A comunidade aeronáutica busca repostas para a queda de um Jumbo cargueiro após a decolagem da base aérea de Bagram. O vídeo do acidente rodou o mundo pela internet
As dramáticas imagens de um Boeing 747-400 cargueiro colidindo com o terreno e se consumindo em fogo, logo após ter decolado da base aérea de Bagram, no Afeganistão, chocaram o mundo. Em uma primeira avaliação, muitos acreditaram tratar-se de montagem, com cenas construídas a partir de um programa de simulador de voo. Porém, ao se observar a cena com mais atenção, foi descartada a tese da farsa, e certamente não houve aviador que não tenha deixado de se impressionar com o acidente, ocorrido em abril último. O vídeo do desastre, que rodou o mundo pela internet, mostra que o Jumbo da companhia norte-americana de cargas National Air, matrícula N949CA, decola com ângulo de pitch muito acentuado e, em seguida, entra em atitude de estol. A aeronave gira para a direita e, aparentemente, o piloto em comando tenta ganhar sustentação, baixando o nariz e nivelando as asas. Infelizmente, já não havia altura suficiente para a recuperação. O Boeing 747 bate violentamente no solo e explode, matando seus sete tripulantes, incluindo quatro pilotos, dois técnicos de manutenção e um especialista em peso e balanceamento (loadmaster).
O voo 102 tinha como destino o Aeroporto Internacional de Dubai - World Central e transportava materiais bélicos, especialmente, veículos militares. Logo, a primeira hipótese aventada foi a de que a carga teria se soltado durante a decolagem, deslocando-se para a parte traseira da aeronave com a consequente alteração do centro de gravidade e o total desequilíbrio do Boeing. Se isso realmente aconteceu, o piloto em comando não teve muito que fazer para salvar a aeronave. E não seria a primeira vez na história da aviação. Em 7 de agosto de 1997, um DC-8-61 da norte-americana Fine Air caiu logo depois de decolar do Aeroporto Internacional de Miami, na Flórida (EUA), justamente em razão de problemas de balanceamento. O jato escalado para o voo 101 para Santo Domingo, na República Dominicana, seria o de matrícula N27UA, porém, por conta de um atraso, a companhia o substituiu por outro DC-8 (N30UA). Havia diferenças de um avião para o outro e um novo cálculo de peso e balanceamento deveria ter sido feito pelo despachante operacional de voo (DOV), o que não ocorreu. Como resultado, a aeronave ficou em total desequilíbrio e com excesso de peso na parte posterior da fuselagem. Após a decolagem, o DC-8 entrou em atitude de estol, caindo nas proximidades do aeroporto, sem deixar sobreviventes.
De acordo com as investigações, ninguém teria colocado as mãos na carga durante a escala em Bagram
Até o fechamento desta edição, as informações disponíveis sobre o acidente com o Boeing 747-400 eram inconclusivas, porém, os especialistas convocados para a investigação da ocorrência colocam em xeque a hipótese do deslocamento da carga. Os funcionários envolvidos na operação do voo desde os Estados Unidos alegam que ninguém colocou as mãos no carregamento em Bagram, onde a aeronave teria parado apenas para escala técnica e reabastecimento. O Jumbo decolou da base aérea de Hill, no estado norte-americano de Utah, prosseguiu para Chateauroux, na França, e posteriormente chegou a Camp Bastion, a principal base inglesa no Afeganistão, onde o Jumbo foi carregado com os veículos militares.
Mas, se realmente não houve problemas com a carga embarcada, as equipes responsáveis pela investigação do acidente terão de avaliar outras possibilidades, incluindo uma sabotagem ou mau funcionamento das superfícies de controle. Outra hipótese também foi levantada. A aeronave pode ter sido surpreendida pelos efeitos de uma microburst ou, ainda, uma wind shear (tesoura de vento). As informações meteorológicas de METAR (Aviation Routine Weather Report) em horários próximos ao do acidente indicam presença de nuvens pesadas do tipo cúmulo-nimbos (CB), com rajadas fortes de vento sobre a pista. A meteorologia deteriorada, levando em consideração que a pista 03/21 está construída a uma elevação significativa de 5.000 pés, pode ter comprometido a performance da aeronave. No caso da entrada em área de microburst, por exemplo, o avião pode ter acréscimo de vento de proa, com o aumento do ângulo de pitch e a tendência de subir. Assim que atinge a área mais crítica da variação atmosférica, o vento de proa muda para uma descendente. A velocidade cai drasticamente, levando o avião a baixar o nariz e descer.
A seguir, as informações meteorológicas de Bagram no período em que ocorreu o acidente:
KQSA 291155Z 33008G17KT 9999 - TSRA SCT050CB BKN090 BKN170 13/04 A2996 RMK CB OHD MOV N SLP139 60000 70000 51014
KQSA 291059Z 35011G17KT 9999 FEW050 BKN065 BKN090 14/05 A2993 RMK WND DATA ESTMD ALSTG/SLP ESTMD
KQSA 291058Z 35011G17KT 9999 FEW050 BKN080CB BKN150 14/05 A2993 RMK LTG DSNT NW SLP124 WND DATA ESTMD ALSTG/SLP ESTMD
KQSA 291055Z 02007KT 9999 FEW040 BKN080CB BKN150 18/06 A2994 RMK PK WND 06026/1005 WSHFT 1027 LTG DSNT NW CB DSNT NW SLP124 WND DATA ESTMD ALSTG/SLP ESTMD
KQSA 290955Z COR 10017G30KT 9999 SCT085 BKN140 BKN200 17/06 A2992 RMK PK WND 09032/0856 LTG DSNT NW CB DSNT E SLP213 WND DATA ESTMD ALSTG/SLP ESTMD COR 13
Segundo o meteorologista Rubens Junqueira Vilela, é possível que uma wind shear a baixa altura tenha causado o acidente, em vista da presença de CBs na área e as variações dos ventos em superfície reportadas pelos METAR, tanto em direção (de E para NE e N, ou sucessivamente de través pela esquerda, de frente, e través pela direita) como de velocidade (7 a 17 kt com rajadas de 17 a 32 kt). Uma wind shear é uma mudança brusca (cisalhamento) de velocidade ou direção do vento ao longo da trajetória de voo, e que pode levar rapidamente à perda de controle e sustentação, com resultados catastróficos quando incide em fase crítica do voo, como na decolagem ou no pouso. "Nesse caso em Bagram, chama a atenção os baixos valores do ponto de orvalho informados nos METAR e, ao mesmo tempo, a ausência de precipitação no solo (exceto no final do período, às 1155Z, com trovoada), estando a base das nuvens CB (teto) bastante altas (8.000 pés). Isso poderia indicar ocorrência de virga, que é a precipitação que não alcança o solo, e uma condição reconhecida como causa de wind shear", explica Vilela.
A OCORRÊNCIA DE VIRGA É UMA CONDIÇÃO RECONHECIDA COMO CAUSA DE WIND SHEAR
O meteorologista também destaca o fato de o CB com trovoada, observado sobre o campo (METAR das 1155Z), estar se deslocando para o norte, portanto, contra o vento de superfície, que seria mais um sinal de cisalhamento ou condições para ocorrência da wind shear. Interessante notar, também, que o METAR das 1055Z indica uma mudança de vento (WSHFT) às 1027Z, que corresponde praticamente à hora do acidente (1030Z). "As componentes de vento (través, de frente ou proa) valeriam para um intervalo de tempo relativamente grande em torno das 1027Z, porém, não quero dizer que foram as que efetivamente o avião sinistrado tenha encontrado", ressalta Vilela, que prefere aguardar o desenrolar das investigações, cujas conclusões devem levar em consideração o registro original do deslocamento do vento (anemograma).
Independente do relatório final do acidente com o jato da National Air Cargo, o procedimento para evasão de uma wind shear no Boeing 747 exige atenção e perícia do piloto em comando. O brasileiro Manolo Suarez comandou Boeing 747-400F na China nos últimos nove anos e recorda que, no simulador de voo, há três manobras treinadas: no primeiro caso, aborta-se a decolagem se o alerta de wind shear soar antes da V1, como em qualquer outra aeronave comercial. Num segundo caso, o alerta acontece após a chamada velocidade de decisão, mas antes da rotação (VR). Reza o procedimento operacional que o aviador deixe o avião correr mais um pouco para ganhar velocidade, até no máximo 2.000 pés antes do final da pista - coincide com a iluminação âmbar de HIRL (High Intensity Runway Lights) ou de MIRL (Medium Intensity Runway Lights) - para então iniciar o procedimento de rotação, com potência em regime máximo (TOGA). E se o alerta para wind shear soar com a aeronave já fora do solo, cabe ao piloto em comando manter pitch de 15 graus, tomando cuidado para não ultrapassar essa margem já que a velocidade pode cair drasticamente, levando a aeronave em situação crítica de estol, e só recolher o trem de pouso e flaps depois que o avião ultrapassar a zona de perigo, sem os alertas sonoros e visuais nos PFDs (Primary Flight Display) e de master caution. No caso do Boeing 747 da National Air Cargo, nota-se que o trem de pouso ficou abaixado, com o jato ainda em configuração de decolagem no momento da queda.
Robert Zwerdling é comandante de Airbus A320
Robert Zwerdling
Publicado em 11/07/2013, às 08h10 - Atualizado em 02/08/2013, às 23h24
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