O desafio de responder uma pergunta tão celestial quanto mundana
O que significa voar para você? Há respostas substantivas: dom, inclinação, talento, paixão, adrenalina, exatidão. Outras nem tanto: poder participar da constituição do universo em meio a cometas, asteroides, estrelas, eclipses, nuvens, relâmpagos, luares, vias lácteas, sunsets e sunrises; ter o privilégio de estar realizando o que a humanidade sempre desejou, e que se traduz em uma sensação de liberdade própria dos pássaros.
Mas o celestial é também mundano: em cada viagem com pernoite você tem a chance de colocar as leituras e as mensagens em dia; pode levar em sua device portátil livros, podcasts, filmes, seriados, games; pode atravessar os insanos esquemas de segurança dos aeroportos como um inocente nato; pode conhecer pessoas interessantes, ainda que rapidamente; pode ser recebido como herói por seus filhos ao final de um dia de trabalho; e se tiver que dormir dentro da aeronave, na escuridão de uma zona rural, como alguns personagens de Richard Bach, se sentirá dono de todos os espaços.
Conheço um homem que não pôde se tornar aviador nos anos 1970 por causa da miopia. Atravessou a juventude e a maturidade tentando encontrar um lugar que nunca é exatamente o seu, mas como o destino não é nem científico, nem tecnológico, a travessia dele sobre o oceano das possibilidades o levou a observar pássaros (bird watch), voar em pensamento e entrelaçar o racional ao sensorial.
A propósito, o filósofo grego Sócrates (470 a.C. - 399 d.C.) encarava o pensamento como uma forma de voo: "Os homens têm de se erguer acima da Terra - até o topo da atmosfera e além -, pois só assim entenderão completamente o mundo em que vivem". Na mesma linha, Charles Lindbergh (1902-1974) celebrava sua própria fé: "Na vastidão do céu, sinto o milagre da vida, que transforma as nossas realizações científicas em meras trivialidades".
O artista-inventor Leonardo da Vinci (1452-1519) desafiou o apelo moral contido no mito de Ícaro (quem voa alto, frustra-se) e produziu detalhado estudo do voo dos pássaros e planos para a criação de várias máquinas voadoras, como um helicóptero movimentado por quatro homens e um planador (ornitóptero), que usava o mesmo mecanismo das asas dos pássaros: "Uma vez que você tenha experimentado voar, você andará pela Terra com seus olhos voltados para o céu, pois lá você esteve e para lá desejará voltar", escreveu.
Na escuridão de uma zona rural, como alguns personagens de Richard Bach, se sentirá dono de todos os espaços
Voar, assim como o sonho de voar, transporta o efeito simbólico de uma necessidade de integração. Amelia Earhart (1897-1937) , por exemplo, primeira mulher a pilotar sozinha sobre o Atlântico, disse: "Você nunca viu uma árvore de fato se ainda não experimentou vislumbrar a sombra dela a partir do céu". Earhart acreditava que todo voo contém uma estética: "A atração de voar reside na atração que temos pela beleza". Nesse sentido, os aviadores são voyeurs não passivos.
* Jornalista, escritor e professor. Autor de Perfis, entre outros livros
Sergio Vilas-Boas
Publicado em 06/12/2011, às 13h23 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
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