As dúvidas sobre o alcance do que os suecos da Saab vão, de fato, transferir para a indústria nacional em termos tecnológicos com a aquisição pela FAB dos caças Gripen NG
A decolagem do primeiro Gripen E destinado à Força Aérea Brasileira causou frisson internacional. Cinco anos após a assinatura do acordo de compra de 36 aeronaves, a Saab mostrou ao mundo o futuro caça do Brasil em ação. Nos bastidores, a programa suscita alguma euforia, mas, também, deixa margem para certa dose de incertezas.
Além da máquina em si, a grande vantagem competitiva da proposta sueca, que lhe garantiu êxito na concorrência travada dentro do projeto F-X2, superando norte-americanos e franceses, reside justamente na transferência de tecnologia para a indústria brasileira. Há quem diga que o Gripen será o último avião de combate adquirido pelo Brasil de um fabricante estrangeiro, uma vez que os futuros caças serão construídos por empresas nacionais. Será mesmo? A resposta para essa pergunta parece levantar mais dúvidas que certezas.
O pioneiro voo do Gripen E marcou a consolidação de um projeto iniciado ainda na década de 1990, quando a FAB definiu os parâmetros para a modernização de sua já obsoleta frota de caças Mirage IIIE. Na época, o supersônico francês, celebre por seu sucesso internacional, tanto comercial como operacional, aproximava-se rapidamente do limite de sua vida útil.
Embora a atuação do Mirage no Brasil tenha sido bem-sucedida, sua aquisição na década de 1970 ocorreu, entre outros motivos, por falta de opção. O cenário da Guerra Fria limitava bastante a oferta de caças avançados ao país. Mesmo sendo aliado das potências ocidentais, o Brasil sofria pelo jogo geopolítico vigente na época. Ciente do problema, a FAB iniciou uma busca por independência, o que ocorria em paralelo ao surgimento da Embraer.
O fabricante brasileiro de São José deu uma vantagem tecnológica ao país, que incorporou uma série de novas capacidades no setor aeronáutico, ainda que limitadas nos primeiros anos. A empresa poderia gerar conhecimento para, no futuro, integrar grandes projetos. O grande marco dentro da visão estratégia de domínio de tecnologia foi a participação da FAB no programa AMX, que previa um caça-bombardeiro em parceria com a Itália.
O programa AMX trouxe uma série de novos conhecimentos tecnológicos para a Embraer e a FAB, possibilitando um aumento da capacidade produtiva do setor aeronáutico brasileiro. Por mais que se apontem deficiências ao programa AMX e ao próprio avião, a iniciativa se mostrou bastante adequada à realidade da FAB na época e serviu de parâmetro para o que seria o programa F-X2. Após ser cancelado pelo recém-empossado presidente Lula, o programa F-X foi redesenhado e ganhou novos contornos.
O projeto original, iniciado em meados dos anos 1990, previa a compra de um novo vetor de caça para substituir o Mirage III e, possivelmente, torná-lo o modelo padrão da FAB. Já havia ali uma preocupação com a transferência de tecnologia, mas ainda restrita, basicamente, ao acesso ao código-fonte, que deveria ter arquitetura aberta, permitindo ao Brasil integrar sistemas e armas sem a necessidade de solicitar autorização ao fabricante do avião.
Um aspecto considerado na época era a exigência de um detalhamento das políticas de restrição à exportação de equipamentos e tecnologias sensíveis, incluindo softwares e hardwares dos países de origem do avião. O objetivo era garantir que o acesso ao código-fonte não dependesse de autorizações do governo do país onde a aeronave fora projetada, o que, historicamente, mostrava-se um grave problema para o desenvolvimento de tecnologias e soluções militares próprias.
O programa F-X2 foi lançado em 2006, sendo remodelado e ganhando novas exigências, entre elas a transferência de tecnologia. Diferentemente do previsto anteriormente, o Brasil passava a exigir não apenas acesso ao código-fonte dos sistemas, mas, também, uma completa transferência tecnologia, permitindo à indústria aeronáutica brasileira participar de todo o processo e, ao final, deter o conhecimento para, no futuro, produzir localmente qualquer projeto similar.
Ao longo de sete anos, o programa F-X2 sofreu toda a sorte de contratempos, incluindo o anúncio precipitado da vitória do francês Rafale sem que o acordo estivesse oficialmente firmado. Ao final, em 2013, a então presidente Dilma Rousseff anunciou o Gripen NG como programa vencedor do F-X2. No contrato firmado em 2014 constava, além da aquisição de 36 aviões, sendo 30 monopostos (Gripen E) e oito bipostos (Gripen F), uma série de requisitos como a transferência de tecnologia de forma irrestrita.
“Vamos transferir tecnologia e capacidade de projetar e construir caças”, afirmou Hakan Buskhe, presidente da Saab, durante a assinatura do contrato em outubro de 2014. “Vai ser um salto, não apenas para a Embraer, mas, também, para a nossa indústria em geral”, acrescentou o brigadeiro Alvani Adão da Silva, então diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA).
Apesar da animação inicial, o tema transferência de tecnologia logo despertou incertezas, já que o Gripen NG conta com sistemas fornecidos por nações diversas além da Suécia, o que automaticamente exclui tais componentes e tecnologias de um compartilhamento irrestrito de informações industriais estratégicas. Em 2011, durante uma longa exposição realizada pela Saab em audiência no Senado, pouco mais de dois anos antes do anúncio do vencedor do programa F-X2, a Saab mostrou à comissão uma apresentação de 43 slides detalhando as características do avião e o proposto na transferência de tecnologia.
O documento apresentado mostrava que a Saab estava disposta a “ter a indústria brasileira como parceira igual no desenvolvimento do Gripen NG”, com o Brasil tendo “até 40% do desenvolvimento e até 80% da produção de estruturas com exclusividade mundial”. O pedido de oferta elaborado pelo Comando de Aeronáutica e aprovado pelo Ministério da Defesa descreve em detalhes os requisitos de transferência de tecnologia de interesse da FAB e do parque industrial aeroespacial brasileiro.
Esse documento é sigiloso, já que envolve tecnologia militar sensível. Mas a reportagem de AERO teve acesso a dados da FAB que descrevem a avaliação da área de contrapartidas na Emissão do Pedido de Oferta (RFP). As áreas de interesse buscadas pela força aérea nacional incluiriam aviônica e sensores, fusão de dados e consciência situacional, networking warfare, integração do motor, RCS (Radar Cross Section), sobrevivência e vulnerabilidade, integração de armamentos e novas configurações e integridade estrutural.
Em relação à cooperação industrial, os arquivos consultados por AERO elencam estes objetivos da FAB no processo: produção nacional da célula, produção nacional de partes, desenvolvimento de software, integração de aviônicos, integração e qualificação de armamentos, manutenção do motor, manutenção do software, manutenção da célula, manutenção do sistema de controle de voo, manutenção do radar e manutenção da aviônica.
“Desta lista pouca coisa a Embraer, por exemplo, não é capaz de fazer atualmente, independentemente do acordo de transferência de tecnologia”, diz um coronel da FAB, que pediu anonimato. “Ainda que o desenvolvimento de software seja específico para um caça, os acordos de modernização dos F-5, A-1 e A-4 deram ao Brasil conhecimento sobre o funcionamento da lógica empregada. Apenas precisaríamos de tempo e dinheiro para termos plena capacidade”.
Textualmente, o documento mostrado a AERO afirma que a avaliação da área de contrapartida aborda de forma sistêmica características relacionadas a práticas compensatórias de transferência de tecnologia descritas como “projetos relacionados a aviônicos e sensores, fusão de dados e consciência situacional, guerra centrada em rede, integração do motor, invisibilidade radar, sobrevivência e vulnerabilidade, integração armamentos e integridade estrutural”.
Em nota enviada a AERO Magazine, a FAB informa que cada empresa terá uma determinada área de conhecimento na qual atuará. Engenheiros e técnicos dessas empresas beneficiárias serão enviados por elas para receber tais conhecimentos nas instalações da Saab, onde serão fornecidos cursos específicos e treinamento de acordo com sua área de atuação. Adicionalmente, após essa transferência de tecnologia na Suécia, haverá também a execução de cargas de trabalho específicas aqui no Brasil, por parte dessas empresas, com a finalidade de solidificar os conhecimentos apreendidos e de integrá-los ao seu capital intelectual.
Um aspecto importante do debate é que alguns requisitos se tornam bastante complexos quando se trata de acordos como os de transferência de tecnologia para a indústria nacional. É o caso de aviônica e sensores, ressaltados diversas vezes em documentos da FAB. Um dos principais sistemas de um caça moderno é seu radar AESA, acrônimo para varredura eletrônica ativa.
Originalmente, o Gripen é equipado com o radar RAVEN, da italiana Leonardo. Em meados de 2014, a Saab passou a trabalhar em parceria com a sueca Ericsson no desenvolvimento de um radar AESA destinado ao Gripen NG. Batizado NORA, o programa contava no início com componentes fornecidos pela norte-americana Raytheon antes de ser suspenso em 2008 pelo governo Fredrik Reinfeldt. O Gripen Demo, que era uma versão de demonstração das capacidades do futuro Gripen NG, no roll-out estava equipado com um radar RBE2, fornecido pela francesa Thales, o mesmo modelo que equipa o caça Rafale. Por fim, a Saab formalizou um contrato com a Leonardo para o fornecimento do radar Selex ES-05 RAVEN.
“Se a FAB quiser adquirir capacidades de integração do radar ao avião, é provável que não haja grandes empecilhos, já que é um sistema ‘plug and play’ e o código de integração é da Saab”, explica o consultor Olavo Gomes. O problema, continua o especialista, pode acontecer caso exista a pretensão por parte dos brasileiros de absorver a tecnologia de desenvolvimento de um radar tipo AESA, uma vez que a Saab não é proprietária do modelo instalado no Gripen NG. A acesso tecnológico envolveria uma negociação entre a FAB e o fabricante do radar, procedimento que a força aérea não divulgou como se será. Além disso, parte da tecnologia utilizada pertence a empresas norte-americanas, o que envolveria um acordo entre Brasil e Estados Unidos.
Segundo o Ministério da Defesa do Brasil, cerca de 60 projetos-chave compõem o programa de transferência de tecnologia. O mais expressivo é o Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen (GDDN, ou Gripen Design and Development Network), localizado em Gavião Peixoto, no interior de São Paulo. Ali os caças serão efetivamente montados, ao menos os que contratualmente forem produzidos no Brasil. Além disso, a Embraer será responsável por desenvolver a versão biplace do Gripen, que é ligeiramente maior. O contrato prevê que, dos 36 aviões, 15 sejam produzidos no Brasil.
A Saab Aeronáutica Montagens, unidade produtiva do fabricante sueco instalada em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, será responsável pela produção de itens como cone de cauda, freios aerodinâmicos, caixão das asas e fuselagens dianteira e traseira das versões E e F. “Estamos transferindo conhecimento e capacidade de produção de aeroestruturas complexas para o Brasil, cumprindo nosso acordo de offset”, assegurou Mikael Franzén, chefe da unidade de negócios Gripen Brasil, durante a inauguração da SAM, em maio de 2018.
Na ocasião, Marcelo Lima, diretor-geral da SAM, afirmou que uma das virtudes da planta industrial seria o fato de o projeto ser completamente paperless (sem papel), ou seja, todo conteúdo seria disponibilizado em formato digital, evitando, assim, o uso de documentos impressos, que, além de volumosos, estariam mais vulneráveis a roubos de informações. A segurança será reforçada pela necessidade de cada documento ser exibido apenas no terminal destinado, não sendo possível acessar de outro local.
O problema é que não há certeza de que as informações vão ficar com o Brasil, conforme alertou a AERO um alto oficial da FAB, que pediu para não ser identificado, por ocasião da inauguração da unidade de São Bernardo. “Sim, um sistema digital com uma criptografia adequada não pode ser facilmente desviado de seu fim. Mas a Saab está transferindo para ela mesma a capacidade de montagem e integração de componentes. Ao final do contrato, basta desligar os computadores e o Brasil jamais terá acesso à documentação”. E continuou: “O contrato tem que estar bem ‘amarrado’ para evitar surpresas desagradáveis no futuro”.
Por se tratar de um acordo militar, o contrato não é público, o que torna difícil saber o teor exato de como ficará tal transferência após a conclusão da montagem dos 36 aviões encomendados. “Nenhum fabricante ou governo transfere tecnologia sensível. O que existe nesse tipo de contrato é o conhecimento dos processos de fabricação e integração”, avalia o engenheiro aeronáutico Ricardo Barros. “E isso é bastante valioso caso o país e sua indústria saibam como utilizar tal conhecimento”.
Na prática, o que se diz, e outros especialistas compartilham dessa opinião, é que a tecnologia realmente valiosa fica de possa do fabricante, mas pode haver transferência do conhecimento por trás dos processos de fabricação, algo útil para países como o Brasil, que detêm uma indústria aeronáutica.
A Saab esteve perante a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados em 2009 para tratar desse tema. Sua apresentação considerou que o processo de transferência de tecnologia exige que exista uma entidade disposta a transferir tecnologia e outra apta a recebê-la. Na proposta, estava a descrição textual que haveria um processo de transferência “on the job training”, ou seja, aprender fazendo. E que a responsabilidade por 40% das atividades de desenvolvimento seria realizada pelas empresas brasileiras. Nesse caso, a transferência pode acontecer de forma indireta, já que os funcionários treinados poderão no futuro auxiliar o país a desenvolver uma capacidade própria, não significando que exista a entrega de documentação sensível de um projeto já existente.
A SAM possui como sócios a Saab AB, com 90% do negócio, e a brasileira Akaer com os demais 10%. A empresa brasileira, especializada no desenvolvimento de aeroestruturas, é parceira da Saab no desenvolvimento dos caças desde 2009, quando foi contratada para projetar conjuntamente segmentos da fuselagem do Gripen. Na ocasião que a Akear se tornava sócia da SAM, a Saab AB ampliava sua participação na empresa brasileira, de 25% para 28%, em uma operação de troca de ações.
Um dos destaques do acordo formalizado com o Brasil é que o governo sueco, que há mais de um século mantém uma tradição de independência tecnológica em sistemas militares, confiou a outro país uma parceria avançada, envolvendo seu principal caça. “É um fato relevante esse acordo dentro do histórico da Suécia, ainda assim, ressaltando que a Saab e a própria Suécia buscavam um parceiro internacional para o Gripen NG. A mesma proposta tem sido feita à Índia e ao Canadá”, contextualiza Olavo Gomes.
Outro ponto considerável do programa Gripen NG foi o acordo que permitiu que o sistema de aviônicos e o display utilizado no avião fossem desenvolvidos por uma empresa brasileira. A FAB optou por uma solução própria, que inclui display panorâmico, conhecido em inglês por Wide Area Display (WAD), dois Head Down Displays (HDD) e um novo Head Up Display (HUD), diferente do projeto original da Saab.
O desenvolvimento da aviônica, incluindo o display, ficou a cargo da brasileira AEL Sistemas, situada em Porto Alegre, que desenvolve, fabrica e fornece o suporte logístico de sistemas eletrônicos militares e espaciais. O senão é que, desde 2001, a empresa faz parte do grupo israelense Elbit Systems, um dos líderes globais em sistemas eletrônicos voltados para o setor aeroespacial e militar. Ainda que a capacidade de desenvolvimento esteja ocorrendo no Brasil, a empresa é controlada por um grupo internacional, que já detém ampla capacidade no setor. Ainda assim, a AEL Sistemas é parceria da Embraer na integração e desenvolvimento de sistemas do Gripen NG e em demais programas militares, como o KC-390.
Debates à parte, o desempenho do WAD desenvolvido pela AEL garantiu que a tecnologia fosse adotada também pelos caças destinados à força aérea sueca, e se tornasse padrão no programa Gripen NG. O sistema WAD estava já disponível no primeiro avião destinado ao Brasil (o 39-6001), que voou em agosto na Suécia. “Essa foi a primeira vez que voamos com o WAD e estou feliz em dizer que minhas expectativas foram atendidas”, comentou Richard Ljungberg, piloto de ensaios em voo.
O contrato assinado pela FAB em 2014 prevê, além do desenvolvimento do novo avião, sua construção e também o treinamento de pilotos e mecânicos brasileiros na Suécia. O investimento total estabelecido era de aproximadamente 13 bilhões de reais. O relatório sobre o Gripen feito pela Comissão Coordenadora do Programa Aeronave de Combate, do Comando da Aeronáutica, tem mais de 33 mil páginas e incluiu detalhes dos projetos, de todos os fabricantes envolvidos, entre outros aspectos. Resta saber como o Brasil vai absorver o conhecimento adquirido e como ele será entregue.
Por Edmundo Ubiratan
Publicado em 09/10/2019, às 00h00 - Atualizado em 30/09/2020, às 21h40