Critical Speed para o toque em pista já alagada (7,7 x √psi) | ||
√ Pressão Dos Pneus (Psi) x 9 | Nós (kt) | √ Pressão Dos Pneus (Psi) x 7.7 | Nós (kt) |
30 | 49 | 30 | 42 |
40 | 57 | 40 | 49 |
50 | 64 | 50 | 54 |
60 | 70 | 60 | 60 |
70 | 75 | 70 | 64 |
O que fazerSeguindo algumas técnicas simples, o piloto reduz significativamente os riscos de se envolver em incidentes ou acidentes causados por aquaplanagem Use técnica de pouso curto Realize aproximação estabilizada (altitude e velocidade) Recolha os flaps logo após o toque Ao constatar a aquaplanagem, solte imediatamente os freios |
Texto e fotos Edmundo Ubiratan
Publicado em 30/11/2017, às 19h11 - Atualizado às 19h14
+lidas