Avião acrobático inspirado na extinta categoria One Design, o DR 107 se revela um gigante apesar das dimensões reduzidas
Lídio Bertolini Neto a bordo de seu notável monoplace, em Rio Claro
Estamos no tradicional Aeroclube de Rio Claro, interior de São Paulo, numa tarde ensolarada de sábado, sob o céu azul típico da cidade. Com 50 horas de voo neste avião, parto para mais uma decolagem, tentando desvendar os segredos desta "pequena grande" aeronave, seguindo, dentro do possível, as normas e técnicas para os primeiros voos de qualquer protótipo. Como a pista é de terra, preciso tomar cuidados, já que, para ganhar alguns hp, o avião não tem filtro de ar, como acontece com a maioria dos aviões de competição. Após check externo bem detalhado, ainda em frente do hangar, entro na cabine como se entra em um carro de Fórmula 1 e completo o "cerimonial de amarração" com os cintos de 5 pontos e o cinto abdominal extra de segurança (este um grande segredo para evitar sustos em voo). Coloco o fone e checo a liberdade dos comandos. Já no solo, percebo os comandos superleves e precisos.
Com os manetes de potência e a mistura à frente, ligo a bomba de combustível por alguns segundos. A partida se dá sem nenhum problema. Quando o motor ganha vida, já se percebe que o "bichinho" quer mesmo é voar. Mesmo em marcha lenta, preciso manter os freios bem aplicados para não andar. Aqueço e checo o motor com 1.800 rpm, em uma área asfaltada em frente à torre antiga. Sinto dificuldade em manter o avião parado. Com 2.000 rpm ou mais, existe o risco de pilonar, mesmo parado. Reduzo para potência mínima e observo 750 rpm. O painel é simples e espartano, o necessário para um voo de acrobacia. O tanque de combustível fica entre as minhas pernas e é dividido em duas partes: a superior com 50 litros usados somente para navegação, e o inferior, com 30 litros para acrobacia, somando aproximadamente 2h20 de autonomia.
Tudo checado, inicio o táxi e alinho para uma decolagem sem parada. Dou um pouco de potência para evitar ingestão de terra e estragos na hélice e completo o motor. A aceleração é anormal, sinto as forças que um motor a hélice produz, principalmente o efeito de massa de ar das pás da hélice (propeller sleepstream). Uso quase todo pedal direito e, às vezes, o freio direito para manter a reta de decolagem. Logo, chego a 70 nós e tiro o avião do chão com uma atitude bem cabrada (2.500 a 2.700 pés por minuto) cruzando a cabeceira oposta a mais de 1.000 pés. Atinjo 5.000 pés num instante e me preparo para realizar algumas manobras. A relação força/G (ou esforço no manche para se produzir G) é muito leve, o que me obriga a voar na "ponta dos dedos". Inicio com estóis normais e invertidos e observo estóis bem suaves e sem tendências. Como ainda estou voando com um CG dianteiro, no dorso sinto uma tendência de baixar o nariz antes da velocidade esperada, e falta de autoridade de profundor. Com o CG traseiro, o avião fica mais manobrável e competitivo.
One Design na faca, com fumaça
Realizo alguns tunôs em velocidade de cruzeiro de 140 kt e observo uma razão de giro de 360° por segundo, o que me coloca em condições de igualdade com os puros-sangues da acrobacia ilimitada (o Pitts me permite no máximo 270° por segundo), da mesma forma, executo-os na vertical ascendente e descendente. Na vertical, é possível realizar quatro voltas, dependendo da velocidade de entrada e da técnica utilizada. As execuções de looping, oito cubano e immelman são tão fáceis que acredito que conseguirei boa pontuação caso voltemos a ter campeonatos.
O projeto deste avião prevê 10 g positivos e negativos - mas Joseph Kovacs, que reprojetou a longarina, garante que a peça suporta até incríveis 20 g. Ganho altura para executar alguns parafusos, mas somente os normais. Ainda não executei os parafusos chatos, normal e invertido, o que estou programando para os próximos voos. Observo que a hélice Catto produz muita tração, mesmo em marcha lenta. Demoro a atingir a velocidade de estol e percebo resistência em estolar, o que ocorre com o nariz do avião bem acima do horizonte. A execução é simples e a recuperação ocorre sem grandes dificuldades. Vejo também que o uso agressivo do pedal pode colocá-lo em um parafuso para o lado contrário, o que já aconteceu algumas vezes.
Parto para a execução de tunôs rápidos ou snap roll. Comparando ao Zlin que voava anteriormente e a outros aviões, percebo uma falta de harmonia no uso do profundor e do leme, ou seja, a força no leme é maior e o profundor é tão leve que algumas vezes causa estol de alta (estol secundário, em razão do descolamento da camada limite), travando o giro do avião. Tudo isso está sendo estudado e será resolvido brevemente. Executo torque roll (mantenho o avião na vertical, girando sem perder altura pelo maior tempo possível), e percebo que, mesmo sendo uma manobra complicada, neste avião ela se torna muito fácil e giro por longo tempo. Com certeza será muito usada em shows aéreos. Estou agora começando a treinar manobras giroscópicas e de precessão, tais como tumble, lomcevak, entre outras. Já suado e um pouco cansado, regresso para pouso e ingresso no tráfego com 90 kt, o que, em função do uso de perfil simétrico, me deixa numa atitude de nariz acima do horizonte, dificultando visibilidade à frente. Executo uma aproximação de 180° a fim de manter contato visual com o ponto de toque e reduzo a velocidade para 80 kt. Na curta final, o nariz do avião encobre a pista e sou obrigado a usar referências laterais para manter o alinhamento.
Surpreendentemente, percebo que a máquina se recusa a tocar na pista e flutua no efeito solo apesar da pequena envergadura. Notei isso já nos primeiros voos. O aviãozinho tem bom planeio e, talvez pela tração em marcha lenta, sou obrigado a tocar três pontos e levantar a cauda produzindo sustentação negativa para pousar curto.
Regresso ao hangar e, antes de guardar o avião, fico admirando a pequena "águia". Sem perceber, sou tomado pela memória dos 14 anos envolvidos na sua construção. Fiz grandes amizades, tive contato com técnicas e macetes relacionados à aerodinâmica de aeronaves acrobáticas, aprendi muito, cresci como piloto e nada vai superar o gostinho de ver "surgir" um avião a partir de uma planta, e um avião ilimitado! Não dá para definir a alegria e a emoção de voar num avião que você acompanhou desde o início, fez o primeiro voo e ainda está tentando "domá-lo".
O relato do piloto Lídio Bertolini Neto a bordo de seu DR 107 One Design PU-LBN é de causar arrepios naqueles que tem alguma devoção pela acrobacia aérea. Capitão-aviador R2 da FAB (Força Aérea Brasileira), com mais de 16.000 horas de voo, tendo sido instrutor da Academia da Força Aérea, piloto de caça, planador e helicóptero, além de comandante na Varig e na Gol, ele hoje testa aeronaves da Embraer enquanto constrói (e voa) seus próprios aviões. Este monoplano monoplace acrobático com trem de pouso convencional, asa baixa construída de madeira (longarinas, nervuras e revestimento) e fuselagem feita com tubos de aço 4130 (entelada na parte traseira e revestida com chapas de alumínio na parte dianteira), além de profundor, deriva e leme produzidos com tubos de aço 4130 e entelados, tem uma história especial.
Juntamente com dois amigos, Lídio, então piloto da Varig, comprou as plantas do DR 107 e, em 1994, iniciou sua construção, em Pirassununga, no interior de São Paulo. As três fuselagens foram construídas ao mesmo tempo, mas, por prioridades pessoais, cada projeto passou a ser executado individualmente. Lídio deixou a construção do seu One Design a cargo de um mecânico da FAB, Márcio Contieiro, o qual, com vasta experiência em construção e reparo de diversos tipos de aeronaves (planadores, dentre eles), fez um refinado trabalho artesanal na montagem dos conjuntos da máquina, além de sistemas, instalação do motor e ajustes finais. Mas esse processo, entre paradas e atrasos, demorou quase uma década e meia para se concluir. O desembolso de recursos, segundo Lidio, foi gradual, e Contieiro também estava trabalhando na construção de outras duas aeronaves. Como regra, a pressa em terminar a construção pode arruinar as qualidades de voo de qualquer aeronave, principalmente num acrobático, que depende de precisão no acabamento, distribuição de massa e simetria para a execução de manobras "perfeitas".
Não por acaso o acabamento das asas do One Design (construídas pelo experiente Rafael Rodrigues, em Rio Claro) foi executado por Contieiro em nada menos que seis meses de trabalho. Nesses 14 anos, Lidio chegou a comprar um Pitts S1S para continuar voando acrobacia e, depois, com mais dois sócios, também pilotos da Varig, comprou um Zlin Z50 LA, com o qual executou inúmeras demonstrações em shows aéreos pelo Brasil.
O engenheiro responsável pelo acompanhamento da construção do avião (exigido pela legislação) foi Paulo Iscold, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que contribuiu muito para o refinamento da aeronave. Já a longarina foi reprojetada, como enfatizou Lídio em seu relato, por Joseph Kovacs (pai dos famosos T-25 Universal e T-27 Tucano, que dispensam comentários), tornando-a mais leve e resistente. Em seguida, vieram o casamento e os filhos e, com eles, outras prioridades, apesar do apoio irrestrito da família. O Pitts foi vendido para comprar uma casa e, após a venda do Zlin, Lidio ficou quase dois anos sem voar. Eis que, em 2008, o One Design fez seu primeiro voo. Lidio conta que numa tarde de agosto daquele ano, após todos os testes e ajustes do motor, em Rio Claro, seguindo as regras e protocolos, decolou pela primeira vez, executando um voo tranquilo.
"Fiz um voo curto, sem falhas. O avião mostrou qualidade de voo e comandos sensíveis, como um bom acrobático deve ser. Os estóis não apresentam tendências de queda de asa, lembrando um J-3. Mas o velocímetro teimava em dar indicações errôneas, para menos, em função de problemas no sistema pitot estático. Nessa hora, me vali da experiência em outros aviões. Também chamou minha atenção o "planeio", muito bom. No efeito solo, a tendência é ficar voando consumindo muita pista", conta o piloto.
Da primeira decolagem até hoje, a aeronave conta com aproximadamente 50 horas de voo, a maioria em teste e ajustes. "O One Design tem uma razão de giro de 360° por segundo, como relatei no voo, que é a mesma de um Extra ou um Sukhoi. Ou seja, ele faz a mesma coisa que os outros fazem, com a metade do consumo", compara o construtor, entusiasmado.
"Este avião acabou de completar suas 50 horas iniciais, e ainda faltam testes. Existe um valor de horas para testes, um cálculo feito por especialistas, que é de 43 horas, um valor médio para que se julgue se uma aeronave de construção amadora está segura. Isso é uma norma, e nós não sabíamos, todo mundo constrói e sai voando. Com o Zlin, mesmo sendo um avião mais fácil, comprovado, treinei umas 30 horas antes de ir para o show aéreo com ele. Com este aqui, já fiz uma demonstração em Piracicaba, mas bem alto. Continuo treinando e sigo a regra do (Alberto) Bertelli: escolho uma referência de altura, algumas nuvens por exemplo, e faço as manobras acima dessa referência. Já saí abaixo desta referência depois das manobras umas três vezes. É a fase de ajustes, de adaptação."
A categoria One Design, que nasceu nos Estados Unidos (leia mais no box na página oposta), sucumbiu no início da década de 2000. Mas ainda persistem alguns competidores e demonstradores. Cerca de 20 aeronaves abrilhantam os shows aéreos nos céus dos EUA e, em breve, o mesmo acontecerá aqui no Brasil, com o pequeno e valente One Design PU-LBN. "Trata-se de um pequeno grande avião, capaz de fazer praticamente tudo o que os aviões de primeira linha fazem. Se a categoria One Design tivesse continuado, com certeza teríamos um grande competidor. Como costumo dizer aos amigos pilotos, vazio ele é o maior aeromodelo do Brasil, com um piloto dentro é o menor avião acrobático", brinca Lidio.
DR 107 ONE DESIGN |
Motor - Lycoming AEIO 360 ou 320 |
A HISTÓRIA DA CATEGORIA ONE DESIGNEra o começo da década de 1990. Os shows aéreos aconteciam no Brasil com mais facilidade, e apoio. Os pilotos, talentosos, muitos deles aprendizes do "veio" Bertelli, empolgavam e encantavam o público com seus Pitts, Christen Eagle, Bücker e Decathlon, em evoluções pelos céus das cidades brasileiras, juntamente com a Esquadrilha da Fumaça e outras atrações. Boa parte deles era formada por pilotos de linha aérea, que, durante o tempo livre, em vez de ir pescar ou jogar uma partida de futebol com os amigos, tinha uma maneira especial para aliviar o estresse após pernas cansativas em grandes aeronaves: sim, voando! Alguns treinavam para suas demonstrações enquanto outros se preparavam para etapas dos campeonatos de acrobacia. E havia aqueles que simplesmente aproveitavam uma tarde de sol fazendo evoluções sobre um aeródromo calmo do interior. Naquela época, despontavam nos Estados Unidos aviões mais potentes, e de construção mais refinada e profissional, como os Extra, Edge e Sukhoi, frutos da evolução tecnológica e da exigência por precisão nos campeonatos. Com estas máquinas, os competidores podiam participar de categorias como a Advanced e a Unlimited, o que era praticamente impossível com um Bücker ou um Pitts. Não que os aviões clássicos fossem ruins, apenas faltava-lhes potência e aerodinâmica para cumprir todas as manobras das categorias superiores com a precisão dos novos modelos. No Brasil, os pilotos que participavam dos campeonatos tinham a mesma dificuldade, agravada pelos entraves burocráticos e pela alta tributação incidentes na importação de aeronaves. A solução, assim, era construir um avião, a partir de plantas ou kits, com custos diluídos durante a construção, e mais baixos se comparados aos preços de aviões prontos. Entre o final da década de 1970 e a década de 1990, nos EUA, a construção aeronáutica amadora (ou simplesmente aviação experimental) deu um salto enorme em termos tecnológicos e variedade de kits e componentes, facilitando o acesso à aviação a pilotos e DESIGNaficionados com menor poder aquisitivo. Em pouco tempo, muitos americanos já tinham como atividade de lazer a construção de um avião, na garagem de casa. A comunidade brasileira também acompanhou essa tendência, em menor escala, mas era muito comum na década de 1990 a reunião mensal de construtores para troca de informações sobre suas aeronaves. Nos shows aéreos sempre apareciam algumas novas aeronaves com prefixo Z (zulu), atraindo a atenção e incentivando cada vez mais a atividade. Exatamente nessa época, ainda nos EUA, foi proposta pelo IAC (International Aerobatics Club, ou Clube Internacional de Acrobacia) a criação de uma nova categoria de competição, que se chamaria One Design. A proposta era simples: para se conhecer o melhor piloto, algumas variáveis deveriam ser eliminadas e, nesse caso, o modelo de avião seria o mesmo para todos, com limitação da potência do motor e surgimento de uma nova sequência de manobras para a categoria. Seria a primeira vez na aviação motorizada, considerando que o conceito já havia sido utilizado em competições de voo a vela, com o planador Schweizer 1-26. A IAC propôs que a construção de aviões fosse feita a partir da mesma planta com uso de motores limitados inicialmente a 150 hp e, posteriormente, a 180 hp. Além disso, alguns requisitos construtivos determinados pelo comitê técnico da IAC deveriam ser obedecidos, e antes das competições era necessária uma foto de dentro da cabine, com a aeronave em voo com máxima potência, mostrando a rotação do motor e a velocidade, para comprovar o desempenho similar entre as aeronaves. A partir daí, seriam os pilotos que fariam a diferença. Partiu, então, do engenheiro aeronáutico e piloto acrobático Dan Rihn, incentivado pelo piloto Lewis Shaw, a proposta da aeronave para a categoria, em 1992. O protótipo do DR 107, que foi batizado não coincidentemente de "One Design", voou nove meses depois, sendo testado por aproximadamente 75 pilotos nas suas primeiras 85 horas de voo, a maioria delas em manobras acrobáticas. Logo, a aeronave estava sendo anunciada nas mais diversas revistas sobre construção amadora, mais de mil plantas foram vendidas com kits sendo comercializados pela Aircraft Spruce & Specialty, de uma maneira acessível a muitos pilotos e construtores. Por razões diversas, a ideia de uma nova categoria não vingou e acabou abortada menos de uma década após ter surgido. O que mais pesou talvez tenha sido a baixa qualidade de construção de alguns exemplares, com precário acabamento de asas. Num avião com tal envergadura e aerofólio específico, qualquer assimetria de forma e peso produz resultados negativos, com tendência aerodinâmica, contribuindo para a perda significativa de qualidade de voo. |
Texto E | Fotos Maurício Lanza
Publicado em 10/06/2013, às 13h23 - Atualizado em 27/08/2013, às 22h26
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