O hidrogênio como combustível está desafiando todo o setor a redefinir o projeto de aeronaves
A aviação é responsável por quase 5% das emissões de efeito estufa em todo o mundo (mais de 1 Gt em emissões diretas de CO2 em 2019, de acordo com a AIE - Agência Internacional de Energia).
Com isso, as operações sustentáveis se tornaram uma prioridade para o setor, além dos benefícios mais tradicionais de eficiência das aeronaves. Desta forma, muitas empresas do setor de aviação começaram a buscar um caminho para que as aeronaves atinjam zero emissão.
Algumas consideram a eletrificação (uso de bateria) como uma opção conforme visto na indústria automotiva, mas a baixa densidade de energia em relação ao peso total do meio de armazenamento é um problema em voos longos. As outras empresas aeroespaciais estão investindo em hidrogênio para a próxima geração de aeronaves.
A densidade da energia do combustível de hidrogênio é quase o triplo do querosene, que é usado hoje nas aeronaves. Além disso, o hidrogênio é o elemento mais abundante no universo.
A adaptação de todo o setor para o uso de um novo meio de energia envolve desafios e exige fluxos de trabalho com gêmeos digitais no projeto, na análise, otimização e operação de viagens aéreas baseadas em hidrogênio.
Uma abordagem que utiliza dados com o gêmeo digital ajudará os projetistas a criar aeronaves totalmente únicas e cada vez mais complexas usando modelagem de simulação, conjuntos de dados abrangentes e validação no mundo real. Mas as mudanças no setor também vão exigir a criação de sistemas eficientes para a fabricação, o transporte e o armazenamento de hidrogênio como fonte de combustível.
A construção da indústria aeroespacial sustentável do futuro exige que as empresas usem o hidrogênio e a digitalização hoje.
Talvez o maior desafio para os engenheiros que desenvolvem uma aeronave a hidrogênio é que esta área é totalmente nova para os profissionais do setor.
Embora o hidrogênio ainda possa ser usado como combustível gasoso, a natureza do próprio hidrogênio exige recursos e estruturas especiais nos motores de turbina a gás devido à queima muito mais rápida e mais quente do que o querosene. O uso de células de combustível é igualmente complicado, utilizando apenas um subconjunto diferente da física.
Há também o desafio do armazenamento do combustível. Embora a densidade da energia do hidrogênio seja três vezes maior do que a densidade do querosene, a densidade de energia volumétrica exige um espaço quatro vezes maior para obter os mesmos resultados.
Não será viável contar apenas com protótipos físicos para avaliar possíveis projetos, considerando a complexidade, o custo, o tempo e os recursos limitados da construção de aeronaves sustentáveis. Em vez disso, as equipes de engenharia devem usar o gêmeo digital abrangente nas simulações multifísicas para analisar no mundo virtual o comportamento de sistemas de geração de energia, motores e aeronaves inteiras.
Esse amplo desafio também exige a convergência das várias áreas que participam do projeto e a coordenação do trabalho usando uma abordagem de sistema de sistemas. Por exemplo, um grupo da engenharia pode querer reduzir as estruturas internas para melhorar o peso, mas pode ter que coordenar com a equipe de sistemas elétricos para garantir que os cabos passem pelas aberturas ou com um fornecedor para adicionar conectores durante a instalação.
A construção de uma aeronave sustentável não significa apenas criar uma aeronave viável movida a hidrogênio.
O hidrogênio e os materiais usados para construir a aeronave têm um impacto ambiental, se considerarmos desde as práticas de mineração e extração até a energia usada na fabricação. Esses dados estão espalhados por vários negócios e suas cadeias de valor. O impacto do hidrogênio como combustível é um ótimo exemplo, considerando a sua importância no futuro.
O gás hidrogênio pode ser obtido de muitas fontes diferentes, algumas verdes, outras nem tanto. A identificação da proveniência do combustível tem grandes consequências na sustentabilidade da aeronave ao longo de sua vida útil.
A coleta e validação dessas informações exigem um ecossistema industrial conectado para comunicar as necessidades entre os grupos envolvidos. O mesmo se aplica à fabricação de componentes e unidades da aeronave.
Um motor do fornecedor A pode ter um impacto maior de emissão de carbono na instalação do que o motor do fornecedor B, mas oferece uma vida útil mais longa. A decisão sobre qual motor utilizar deve levar em conta o número máximo possível de dados e fontes para equilibrar a sustentabilidade com lucratividade, qualidade e tempo de fabricação.
A coleta, análise e otimização desses dados com o gêmeo digital fornecem um processo de desenvolvimento simplificado para o que pode ser o próximo grande passo na inovação aeroespacial.
Embora o objetivo de implementar os modelos de simulação de alta fidelidade com gêmeo digital seja eliminar a necessidade de protótipos de alto custo e cheios de recursos, o gêmeo digital para aeronaves movidas a hidrogênio precisará de validação rigorosa e contínua para garantir que as decisões tomadas sejam as melhores possíveis.
Desde o projeto inicial do conceito, os engenheiros precisam de acesso a dados relevantes e verificados, que podem ser dados comuns, como as propriedades dos materiais estruturais, ou sofisticados, como o estado criogênico ideal para armazenar hidrogênio a bordo. E ao longo do desenvolvimento, o teste e a operação desses dados devem evoluir para representar com precisão o mundo real no mundo digital.
Essa riqueza de dados também deve ajudar na tomada de decisões com impacto global na sustentabilidade da aeronave. Indicadores holísticos de sustentabilidade, obtidos a partir de dados do mundo real e resultados de simulação, podem orientar os engenheiros no projeto ideal da aeronave.
Um exemplo é entender o impacto de um maior volume de armazenamento de combustível em um projeto de aeronave de asa mista. O aumento de volume pode fornecer uma relação melhorada entre material e volume, mas isso poderia prejudicar o perfil externo da aeronave, alterando as condições de arrasto da superfície e afetando a eficiência total do combustível.
A mudança também pode exigir um contrato de fornecimento atualizado para o material adicional ou especificações alteradas da câmara de combustível. Com dados relevantes prontamente disponíveis a partir de modelos de simulação no gêmeo digital, a otimização do projeto será mais eficaz.
A mudança para uma fonte de energia completamente nova também envolve outros desafios de infraestrutura e logística.
Eles não são problemas exclusivos, apenas não foram resolvidos ainda. Atualmente, a capacidade global de produção de hidrogênio verde não é suficiente para atender à demanda de um setor aeroespacial em expansão. Além disso, o combustível disponível é difícil de armazenar devido ao seu grande volume e às suas propriedades corrosivas sob pressão.
Muito trabalho está sendo realizado para resolver esses dois aspectos, e o investimento das empresas aeroespaciais é um benefício para o desenvolvimento. A demanda por combustível que gaste menos energia vai acelerar um mercado em expansão e fornecer um caminho para que a indústria pesada e os setores automotivo, de manufatura industrial e energia adotem o hidrogênio como combustível substituto.
No entanto, os fabricantes, fornecedores e outros parceiros do setor terão que desenvolver padrões para o armazenamento e fornecimento do combustível. O armazenamento criogênico pode resolver muitos problemas de corrosão que ocorrem quando o hidrogênio é mantido sob pressão, mas, como o nome indica, requer temperaturas extremamente baixas.
Existem outras tecnologias que não empregam hidrogênio em sua forma pura, como o uso de amônia como transportador de átomos de hidrogênio para o armazenamento de energia de longo prazo.
Felizmente, para o setor, o número relativamente baixo de aeroportos em comparação com o número de postos de abastecimento de automóveis indica que o armazenamento pode ser localizado com mais facilidade. Encontrar a implementação certa levará tempo e exigirá a cooperação de todo o setor e dos órgãos governamentais.
O desenvolvimento de aeronaves sustentáveis movidas a hidrogênio exigirá uma transformação massiva de tudo, desde as próprias aeronaves até a infraestrutura e as cadeias de suprimentos.
Essa escala de mudança pode parecer assustadora, mas o uso de um gêmeo digital continuamente validado ajudará os engenheiros a unir as várias áreas envolvidas. O gêmeo digital abrangente permite que os desenvolvedores analisem todos os aspectos dos dados do projeto para otimizar suas aeronaves e garantir a sustentabilidade em todo o ciclo de vida do produto.
A tecnologia digital pode ajudar as empresas aeroespaciais a enfrentar melhor os desafios relacionados ao uso do hidrogênio e começar uma nova era de voos sustentáveis movidos a hidrogênio.
*Thomas Olbrechts, diretor da Simcenter Aerospace Industries Solutions da Siemens Digital Industries Software. Especial para AERO Magazine
Por Thierry Olbrechts*
Publicado em 09/07/2023, às 11h00