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Longa caminhada

Avião desaparece no Mediterrâneo e é encontrado no deserto 15 anos depois

Conheça a história do B-24D Liberator que foi encontrado mais de 700 km do local oficial da queda


Lady Be Good em uma das primeiras imagens após sua localização, no mar de areia de Calanshio | Fotos: National Museum of the U.S. Air Force

Um avião é encontrado no deserto, 15 anos depois de ser dado como desaparecido em pleno mar, durante a Segunda Guerra. Nada de corpos. O que houve com a tripulação do B-24D Liberator batizado de Lady Be Good? Que erros, falhas e contratempos fizeram com que o bombardeiro caísse 710 quilômetros deserto líbio adentro em 1943. Que fim trágico atingiu seus tripulantes em sua primeira missão de combate? As respostas sempre foram insuficientes e até hoje abrem espaço para especulações.

Aos fatos

Às 14h50, de 04 de abril de 1943, sob uma tempestade de areia, o Lady Be Good parte da base de Soluch –  hoje aeroporto líbio de Bengazi –  para atacar o porto italiano de Nápoles, do outro lado do Mediterrâneo. A tripulação chegará à Líbia em 25 de março. No comando estava o tenente William J. Hatton. Dos 25 bombardeiros Liberator da Missão 109, nove retornaram antes devido ao mau tempo. Sem atingir Nápoles, que estava encoberta por nuvens, Hatton lança as bombas sobre o Mediterrâneo para perder peso e economizar combustível no retorno. A partir daí começam os problemas.

Os registros indicam que às 00h12 de 5 de abril o tenente Hatton envia uma mensagem codificada à base solicitando orientação. O dispositivo de radionavegação do quadrimotor não funcionava. O Liberator estava na direção correta, porém era impossível saber se voava sobre o mar ou o deserto. Iluminadores foram disparados em Soluch e o ronco dos motores chegou a ser ouvido. Tudo indica que os sinais não foram avistados pela tripulação. O temor de um contra-ataque do Eixo direcionado pelas transmissões só permitia conversas breves ao rádio. Assim, Hatton continuou rumo sudeste sem que ninguém no solo ou na cabine percebesse o erro. Havia combustível para mais duas horas de voo, o que permitia percorrer cerca de 740 quilômetros. Dias depois, o Lady Be Good foi dado como desaparecido em combate por sua unidade, o 514º Esquadrão do 376º Grupo de Bombardeio. Erroneamente, britânicos fazem buscas na área da costa.

Da esquerda à direita: comandante William Hatton, copiloto Robert Toner, navegador D.P. Hays, bombardeador John Worovka, engenheiro de voo Harold Ripslinger, operador de rádio Robert LaMotte, artilheiro Guy Shelley, artilheiro Vernon Moore e artilheiro Samuel Adams

Exatos 15 anos, um mês e 12 dias depois, em 16 de maio de 1958, um Douglas DC-3 da Silver City Airways fretado pela D'Arcy Oil Company (depois encampada pela British Petroleum) avistou destroços. Tudo indicava ser um cargueiro. A fuselagem estava partida em duas, em ângulo de quase 90 graus, jazendo de barriga sobre uma área plana, recoberta de areia dura e pequenas rochas esparsas. O comandante do DC-3, Charles Hellewell, circundou a posição, que foi marcada pelo geólogo Ronald McLean, enquanto outros tiraram fotografias. Militares americanos foram alertados na base Wheelus, no que hoje é o aeroporto de Mitiga. Só que nada acontece. O deserto entre a Argélia e o Egito estava repleto de destroços de guerra. Porém, não havia registro de nenhuma aeronave perdida no Mar de Areia de Calanshio, uma área bem ao sul de onde a maioria dos combates ocorreu. O local foi marcado nos mapas e solenemente ignorado.

O Lady Be Good fotografado do ar ao ser localizado, em 1958

Em 27 de fevereiro de 1959, uma equipe de geólogos da petrolífera vai ao local. Nenhum corpo é encontrado, tampouco paraquedas. A presença de garrafas de água e algum alimento indicavam que a tripulação saltou apressadamente. A disposição dos destroços, sua parcial integridade e a ausência de sinais de incêndio mostravam, acertadamente, que o Liberator sofreu uma pane seca. O Lady Be Good perdeu altitude até deslizar de barriga por 640 metros ainda com o motor 4 em funcionamento. O clima quente e seco do deserto havia preservado o equipamento. As metralhadoras funcionavam perfeitamente, assim como o rádio, removido para substituir o aparelho danificado de um dos C-47 usados para voar até lá. Os registros de bordo do navegador, tenente D. P. Hays, só indicam que após tentar atingir Nápoles eles retornaram no rumo 140, na direção de Soluch.

Imagens do primeiro contato inicial com o avião mostram cenário intacto

Relíquias da Tragédia

O sítio onde repousa o B-24 Lady Be Good costuma ser visitado por viajantes aventureiros que cruzam o Mar de Areia de Calanshio em veículos 4x4. Desde 1959, os equipamentos da cabine são retirados ou arrancados, seja por militares que investigaram o caso ou por caçadores de suvenires. O acesso é relativamente fácil para os padrões do Saara. A cerca de 180 quilômetros para o oeste passa a rodovia que liga Kufra ao litoral, onde funcionam modernas fazendas irrigadas. Há até um aeroporto.

Dos restos retirados do Lady Be Good, alguns tiveram nobres destinos. Partes do avião foram levadas ao Museu Nacional da Força Aérea dos Estados Unidos, em Dayton, Ohio. Algumas roupas, mostradores, relógios e mapas estão no Museu da Intendência do Exército, em Fort Lee, Virgínia. Uma das hélices está na subprefeitura de Lake Linden, lar do operador de rádio Robert LaMotte. Em 1968, a RAF retirou um dos motores Pratt & Witney, que foi enviado para estudos na McDonnell Douglas. Outros itens foram retirados por uma expedição líbia em 1994 e guardados em uma base em Tobruk. Após os bombardeios da Otan que contribuíram para a deposição do ditador líbio Muamar Kadafi, o destino das peças é desconhecido.

Em maio de 1959, uma pequena equipe forense do exército americano procura indícios, sem sucesso. Só um par de botas e alguns paraquedas são localizados. Em fevereiro de 1960 o exército americano manda mais homens. O que motiva esta segunda busca é uma carta do geólogo britânico Gordon Boweman para um amigo, o tenente-coronel Walter Kolbus, comandante da base Wheelus. Boweman, que esteve na área em março, informa o número de série do Liberator e os nomes dos tripulantes. Era o Lady Be Good.

Destroços preservados no Museu Nacional da Força Aérea dos Estados Unidos, em Dayton, Ohio

Engenheiro de voo caminhou por 200 quilômetros

Durante as buscas, por acaso, petroleiros encontram cinco cadáveres encobertos pela areia. O diário no bolso do copiloto, o tenente Robert Toner, relata o sofrimento da caminhada para o norte, sem saber o quão longe estavam da salvação, aguentando de 5 a 12 de abril só com um cantil de água. Oito dos noves aviadores percorreram 136 quilômetros sob um calor de 54 graus Celsius ao meio-dia. O oitavo tripulante, John Woravka, bombardeador, não se reúne aos colegas após o salto de paraquedas. Naquelas condições, especialistas em sobrevivência e resgate calcularam, erroneamente, que o grupo só conseguiria avançar 50 quilômetros. O diário de Toner informa que, exaustos e com pouca água, cinco deles optam por parar, incluindo o comandante Hatton. Os artilheiros Guy Shelley, Vernon Moore e o engenheiro de voo Harold Ripslinger arriscam ir em frente.

Diante dessas descobertas, em maio tem início a Operação Clímax, com dois helicópteros Bell H-13 Sioux e um cargueiro Hércules C-130. A missão é procurar e resgatar os corpos dos outros quatro tripulantes. Equipes vasculham os arredores, seguindo na direção contrária do trajeto do quadrimotor. Em 12 de maio, petroleiros encontram o corpo do sargento Shelley. Ele estava 38 quilômetros além de onde os cinco primeiros corpos foram encontrados. Em 17 de maio, uma busca aérea do exército americano avistou os restos do sargento Ripslinger, que antes de perecer conseguiu se arrastar por mais 65 quilômetros. Seu corpo estava a 200 quilômetros do avião. Um esforço em vão, já que Ripslinger pereceu a 500 quilômetros do litoral e de qualquer possibilidade aparente de resgate. Em agosto, o cadáver do tenente John Woravka, bombardeador, é encontrado. Ele estava a apenas 750 metros de onde a tripulação acampou após atingir o solo. Seu paraquedas não abriu por inteiro. Já os restos mortais do sargento Vernon Moore, artilheiro, jamais foram encontrados. Aí persiste o mistério. A imprensa explora o caso, que cai no gosto da cultura popular. O episódio King Nine Will Not Return, da série Além da Imaginação, é rodado naquele ano.

Pistas sobre a tragédia

Em 2001, o ex-soldado britânico Peter Cowley, então com 67 anos, oferece uma solução plausível. Ao assistir a um documentário sobre o desaparecimento do Lady Be Good, recordações lhe vieram à mente. Em 1953, aos 19 anos, Cowley servia na Líbia. Em uma patrulha de jipe, ele e seus companheiros encontraram e sepultaram um cadáver ressecado que acreditaram ser de um jovem beduíno. Na época, dez anos após o desaparecimento, a história do Lady Be Good era desconhecida. Poderia ser o corpo do sargento Vernon Moore.

Destalhe do interior da Lady Be Good

Primeiras imagens de 1958 mostravam o interior ainda preservado e relativamente intacto

As pistas para as causas da perda do bombardeiro são apontadas por Mario Martínez, autor de Lady's Men, livro de 1995 sobre o episódio. Martínez acredita que a falha principal foi do navegador, tenente D. P. Hays. Inexperiente, ele não teria interpretado corretamente o sinal do radiofarol, acreditando que seguia na direção certa até ser tarde demais. Além disso, há a possibilidade de terem confundido, no trecho final do voo, o reflexo da areia com o do mar. Um erro grave de navegação, já que avançaram por duas horas sem perceber que estavam fora da rota.

Talvez o pior seja saber hoje que na direção sudoeste, a 200 quilômetros, está o oásis de Wadi Zighen. Se tivessem essa informação, talvez alguns sobrevivessem, já que logo no início da jornada poderiam ter encontrado os destroços do Lady Be Good, onde jaziam mapas, bússolas, sextantes, água e comida. O escritor Mario Martínez suspeita que, além da inexperiência da tripulação, houve omissão por parte do comando 376º Grupo de Bombardeio. Sua tese é confirmada pelo ex-tenente William McCain, que serviu em Soluch. No dia seguinte, McCain sobrevoou o deserto em busca do Lady Be Good por sua conta, sem informar o comando. Outro piloto, Dean Christie, que estava na Missão 109, contou em 1985 ter percebido pelo rádio que o piloto parecia desorientado e que a torre de Bengazi nada fez para ajudar. Christie dizia ter certeza que o Liberator seguiu perdido na direção sul e que nos dias seguintes buscas foram feitas sem sucesso. O que não explica o aparelho ter sido dado como perdido no mar depois do ronco de seus motores ser escutado sobre Soluch. Diante de tantos erros, só restou aos aviadores seguirem o roteiro sem volta preparado pelo deserto. Até hoje, Vernon Moore jaz no deserto.

Inspirações para o cinema

Desde quando foi encontrado em 1958, o desaparecimento e a localização do Lady Be Good e dos corpos de oito de seus nove tripulantes inspiraram – ainda que levemente – quatro filmes. Os resultados ficaram aquém do episódio real. Para o cinema, há O Voo do Fênix (The Flight of the Phoenix, de 1965), com James Stewart, e a refilmagem de 2004, com Hugh Laurie, protagonista da série House. Em ambos, equipes de prospecção de petróleo constroem monomotores improvisados com as partes de um cargueiro acidentado para escapar do deserto. Para a TV, o episódio da série Além da Imaginação (King Nine Will Not Return, de 1960) e O Único Sobrevivente (Sole Survivor, de 1970) apostaram em enredos fantásticos. No melhor dos filmes, O Único Sobrevivente, Richard Basehart (o Almirante Nelson, de Viagem ao Fundo do Mar) e William Shatner (o Capitão Kirk, de Jornada nas Estrelas) são observados por fantasmas e uma mentira precisa ser revelada. Nos filmes para TV foram usados bombardeiros B-25, mais fáceis de adquirir do que um B-24.

* Texto publicado originalmente na edição 228 de AERO Magazine. A versão digital foi adaptada para o formato online.

Por André Vargas
Publicado em 22/10/2020, às 00h00 - Atualizado às 00h29


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